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Leonardo da Vinci




VIDA

 

Inνcio | Obra

Leonardo nasceu a 14 de abril de 1452, no povoado de Vinci, edificado nas encostas do monte Albano, na Toscana, então a região mais florescente da Itália. Era bastardo, fato que nessa época pouco importava socialmente. Seu pai, Piero da Vinci, era notário, profissão exercida por sua família desde o começo do século XIII. Sua mãe, uma camponesa da qual só se sabe o nome, Catalina, cuidou do filho durante os primeiros anos.

No ano de seu nascimento, o pai de Leonardo se casou com uma jovem de dezessete anos, Albiera Amadori. Pouco tempo depois sua mãe seguiu o mesmo exemplo, casando-se com outro camponês da região, Piero del Daca. Albiera não chegou a Ter filhos, e cinco anos depois Leonardo foi separado de sua mãe e recebido no lar paterno. Passou a conviver – numa casa que segundo alguns moradores de Vinci ainda se mantém de pé – com um avô de 85 anos, uma avó de 63 e um tio de 22, além do pai e da madrasta.

Um ano depois da morte da madrasta, em 1465, já com catorze anos, Leonardo entrou para a oficina de um dos escultores e pintores mais importantes de Florença, Andrea Verrocchio (1435-1488), que tinha como alunos alguns dos que iriam se transformar nos novos grandes mestres da pintura italiana: Lorenzo di Credi (1456-1537), Pietro Perugino (1444/45-1510). A relação que se estabeleceu entre o mestre e Leonardo foi tão calorosa que, quando seu pai se mudou para Florença, Leonardo ficou vivendo na oficina de Verrocchio.

Em 1471 o pintor conheceu Ludovico, o Mouro, que viria a ser, anos depois, seu grande protetor. E, terminando o aprendizado de seis anos, Leonardo se converteu em membro da Corporação de Pintores de Florença. Já participara, segundo se supõe, da confecção de alguns quadros coletivos na oficina de Verrocchio, entre os quais o Batismo de Cristo. Dois anos depois, surge o primeiro desenho, datado e assinado. Nele aparece pela primeira vez sua característica escrita invertida, legível apenas por meio de um espelho.

Em 1474, pinta sua primeira obra-prima, Anunciação, realizada para o Monastério de Monte Oliveto. Dois anos mais tarde seu pai casa-se de novo e tem um filho. Por esse tempo Leonardo foi levado aos tribunais de Florença, acusado de práticas homossexuais, junto com outros dois amigos. Numa época de tão grande rigor, comportamentos sexuais desse tipo eram castigados com a pena de morte. Mas a denúncia tinha sido anônima, as provas não apareceram – e Leonardo e seus amigos foram absolvidos.

O aspecto afetivo da vida do pintor foi sempre uma das incógnitas a acentuar o caráter misterioso de sua personalidade. De fato, tanto para a posteridade quanto para seus contemporâneos, Leonardo foi objeto de muitas conjeturas: a atmosfera de mistério que envolveu o homem transparece também em alguns se seus quadros. E, por fim, um manto místico envolveu tanto sua vida quanto algumas de suas composições mais célebres.

Aos vinte e seis anos Leonardo recebeu sua primeira encomenda oficial: um quadro para o altar da Capela de São Bernardo, no Palazzo Vecchio. Apesar do adiantamento recebido de 25 florins, a obra nunca foi entregue – e essa inconstância será permanente em Leonardo. No mesmo ano, pintou as Duas Marias, das quais somente uma – a Madona de Benois – chegou até nós, e desenhou Bernardo Bandini Enforcado.

A prova de que já se tornara conhecido é outra encomenda: o risco para uma tapeçaria, a pedido do príncipe de Portugal. Em 1479 o pai volta a se casar, e Leonardo passa por dificuldades econômicas; copia uma escultura de Verrocchio (Guerreiro) e pinta o São Jerônimo, para o Vaticano.

