RELIGIÃO SUMÉRIA I
EM DIAS DISTANTES....
de Adapa (Twin Rivers Rising, 1995-1997)
A mitologia da criação em geral é dividida em dois tipos: a) Cosmogonia, relativa à criação do cosmos, e b) Antropogonia, relativa à criação da humanidade. Esta distinção é importante, porque enquanto que existem textos específicos relatando a antropogonia suméria, não existem textos diretos tratando somente sobre a cosmogonia. Ou seja, o que sabemos sobre as crenças dos sumérios sobre o assunto deve freqüentemente ser apreendido a partir de textos que não se relacionam entre si. Apesar das cosmogonias apresentadas nestes textos apresentarem variações, alguns padrões distintos podem ser estabelecidos, e estes fornecem uma compreensão mais ampla a respeito das crenças sumérias relativas à criação do cosmo.
Duas abordagens bastante diferentes podem ser vistas em textos sumérios. A primeira, chamada de Modelo de Eridu, está relacionada às crenças dos habitantes das regiões ao Sul da Mesopotâmia. A esfera do ser divino primordial aqui não é o céu ou a terra, mas as águas, definidas pelo termo Engur. Este termo tem como sinônimo Abzu/Abpsu, "as águas doces das profundezas", e é definido como a fonte subterrânea das águas que emergem das profundezas da terra. Acreditava-se serem estas águas a fonte das terras férteis dos pântanos que deram vida a esta região da Terra Entre os Rios. O símbolo usado para Engur pode também ser usado para Namu, a deusa-mãe dos primeiros tempos da teologia da Mesopotâmia. Os textos descrevem Namu/Engur como ¨a mãe, a primeira, que deu à luz aos deuses do universo ¨ Ela é uma deusa sem consorte, o útero auto-procriador, a matéria primordial, inerentemente feminina, as águas férteis do abzu* (1). O Modelo do Norte substitui a primazia das águas pela dualidade céu-terra. Neste modelo, ¨o Céu e a Terra são os dois vistos como a matéria-prima que gerou a vida, e este fato é feito ainda mais explícito ao fazer o símbolo de Céu e Terra ser igual ao de Engur {2} Algumas vezes, um ou outro vem primeiro. Na lista de deuses, por exemplo, Anu nasce da Terra, ou seja, Uras (a terra masculina), e Ninuras (a terra feminina) Em uma das genealogias de Enlil, a terra também aparece primeiro, mas o enfoque está apenas no seu aspecto feminino, relativo à agricultura. O texto relativo à origem das cáries (que se pensava ser a origem das dores de dente) mostra o céu como o primogênito:
" Depois que Anu (3) tinha criado os céus, o céu criado a terra, a terra criado os rios, os rios criado os canais, os canais, criado os pântanos, os pântanos criado as minhocas ..."(4).
A versão mais aceita da cosmologia, entretanto, é aquela encontrada no texto Gilgamesh, Enkidu e o Mundo Subterrâneo, na qual nos é contado:
" Nos primeiros dias, nos distantes primeiros dias, nas primeiras noites, nas distantes primeiras noites, nos primeiros anos, nos distantes primentos anos. Nos dias de outrora, quando tudo o que era vital foi trazido à existência, nos dias de outrora, quando tudo o que tinha vida era bem criado. Quando o pão era degustado nos templos desta terra, Quando o pão era cozido nos fogões desta terra, Quando o Céu havia se separado da Terra, Quando o nome do homem [e da mulher] foi fixado, Quando Anu carregou consigo os céus, Quando Enlil carregou consigo a Terra " (5)
A criação do cosmos foi, portanto, produto da separação da massa primordial sem forma, constituída pelo Céu e a Terra. Esta massa, segundo o que podemos depreender, foi criada por Namu/Engur. Infelizmente, não possuímos nenhuma fonte suméria para explicar como surgiu Nammu/Engur, se ela foi criada, ou se, pelo contrário, foi sempre uma força pré-existente. Pode ser neste ponto que o mito da Criação Babilônica tenha auxiliado os antigos escribas semíticos, pois entre os semitas as "Águas Primordiais Pré-Existentes" deram origem a Mumu (Namu). Numa tábua que traz a listagem dos deuses sumérios, Namu é descrita como " a mãe que deu à luz aos céus e à Terra " (6). Segue-se daí que a união de Anu com Ki (céu e terra), que produziu os Grandes Deuses, os Anunaki, e que Enlil, o primeiro dos Anunaki, o deus do Ar, separou o céu da Terra, as duas forças cósmicas que deram origem a tudo o que existe (7). Enlil, o jovem deus do Ar, decide então tomar conta para sempre, de sua mãe, a Terra em flor (8).