Dois anos depois assina um contrato com os monges do Convento de São Donato, comprometendo-se a pintar um quadro para o altar principal. Essa obra – Adoração dos Magos também não será terminada. Leonardo entra em crise; já abandonou Verrocchio por razões que não ficaram claras e continua com seus problemas econômicos. Deixa tudo e parte para Milão. Nessa cidade, hospeda-se na casa de um colega, Ambrogio de Predis, que faz parte da corte que Leonardo pretende conquistar com seus dotes musicais. Suas pretensões têm êxito; o Príncipe Ludovico, o Mouro, que conhecera em Florença, fica fascinado pela personalidade do músico-pintor que também lhe oferece outro tipo de serviço – o de engenheiro militar.

Ainda existe a proposta entregue por Leonardo ao governante: "1. Tenho um processo que me permite construir barcaças leves, facilmente transportáveis, incombustíveis, com as quais se pode perseguir ou evitar o inimigo. 2. Tenho um processo para esgotar a água dos fossos, durante o cerco duma praça (...); sei destruir qualquer praça forte que não seja construída sobre rocha. 4. Conheço um segredo para fabricar bombardas..."; e assim por diante. Só quando finaliza a lista dos onze itens aparece seu ofício artístico: "Farei em escultura, de mármore, de bronze ou de barro, ou mesmo em pintura, qualquer trabalho comparável ao de qualquer artista. Poderíamos também ocupar-nos do cavalo de bronze que será a glória imortal do Senhor nosso Pai e da Casa dos Sforza". Todos esses projetos ficariam em suspenso.

No início de 1483 cabe a Leonardo e aos De Predis a pintura de um retábulo para o altar da Igreja de São Francisco, que devia ser terminado antes do dia da Virgem. Uma vez mais o pintor não cumpre o prometido e a situação se complica com confusos acertos financeiros de Leonardo. Tudo termina diante dos tribunais. A obra, conhecida como A Virgem dos Rochedos será terminada em 1485.

Enquanto isso, apesar da peste que assola Milão entre 1484 e 1486, Leonardo começa a se dedicar à arquitetura. Nesse período pinta o retrato – Cecilia Galleroni – com dezessete anos, e começa a trabalhar nos esboços da escultura eqüestre que tanto deseja realizar. Aos estudos de cavalos acrescenta os tipos de cavaleiro e de cenas cotidianas.

Em 1490 Leonardo desenvolve uma atividade que sempre lhe agradou – a de animador de festas; desta vez em homenagem a Isabel de Aragão, que se casa com o Duque Gian Galeazzo. Ludovico renova seu entusiasmo pelo pintor, permitindo-lhe instalar o atelier em seu antigo palácio – a Corte Vecchia. Além disso, concretiza-se a encomenda da escultura de Sforza. A sorte parece estar agora com Leonardo. E ele completa sua ventura adotando um menino: Salaino. Com Salaino, o pintor manterá uma relação carregada de ambigüidade, que prefigura as relações que terá daí em diante com outros belos rapazes.

O caráter homossexual de Leonardo da Vinci ficou claro tanto para sua época quanto para seus historiadores. Mas geralmente também se admite que esse homossexualismo nunca foi realmente consumado. Teria sido, como se costuma dizer, um amor platônico": mais uma relação protetora como a que manteve com seu filho adotivo – ao qual perdoou todo tipo de roubos e torpezas – ou como a que estabeleceu com os alunos, escolhidos não pela capacidade artística, mas pela beleza, e de quem cuidava e a quem protegia em todas as circunstâncias.

A verdade, porém, é que Leonardo parecia Ter profunda repulsa pela atividade sexual. Ele mesmo se encarrega de dizê-lo em um manuscrito, dos muitos que deixou: "A cópula e os órgãos que são empregados nela têm uma tal feiúra que se não fosse a beleza dos rostos, os atributos dos sujeitos e a postura comedida, a natureza levaria a espécie humana a se perder". Em geral parece um homem carente de afeto; em sua opinião os sentimentos são subordinados à inteligência: "O grande amor nasce do grande conhecimento da coisa que amamos, e, se não a conhecemos, não poderemos amá-la ou a amaremos pobremente".

Em 1493 Leonardo termina a maquete da escultura eqüestre, exibida nas bodas de Bianca Sforza e do Imperador Maximiliano. Ao aparecer, a obra deslumbra a todos, mas terá um triste fim. O bronze será requisitado com finalidades militares: Carlos III, da França, atravessa a fronteira e ameaça Milão; prepara-se então a defesa da cidade, compreendendo a acumulação de material para munições.

Leonardo deve trabalhar nas fortificações, realizar uma série de serviços para Beatriz d'Este, mulher de Ludovico, e melhorar o sistema de irrigação de uma propriedade do príncipe. Isso lhe permite aprofundar seus conhecimentos de hidráulica e mecânica, apesar de não abandonar as pesquisas sobre pintura: inicia então a redação de seu Tratado de Pintura.

A instabilidade política e os problemas financeiros de Milão, em conseqüência do conflito que se desencadeia, trazem dificuldades econômicas a Leonardo. Tenta então iniciar-se nas atividades industriais, inventando uma máquina para fabricar agulhas em série.

Em 1495 morre em sua casa uma mulher que abrigava há alguns anos, chamada Catalina. Pelos gastos consideráveis com o enterro, os historiadores pensam que se tratava de sua mãe.

Na relação de Leonardo com a mãe, alguns intérpretes encontram a explicação para um dos aspectos de sua obra que mais cativou e intrigou seus contemporâneos e a posteridade: os sorrisos.

Antes de mais nada, o sorriso de Mona Lisa. Mas também o de Sant'Anna e o de São Batista. Leonardo captou um gesto levíssimo, inefável, que durante séculos o público reconheceu como um dos feitos mais impressionantes da história da pintura.

Dezenas de trabalhos tentaram explicar por que esse sorriso comovia de tal forma e tentaram descobrir a fonte onde Leonardo o colheu. É verdade que o que há são apenas conjeturas – mas, segundo uma das hipóteses atuais, os sorrisos pintados por Leonardo representariam seu reencontro com a infância. O sorriso da mulher de Francisco del Giocondo apenas teria atualizado a recordação que o pintor tinha do sorriso de sua mãe. No quadro de Sant'Anna, executado na mesma época, estaria representada não apenas sua mãe (Sant'Anna, relativamente afastada do menino), mas também a madrasta, que o criou dos cinco aos treze anos. Nessa recuperação da imagem materna Leonardo teria podido alimentar o impulso que, nos últimos anos, fê-lo retomar a pintura e superar em qualidade o que havia realizado anteriormente.

Em 1495 Leonardo recebeu uma das mais importantes encomendas de sua vida: a Última Ceia. A obra era para o refeitório do Convento de Santa Maria delle Grazie. O método de realização, inovador e experimental, foi porém tão deficiente que provocou a rápida deterioração da obra; mesmo restaurada várias vezes, continua com mau aspecto.

Em frente à Última Ceia, pinta os retratos – já desaparecidos – de Ludovico e Beatriz rezando. Mas seu protetor tem agora uma nova e jovem amante – Lucrezia Crivelli – e encomenda a Leonardo seu retrato, e o do filho que tem com ela.

Os anos de tranqüilidade estão para acabar. Ludovico morre. A Leonardo deixa uma pequena propriedade e uma vinha. Mas sua morte muda tudo em Milão.

Os franceses invadem a cidade e o pintor põe-se a serviço – como engenheiro – de Luís de Luxemburgo, que planeja tomar Roma e Nápoles. Quando Luís desiste da conquista e abandona Milão, Leonardo também deixa a cidade, acompanhado de seu filho adotivo, que já tem dezessete anos.

Vai primeiro a Mântua, onde pinta um retrato de Isabel d'Este. Continua viagem até Veneza – que está sendo atacada pelos turcos. Fascinado como sempre pelas práticas guerreiras, propõe novas técnicas militares. Projeta um submarino e um escafandro que nunca serão levados a termo.