É importante salientar, entretanto, que Céu e Terra não devem ser vistos neste contexto como entidades separadas, mas sim como seres numa Unidade Essencial que compreende esta dualidade. Para os mesopotâmicos, a terra e os céus não constituíam domínios separados, mas eram duas partes de um mesmo todo. A Terra e o Céu eram complementares, um dependendo do outro e ambos igualmente importantes (9). Desta forma, a força criadora inicial, de acordo com o ponto-de-vista dos sumérios, era muito atômica em sua natureza: a criação vinha de um todo, que, entretanto, era feito de partes constituintes; e foi a separação destas forças, ou seja, a fusão do átomo, que provocou esta criação. É por esta razão que tanta atenção é dada ao ato de separação no esquema do universo. Este poder, que os antigos sumérios viam como inerente nesta separação de forças, iria continuar a ser muito importante no contexto religioso, onde encantos eram geralmente fundamentados pela sentença " pelo Céu e pela Terra".
A criação e propagação da vida vegetal após estes fatos, foi vista, em contraste, como resultado da união, ao invés da separação da Terra e do Céu. A mesma união que trouxe à vida os Grandes Deuses:
" A Grande Terra fez-se gloriosa, seu corpo floreceu com pastagens verdes. A Terra Ampla adornou-se com ornamentos de prata e lápis lazuli, diorita, calcedônia, cornalina e diamantes. O Céu cobriu as pastagens com irresistível atração sexual, e apresentou-se em toda majestade. A jovem terra, deusa e mulher mostrou-se para o puro Céu, e o vasto Céu copulou com a Terra. As sementes dos heróis Madeira e Junco o Céu derramou no útero da Terra. Que recebeu a semente do Firmamento dentro de si... " (10)
Portanto, vemos como as energias da criação transformaram-se de energia atômica (energia de separação) em energia sexual (energia da união) ao longo do processo de concepção do universo. O movimento na direção desta forma de imagens sexuais iria continuar nos relatos sumérios sobre a criação do homem. O mito de Etana dá-nos algumas indicações sobre a forma deste universo. Neste mito, o herói, Etana, foi carregado até os céus por uma águia. Desta forma, Etana pôde descrever a forma de mundo. A forma do mundo seria semelhante a uma nau de cabeça para baixo num grande oceano (11). A grande montanha que constituía a Terra tinha a forma hemisférica. Este hemisfério flutuava sobre o mar da terra, descansando sobre as Profundas Águas do Apsu, que suportavam tudo. A alguma distância da Terra, estendiam-se os céus, que também tinham a forma de um hemisfério. E mais:
" Acima da cúpula dos céus havia uma outra massa de águas, o oceano celestial, que suportava a cúpula dos céus e a mantinha firme em seu lugar, para que não quebrasse e caísse tal qual enchente sobre a Terra. Do lado de baixo da cúpula, as estrelas tinham os seus cursos, e o deus da Lua seguia o seu caminho. Na cúpula, ainda, havia dois portais, um ao Leste e o outro a Oeste, para uso do deus Sol" (12).
Utu então salta da terra por sobre a terra das montanhas do extremo Leste do hemisfério da Terra ao pôr-do-sol, voltando para as Grandes Profundezas das montanhas do pôr-do-sol, localizadas na extremidade oeste. Sabemos a partir do mito da Descida de Inana que este Mundo era cercado por sete muralhas e sete portais, o primeiro deles sendo o portal de Ganzir. No centro destas muralhas estava Egalkurzagin, " o palácio da montanha lustrosa", que abrigava os seres do Mundo Subterrâneo. Entre os céus e a Terra (apesar de ser classificado como parte da Terra) havia uma região na qual a atividade atmosférica da terra tomava lugar. A Fundação do Firmamento, entretando, descansava sobre as extremidades da Terra (13). Acima desta Fundação, estava a região inferior dos Céus, onde se pensava ocorrer a moção periódica dos planetas. Acima desta região, estava e-sara, onde residiam as estrelas fixas. O firmamento celeste, por seu turno, suportava o oceano das águas celestiais, o Ziku (14).
A fonte da antropogonia suméria é mais direta do que as que temos para a Cosmogonia. Esta pode ser encontrada em um texto conhecido chamado ¨O nascimento do Homem ¨, onde nos é contado que os deuses menores carregavam toda a carga da criação, e que os deuses maiores trabalhavam bem menos, ou seja, nas palavras literais do mito:
¨Quando os deuses agiam como homens, eles faziam todo trabalho, e muito labutavam. O trabalho era enorme, grande o esforço, pois os deuses do céu, os Anunaki, faziam os Igigi, os deuses mais jovens da Terra, carregar uma carga sete vezes maior (15).
Mas esta vida de labuta logo traz dissenção entre os deuses, e os deuses menores ameaçam revolta. Namu, a mãe de Enki, escuta o clamor dos deuses menores e leva tais palavras até seu filho. Enki resolve criar um substituto para fazer os trabalhos para os deuses. Através da mágica de Enki e de seus ajudantes, uma delas a escolhida de Enki, Ninhursag, tem origem a humanidade:
Enki, ao ouvir a voz de sua mãe Namu, levanta-se do seu leito em Halankug, seu espaço para reflexão," o sábio e ardiloso deus, o habilidoso guardião do céu e da terra, e construtor de todas as cuoisas, chamou Imma-en and Imma-shar. Enki então estendeu seu braço na direção delas, e viu que o feto estava crescendo, e Enki viu que o bebê se acordava com a consciência no coração" {16}
Enki então chama por Namu, para que ela "molhar o núcleo da argila do Apsu" , a partir da qual nasceram todos os deuses. Lá, Enki deposita o feto, e portanto em Namu foi o embrião da humanidade criado {17}. Esta parte do mito é elaborada em maiores detalhes no mito de Atrahasis. Neste mito, a criação dos homens e mulheres também é fruto da necessidade dos deuses de terem quem possa trabalhar para eles. Em resposta ao pedido dos deuses de que lhes sejam rendidos seus trabalhos, Enki é chamado para dar origem aos homens e mulheres, com a ajuada de Nintu (Ninhursag). Enki responde:
¨No primeiro, no sétimo e no décimo-quinto dia do mês, devo fazer um ritual de purificação por lavagem (18) Então, um deus deverá ser sacrificado. E os deuses poderão ser purificados por imersão. Nintu deverá então misturar a argila com a carne e sangue [deste deus]. Então, homem e deus irão existir juntos na argila. Que o rufar dos tambores seja ouvido para sempre, que o espírito venha a existir a partir da carne do Deus, que a deusa proclame então este ser como um símbolo vivo dela mesma. Que a deusa ensine ao ser que viver desta grande dádiva. E que para tal fato jamais seja esquecido, que o espírito permaneça para sempre¨ (19)