Começa o novo século. Leonardo decide voltar para Florença, onde se encontra com seu pai, casado pela Quarta vez e esperando outro filho. Hospeda-se no mosteiro dos irmãos servitas, que lhe encomendam uma obra que também não realizará: prefere aprofundar os estudos sobre a matemática.

Converte-se finalmente em engenheiro militar à disposição de César Bórgia, que o envia em missão de reconhecimento às fortificações de Pádua e seus arredores. Em 1503, com Florença ameaçada pela guerra, Leonardo é enviado em missão semelhante. Ao regressar, cabe-lhe a pintura da Batalha de Anghiari, para a Sala do Grande Conselho; desenha então um sem-número de esboços.

Em 1504 morre-lhe o pai. É também o ano em que o jovem Rafael o descobre e copia sua Leda. Começa, ao mesmo tempo, um afrontamento pessoal com Michelangelo, provavelmente devido a ciúmes profissionais. Francisco del Giocondo encomenda-lhe o retrato de sua esposa, Mona Lisa.

Em janeiro do ano seguinte tudo está preparado para a realização do afresco da Batalha de Anghiari. Em seu anseio de pesquisa, Leonardo utiliza um reboco cuja receita encontrara num livro de Plínio. Mas o reboco não seca com a rapidez desejada e o pintor manda acender uma fogueira, que seca apenas a parte inferior da parede. Leonardo começa a trabalhar assim mesmo – mas fracassa: borram-se os traços.

A essa catástrofe soma-se outra: Leonardo fora encarregado do cálculo de uma obra hidráulica de grande envergadura para o ria Arno, da qual participavam dois mil operários. Os cálculos revelam-se errados e a obra tem de ser paralisada. Esses dois golpes deterioram o prestígio do artista, já abalado pela reputação de deixar inacabados muitos trabalhos.

Leonardo sempre teve dificuldade para acabar suas obras, e até para começá-las. Quando Ludovico lhe encomendou a estátua de Sforza, iniciou preparativos com uma série de estudos que terminam na redação de dois tratados: um sobre cavalos e outro sobre a fundição de bronze. O desastre que aconteceu com a Última Ceia se deveu, antes de tudo, ao fato de Leonardo ter trocado a técnica tradicional de pintura de afrescos, que exigia um trabalho muito rápido, por outra, que lhe garantiria mais lentidão. Com isso atrasou de aproximadamente quatro anos sua confecção. Esse foi também o tempo que gastou com a Mona Lisa – sem considerá-la acabada. Tal atitude trouxe-lhe contínuos problemas, perda de prestígio, dificuldades econômicas, processos. E não pode ser entendida apenas como um natural desejo de perfeição, comum aos artistas.

Pode-se talvez dizer que existem dois planos diferentes na mesma questão. Por um lado, pode-se supor em Leonardo o temor de exibir uma obra frente ao público, de ser julgado a partir do que fez, de entregar sua obra, desprotegida e solitária, a mãos alheias. Por outro, pode-se conjeturar que o próprio Leonardo desvalorizava seu destino artístico diante de seu destino científico. De fato, cada vez mais abandona sua palheta para se dedicar a múltiplas investigações e inventos. E fora sobretudo como engenheiro que se apresentara a Ludovico, deixando para o final a menção a seus dotes artísticos.

Por outro lado, seus escritos não se destinaram à publicação. Mais ainda, a própria forma crítica da escrita que empregava, até em textos tão pouco secretos como os que tratam de anatomia de cavalos ou do coito humano, leva a pensar que seu trabalho científico era considerado como absolutamente pessoal. E não eram pesquisas de pouca importância: os críticos atuais concordam que se tivessem sido publicadas poderiam Ter mudado o rumo da história das ciências.