Creio ser esta uma das mais impressionantes passagens da literatura suméria. Mesmo começar a querer penetrar nas suas profundezas é uma tarefa de monta. Primeiramente, gostaria de salientar " o espírito/fantasma" que nasce do ritual de Enki aqui descrito. Estudiosos modernos geralmente crêem que este termo mostra um trocadilho entre as palavras etemmu (fantasma) e temmu (inteligência). Eles ignoram, entretanto, o fato de que temmu também é um termo usado para descrever o espírito sem corpo de homens e mulheres e que sobrevive à morte, ou seja, a Alma. Portanto, é importante de que entendamos de que do corpo do deus sacrificado foi criada a Alma, e não apenas uma criatura terrena nascida da argila transformada do Apsu. Além do mais, esta Alma deveria servir a um propósito maior do que o citado no mito ¨A criação do Homem", ou seja, enquanto ainda que os homens e mulheres estivessem destinados a preencher os trabalhos anteriormente exigidos dos deuses para o desenvolvimento da criação na Terra, a alma destes mesmos homens e mulheres surgiu, foi criada para servir como um sinal vivo do sacrifício do deus, que cedeu o seu espírito para a humanidade. E para que tal dádiva jamais fosse esquecida, a Alma a partir de então existiria para sempre, e os sacerdotes e sacerdotisas escribas descreveram tal fato poeticamente da seguinte forma: ..." E que o rufar dos tambores [energia, o pulsar do universo, grifo da tradutora] seja ouvido para sempre¨ . Portanto, os homens e mulheres foram criados tanto como seres físicos, nascidos da argila fértil das águas doces das profundezas da terra, e também como criaturas do espírito, com o sangue dos deuses e donos de uma alma imperecível e imortal, para servir aos deuses e aos seus irmãos e irmãs da criação, na lembrança eterna do sacrifício de vida mundana e eterna que criou a humanidade.
RELIGIÃO SUMÉRIA II
VIDA, MORTE E O SIGNIFICADO DO UNIVERSO
por Adapa
Thorkild Jacobsen, na sua grande obra "Treasures of Darkness" caracteriza a religião suméria em termos do conceito de imanência. A abstração da divindade para os sumérios mais antigos, portanto, desenvolveu-se das tentativas primitivas para conceitualizar as forças que compreendiam o mundo natural e os fenômenos dentro dele. Esta é uma visão do mundo naturalmente panteísta, sujeita a uma pluralidade limitada apenas pela extensão das divisões compreendidas na própria natureza. Estas divindades antigas tomaram formas que estavam intrinsicamente ligadas aos fenômenos que representavam; portanto, Ninurta, o ancestral deus sumério dos trovões e tempestades, era conceitualizado como um leão alado, cujos rugidos ecoavam em todos os lugares em tempos de tempestade. À medida em que a sociedade se desenvolveu, estas divindades gradualmente tomaram forma humana. Lentamente, de fenômenos da natureza, os deuses e deusas da Mesopotâmia tornaram-se a expressão dos homens e mulheres da região, ou seja " os deuses se destacaram gradualmente dos fenômenos da natureza aos quais estavam ligados e tomaram uma certa distância destes mesmos fenômenos " (20).
Com estas personalidades ampliadas, surgiram papéis mais abrangentes, à medida em que o embrião e núcleo de fenômenos divinos crescia para cobrir uma ampla variedade de abstrações relacionadas. Portanto, à medida em que foi progredindo o conceito da divindade Ninurta, por exemplo, ele passou a ser visto como possuidor de forma humana; e seu papel cresceu de um deus primitivo do trovão para se transformar no deus das tempestades da primavera, tempestades estas que devolviam a fertilidade à terra. Enquanto que a visão da sociedade do divino e suas funções no cosmos estavam-se expandindo, entretanto, permaneceria um aspecto central da religião suméria os laços estreitos entre estes deuses e os fenômenos externos por eles representados. O papel central da humanidade neste esquema cósmico era o serviço aos deuses (21).
" A liturgia teocêntrica, como poderíamos chamar, estava inteiramente identificada com o suporte/apoio aos deuses, ou seja, com o "a prover does deuses". Isto que dizer que o sustento destas personalidades divinas em tudo o que necessitassem para levar uma vida agradável e opulenta era encarado como uma obrigação moral, espiritual e física, pois os deuses e deusas tinham dado ao homens e mulheres o universo, e a humanidade, por conseqüência, cuidaria do conforto divino daqueles que tinham a eternidade para a administração dos desígnios do universo, uma vida melhor e mais abençoada do que a dos reis na terra " (22).
Este serviço, em geral, tomava duas formas: provisão e adoração. A humanidade deveria prover pelas necessidades diárias dos deuses: alimentos, água, cerveja. A humanidade também deveria adorar aos deuses. Esta adoração em geral tomava a forma do oferecimento de sacrifícios, em geral sob a forma de animais sacrificados, e oferendas tais como incenso, preces, hinos e rituais cíclicos prescritos. No centro destas duas práticas de serviço, estava a estátua de culto:
" Fundamentalmente, os mesopotâmicos consideravam que a divindade estava presente na sua imagem, caso esta imagem tivesse determinados aspectos e parafernalia, e fosse cuidada de uma certa maneira, estabelecida e abençoada pela tradição do santuário. O deus movimentava-se com a imagem quando esta última era carregada, expressando assim sua zanga contra a sua cidade ou um país inteiro. Apenas a nível mitológico acreditava-se que as divindades residiam em localidades cósmicas " (23)
A criação destes receptáculos divinos, como podemos chamar as estátuas de culto, era um trabalho de amor e dedicação. Muito cuidado era prestado à metamorfose ritual que transformaria uma estátua sem vida na manifestação do deus(a) que representava. " Durante estas cerimônias noturnas, as estátuas eram imbuidas de vida, seus olhos e bocas eram "abertos" de modo que as imagens poderiam ver e comer, além de serem submetidas ao ritual de "lavagem da boca", um ritual que concedia santificação especial " (24). Esta última cerimônia, consagrada a Enki, referia-se à imersão sagrada no sangue de um deus sacrificado que, segundo se dizia, iria purificar o divino: " No primeiro, no sétimo e no décimo-quinto dia do mês, eu farei a purificação por lavagem. Então, um Deus deverá ser sacrificado, e os deuses poderão ser purificados por imersão " (25).
Central à manutenção da figura divina eram suas refeições diárias. Esta geralmente consistia de uma refeição matutina, trazida quando o templo era aberto para suas ativdades diárias, e uma refeição vespertina, trazida antes do fechamento das portas do santuário. Estas refições pareciam ser servidas de uma forma precisa, conforme o costume das refeições servidas nos palácios reais:
" Primeiramente, uma mesa era trazida e colocada diante da imagem, seguida da água para abluções num receptáculo especial. Pratos líquidos e semi-liquefeitos em pratos adequados eram colocados à mesa numa posição pré-determinada, bem como eram colocadas as bebidas e taças. A seguir, cortes especiais de carne eram servidos como prato principal. Finalmente, eram trazidas no que alguns textos descrevem como lindos arranjos, portanto adicionando um elemento estético comparável ao costume egípcio de usar flores nestas ocasiões. Músicos tocavam e o local era purificado com incenso " (26). "Eventualmente, a mesa era retirada e removida, sendo que água novamente era ofericida à imagem para lavar seus dedos" (27).
O alimento era ritualmente compartilhado pela divindade, e pensava-se que tais alimentos e bebidas tivessem sido abençoados pelo contato divino. Como pensava-se que os alimentos eram capazes de transferir estas bênçãos àquele que o comesse, os alimentos eram levados ao rei. Da mesma forma, a água do recipiente que era usada para limpar os dedos das estátuas era espargida por sobre o rei e os sacerdotes para conferir bênçãos.