A contradição entre o artista e o investigador parece ter sido bastante séria e foi notada pelo próprio Leonardo. Em seu leito de morte acusa-se de ter ofendido a Deus e aos homens por não ter cumprido sua missão artística. Deixou freqüentemente o papel científico sobrepor-se ao artístico. Eduardo Solmi, em A Ressurreição da Obra de Leonardo, diz: "Leonardo tinha colocado como regra do pintor o estudo da natureza, mas, depois, a paixão pelo estudo se tornou dominante e ele já não desejava a ciência por causa da arte, mas a ciência pela ciência."

Charles d'Amboise chama Leonardo de volta a Milão. Ma Solderini – líder do governo florentino – não quer deixá-lo partir enquanto não cumprir o contrato para a feitura do afresco A Batalha de Anghiari, pelo qual já recebera grande parte do pagamento. Leonardo deixa uma caução de 150 florins e parte para Milão.

Leva consigo duas obras inacabadas: a Gioconda e A Virgem e o Menino Jesus com Sant'Anna e São João Menino, e grandes propostas: canalizar rios, construir uma cidade rodeada de jardins, realizar outro monumento eqüestre. Mais tarde, Charles d'Amboise escreverá a Solderini: "Depois que, vivendo com ele, pude apreciar suas qualidades de artista e de homem, considero que seu nome, já muito célebre na pintura, não tem ainda o brilho que merece nos outros domínios da arte e da ciência."

Leonardo volta a Florença em 1507 para receber uma herança de seu tio. Ali começa a se dedicar às autópsias, que presencia para estudar anatomia humana. Vários desenhos testemunham esse interesse. Voltando a Milão, um ano depois, inicia outro período de tranqüilidade. Continua os estudos de aerodinâmica iniciados em Florença, bem como os de anatomia e outra s áreas científicas. Aceita alunos em sua oficina, mas nenhum deles chegará a ter importância.

Em 1511 morre Charles d'Ambroise, o protetor de Leonardo. Sua vida volta a se agitar. A partida dos franceses de Milão o induz a mudar de cidade. Desta vez dirige-se a Roma, convidado por Juliano de Médici, que o encarrega da drenagem dos Pântanos Pontinos, tarefa que não pôde cumprir.

Pretende conseguir com as dissecações, mas é impedido por uma proibição papal de continuar um a prática considerada sacrílega. Suas relações com o papa não melhoram – tanto que Rafael é encarregado de uma obra previamente destinada a Leonardo: a construção do Duomo de São Pedro. A morte de Juliano de Médici, em 1516, faz com que a permanência de Leonardo em Roma perca o sentido.

Outra vez a retirada. Com seu filho adotivo e alguns de seus alunos, vai primeiro para Milão, onde Salaino decide ficar. Segue depois para a França, a convite do Rei Francisco I.

E recebido com todas as honras. Francisco I coloca à sua disposição um de seus castelos do Loire – e ali Leonardo continua a trabalhar, apesar da paralisia do braço direito. Com o esquerdo empreende a realização do São João Batista, começando anteriormente.

Redige seu testamento. Seu dinheiro – 400 ducados – fica para seus irmãos de Florença; o resto de seus pertences para seu aluno Francisco Melzi. Morre a 2 de maio de 1519.

Quaisquer que tenham sido os motivos que levaram Leonardo da Vinci a realizar certos empreendimentos ou a deixar de fazê-los, o que importa e o que fundamentalmente lhe deu um lugar de destaque na história foram pinturas como a Anunciação, a Última Ceia, e Mona Lisa.

O salto que Leonardo faz dar à pintura de sua época consiste, principalmente, na superação do rígido formalismo geométrico, dominante até então. Além disso, mostrou a possibilidade de se transpor para a tela um grande vigor emocional. As principais preocupações dos pintores renascentistas – a perspectiva e a luz – estão continuamente presentes em Leonardo. Desde seu primeiro desenho conhecido, a Paisagem, de 1473, a mestria com que encara os problemas de perspectiva é admirável. "A visão está capturada" – escreve o crítico de arte Raffaele Monti – "em um específico momento dinâmico e apresenta uma série de vistas perspectivas organizadas e congruentes, cada uma com seu próprio ponto focal preciso."