Que os homens e mulheres eram mortais, os antigos sumérios o sabiam. Eles tentam explicar este estado nos mitos de Atrahasis e Adapa. Entretanto, que a alma destes mesmos homens e mulheres era imortal, deste fato eles também tinham completa e perfeita certeza (28). A vida levada pelos espíritos dos mortos, entretanto, não era das mais invejáveis. A viagem para esta nova vida começava após os ritos funerários, quando a sombra começava a sua jornada para o Mundo Subterrâneo, através de uma abertura no túmulo, que permitia o acesso às Grandes Profundezas (29). Se os rituais funerários adequados não tivessem sido oferecidos, ou num caso mais extremo, se o corpo não tivesse sido enterrado, o espírito desencarnado permaneceria na terra, vagando a esmo, forçado a comer apenas restos da sarjeta e água suja (30). Os mais privilegiados que podiam ser enterrados de forma adequada, não tinham, porém, um destino muito melhor em termos de alimentos, conforme atestam inúmeros mitos, como o Épico de Gilgamesh, onde está dito que " fantasmas, tal qual pássaros, batem suas asas lá, sendo que o pó se acumula sem ser perturbado junto aos portais" (31). Portanto, era muito importante oferecer alimentos e água como oferendas funerárias, e uma obrigação de monta para os amigos e famílias daquele que morrera. Inúmeros cemitérios descobertos na Mesopotâmia incluem plataformas rituais e recipentes nos quais eram apresentadas as oferendas de alimentos e água, que eram feitas, aparentemente, em certas épocas do ano. Enquanto que tais oferendas poderiam fazer a vida no Mundo Subterrâneo mais suportável, ao fim e ao cabo a existência nas Grandes Profundezas era árida e monótona, e certamente a ser evitada (32). "Os sumérios tinham uma vaga idéia a respeito de qualquer outra vida que não fosse esta. Para eles, não havia nem inferno, nem paraíso; o espírito humano vivia após a morte, mas na melhor das hipóteses num mundo fantasmagórico e miserável" (33). Tal concepção da vida após-morte pareceria fazer a possibilidade da reincarnação um princípio da Religião Suméria, and na realidade há poucas ou quase nenhuma referência explícita sobre esta crença nos textos existentes. Isto seria irônico, entretanto, dado o que conhecemos de religião.
Na realidade, a crença na ressurreição é algo tão adequado à visão do mundo dos mesopotâmicos que devemos considerar seriamente que eles não foram mais explícitos a respeito, por que este era um fato tão real, que certamente valeria a pena explicar, especialmente para os ouvidos de místicos e estudiosos destes nossos tempos! Para os mesopotâmicos mais do que qualquer outro povo da antigüidade, esta crença permeava o cotidiano. Eles viam o nascer e o pôr-do-sol a cada dia, e este era um mistério cuja explicação podia ser encontrada em seus mitos e religião. Eles viam a passagem do sol do verão até o solstício de inverno, num ciclo eterno, ano após ano; eles acompanhavam o ciclo da lua, e seguiam Vênus/Ishtar pelo firmamento, sabendo que Ela desaparecia como a Estrela Vespertina, para retornar antes da primeira luz da aurora de cada dia. Seria realmente estranho que os mesopotâmicos, que tinham uma concepção vibrante da vida, do retorno à vida dos deuses acima deles, e dos animais e das plantas do Mundo Físico, não tivessem jamais se perguntado " será que os homens não retornam do Mundo Subterrâneo? " (34).
A resposta pode simplesmente ser que eles acreditavam realmente na reincarnação pessoal, apesar da falta de referências explícitas a respeito desta crença. Deveras, num mito obscuro temos que: "Após o Guardião e o Porteiro terem cumprimentado um mortal, os Anunaki, os grandes Deuses, se reúnem; Mami, aquela que fixa o destino, decide os destinos com eles. Eles determinam a morte e a vida, mas os dias da morte, eles não fixam " (35). Aqui, os deuses determinam não a vida e a morte, mas morte e vida, ou seja, os deuses determinam se o homem deve retornar à vida após ter passado seus dias na mansão dos mortos, apesar de não poderem estes mesmos deuses não determinarem quantos são estes dias (36). Na realidade, falar dos "dias da morte" implica que estes dias podem ter bem o seu fim. Além do mais, sabemos através de muitos mitos da existência das Águas da Vida no Mundo Subterrâneo. No Épico de Gilgamesh, por exemplo, sabemos como Gilgamesh é levado a uma fonte de água, sendo-lhe permitido que se lavasse, para que recuperasse a vida que havia perdido ao longo de sua jornada de crescimento interior:
"Ur-Shanabi levou Gilgamesh até o local de purificação e lhe estendeu um vaso com água, para que o rei de Uruk pudesse lavar seus cabelos sujos, de forma a ficarem o mais limpos possível. Ele jogou fora as roupas de pele que lhe cingiam o corpo, e o mar as carregou. Gilgamesh lavou seu corpo, até senti-lo limpo e refrescado. Ele colocou um novo diadema sobre seus cabelos. Ele vestiu um robe como sinal de orgulho até chegar a Uruk. Suas vestimentas ao longo da jornada de volta, não perderam a cor e permaneceram completamente novas " {37}
Mas por que estariam as águas da vida localizadas no Mundo Subterrâneo, a não ser se tais águas tivessem uma relação direta com os habitantes das Grandes Profundezas, os mortos? Bem, uma vez que aceitamos este fato, a que outra conclusão podemos chegar, a não ser que a reincarnação dos mortos era um princípio real na teologia da Mesopotâmia? Tal explicação empresta maior significado ao Mito de Adapa. Neste mito, Enki cria o seu sacerdote-chefe, chamado Adapa:
" Ele (Enki) fez com que o conhecimento amplo fosse perfeito nele, para descobrir os desígnios da terra. Para Adapa, Enki deu sabedoria, mas não lhe concedeu a vida enterna " (38).
É Adapa o sacerdote que cuida dos ritos no templo de Enki, quem faz o pão diário e quem vai à pesca para alimentar os sacerdotes do templo. Um dia, numa destas jornadas de pesca no mar, o barco de Enki é virado de cabeça para baixo pelo Vento Sul. Em sua fúria, Adapa quebra as asas do Vento Sul, demonstrando, portanto, ter substanciais poderes mágicos. Anu, ao descobrir tal fato, convoca Adapa para enfrentar julgamento nas Esferas Superiores. Enki ensina a Adapa como evitar a ira de Anu, através da intercessão de Dumuzi e Ningiszida, mas instrui também seu sacerdote-chefe para que não coma alimento algum que lhe seja oferecido, pois tal alimento significa o pão da morte, e que também não beba da água que lhe for oferecida, pois esta é a água da morte. Assim instruído, Adapa segue à risca as instruções de seu deus e protetor:
" Eles trouxeram-lhe pão da vida, mas Adapa recusou todo tipo de alimento. Eles trouxeram-lhe as águas da vida, mas Adapa recusou-se a beber. Eles trouxeram até Adapa novas vestimentas, que o sacerdote de imediato vestiu. Eles lhe trouxeram óleo, e Adapa ungiu-se [com prazer e reverência]. Anu, que a tudo assistia, voltou-se para Adapa: ‘Ora, Adapa, por que não quiseste comer? Por que não quiseste beber? Não queres te transformar num imortal?" (39). Adapa explica a Anu que seu deus e protetor, Enki, instruiu-o a não provar dos alimentos ou bebidas das Esferas Superiores. Ele diz então a Anu: "Oh, grande Anu, eu vos saúdo! O privilégio de tornar-me divino, devo recusar, mas jamais esquecerei a honra que vós tivestes por bem conceder a mim. Sempre no meu coração recordarei vossas palavras, e minha memória irá reter para sempre a vossa grande bondade para comigo. Grande Senhor, não me culpais por demais, mas devo partir, pois meu deus aguarda o meu retorno" (40).