Na Anunciação o problema da perspectiva, magnificamente resolvido, permanece ainda dentro dos moldes herdados, mas em obras seguintes, como a Adoração dos Magos, Leonardo renova as concepções de composição, além de conjugar a dramaticidade das personagens com a resolução cerebral do espaço. A Madona de Benois, outra de suas obras de juventude – perdida durante muito tempo e encontrada recentemente em Leningrado – mostra a Virgem e o menino, sem nenhum recurso de cenário. Nada distrai a observação do rosto infantil de Maria e dos jogos de Jesus. A tranqüila suavidade em que está envolvida a obra e sua clara luminosidade manifestam o equilíbrio característico da arte de Leonardo da Vinci.

O São Jerônimo tem uma intensidade dramática que resulta da crise espiritual atravessada então pelo pintor e totalmente oposta à paz anterior. Essa paz era expressa numa monocromia parcial que atraiu o pintor durante algum tempo. "Aquela boca aberta" – descreve Fred Bérence –, "crispada num apelo à misericórdia divina, aqueles olhos que imploram o perdão de alguma falta grave, aquele braço estendido, pronto a ferir o peito culpado de tantas aspirações sombrias, aquele leão, prisioneiro da matéria, que ruge para chamar a atenção do céu sobre São Jerônimo, prisioneiro de seu corpo, não nos deixam dúvidas: São Jerônimo é um estado de alma de Leonardo".

Madona com São João Menino e um Anjo é um dos poucos quadros que o pintor considerou acabados. Exultante de um secreto fervor, a obra parece ser a transposição plástica de música da época, inspirada, segundo parece, nos quartetos de Josquin des Prés. Outra vez Leonardo da Vinci volta à serenidade, porém, agora, a imagem se complica, mesmo se perduram a harmonia e o equilíbrio. A cena resulta em um claro-escuro que ressalta corpos e rostos das personagens, contrapostos à paisagem.

A Última Ceia significou para Leonardo a extenuante experiência de uma tarefa que não exigia apenas perícia técnica, mas uma espiritualidade de acordo com a importância do tema. Qualquer que seja a interpretação psicológica para a lenta execução do trabalho, não cabem dúvidas de que o tempo não foi desperdiçado; só a procura dos rostos dos apóstolos exigiu anos de pesquisas nas ruas de Milão. O drama da redenção dos homens por Cristo e a traição de Judas está fixado no momento mesmo em que Ele anuncia que um dos apóstolos o venderá. As Paixões desencadeadas entre os doze discípulos se contrapõem à imagem central de Jesus, aureolada de paciência e resignação.

A Mona Lisa perdeu, hoje em dia, por causa da deterioração das cores empregadas, muito de sua graça original. Mas, apesar da simimonocromia, a obra mantém sua extraordinária força original. Nela, Leonardo une a profunda observação anatômica – que lhe permite destacar levemente o bater de uma artéria no colo – à mestria artesanal levada ao apogeu. Mas, sobretudo, Leonardo inova. A simplicidade com que foi realizado o traço, a falta de adornos da figura, o tamanho quase natural da composição, revolucionaram a arte do retrato do Renascimento. Além disso, como exprime Emil Shaeffer: "A posição geral, que faz girar ligeiramente sobre o seu eixo a cabeça e o tronco, o cruzamento das belas mãos reveladoras, enfim, a simplicidade do penteado e do traje, que faz concentrar o interesse nas feições em que a alma aflora – eis as inovações fecundas."

Leonardo foi, sem dúvida, um homem que precisou se esconder. Deixou manuscritos inéditos, quadros por terminar. Muitos de seus sentimentos – motivações para sua obra – permanecem velados em misteriosa penumbra. A distância entre seu possível descontentamento consigo mesmo e a vigorosa herança de arte e ciência que legou à humanidade talvez seja seu maior ensinamento.