Estudiosos em geral dizem que Enki recusou-se a dar a imortalidade a Adapa por ter pregado uma peça no seu sacerdote mortal. Afinal, Enki também é conhecido pela astúcia e pelo ardil. Esta "peça" é, portanto, vista como um tipo de explicação superficial para a mortalidade humana. Mas creio ser esta uma explicação difícil de se aceitar. Adapa é o sacerdote em quem Enki mais confia, o seu filho mas sábio. Pregar uma peça desta magnitude simplesmente não faz sentido. Foi Enki, afinal, quem salvou a humanidade da destruição no mito de Atrahasis (o Noé sumério), ao instruí-lo para construir a arca e assim salvar a si e aos seus do dilúvio decretado por Enlil. Mesmo no mito de Enki e Ninmah, quando ele cria um ser que Ninmah não pode controlar ou curar, depois de fazê-la concordar em entrar em competição com ele, Enki usa a oportunidade para ensinar uma lição, ou seja, são necessários os esforços conjuntos de Enki e de Ninmah para criar um ser "completo". Mais ainda, neste mesmo mito, Enki se esforça e muito para corrigir os erros da peça que ele mesmo pregou. Aceitar que Enki não apenas iria pregar uma peça em Adapa, mas também mentir para ele, dizendo que a Adapa seria oferecido o pão e as águas da morte, ao invés do pão e das águas da vida eterna, é implausível. Devemos, portanto, tomar as palavras de Enki ao pé da letra e supor que comer o pão da vida imortal é comer o pão da morte, e que tomar pois das águas da vida é beber das águas da morte. Na verdade, Anu oferece o pão e as águas da vida para Adapa apenas depois de descobrir que os dons da Sabedoria tinham sido concedidos a ele (e em contrapartida, à humanidade também) por Enki. São estas as palavras de Anu ao saber deste fato: " Por que Ea ensinou à triste humanidade os segredos do céu e da terra, por que dar-lhes um coração atribulado? Foi Enki quem lhes deu este dom!" (41). Enki, além de ser o deus dos ardis, é o patrono da esperteza, e um deus que fez muitos esforços para servir e proteger a humanidade. É difícil de imaginar que tanto esforço tivesse sido feito em prol da humanidade apenas para dar aos homens e mulheres uma sentença de tédio eterno. Não, inerente ao mito de Adapa está a crença de que há algo que aguarda a humanidade, para o que a morte é um passo necessário, e que ao negar a imortalidade aos homens, o suposto estado semelhante ao das divindades, preservou-se também o destino da humanidade. A Morte, então, é realmente um começo aos olhos dos sumérios; um começo que os deuses preservaram para nós.
RELIGIÃO SUMÉRIA III
OS SINAIS DO CÉU E DA TERRA
por Adapa
Os sumérios, como os gregos, começavam a contar cada dia a partir do pôr-do-sol. Cada dia, portanto, era contado como o período que ia de pôr-do-sol a pôr-do-sol, Kid-da-at u-mu . Os meses, Itu, começavam no período da lua nova (Bu-ub-bu-lum, literalmente, o "tempo dos arroubos da lua"), que começavam na hora em que a lua emergia no céu depois de ter desaparecido durante a lua nova (U-na-am, literalmente, o dia da renovação das luas). Ao final de cada mês, os astrólogos da Antiga Mesopotâmia subiam aos parapeitos dos deus tempos para observar esta primeira aparição, para desta forma anotar o começo de cada mês (42). Estes meses tinham cerca de 30 dias, sendo marcados o sétimo dia (crescente) e o décimo-quinto dia (lua cheia) de cada mês. Estes dias, juntamente com o período da lua nova, formavam o ciclo sagrado do mês. Os sumérios comemoravam estes três aspectos das fases da lua no primeiro, no sétimo e no décimo-quinto dia de cada mês. Estes três dias formavam os Festivais Mensais. A importância destes dias sagrados é citada no mito de Atrahasis, Tábua I, colunas 204-207, quando Enki começa os preparativos para a criação dos homens e mulheres:
" Enki abriu sua boca e endereçou-se aos grandes Deuses: ‘ No primeiro, no sétimo, no décimo-quinto dia do mês, farei um banho de purificação ´ (43). A necessidade de observação destes dias sagrados é reiterada numa série de cartas mesopotâmicas oficiais coletadas, que se referem à necessidade de "passar o primeiro, o sétimo e o décimo-quinto dia, como nos foi ensinado" . Estas observâncias, no mínimo, incluíam um banho ritual: a imersão sagrada nas simbólicas Águas da Vida.
O primeiro mês do ano, Barag-Zag-Gar, começava no período da primeira lua nova que se seguia à colheita da cevada (nosso Março-Abril). Os meses seguiam então a cada 30 dias, estendendo-se por 12 meses. Este ciclo lunar, entretanto, em geral deixava uma lacuna dentro do ano solar que deveria ser preenchida. Para resolver este problema, e para assegurar que o primeiro mês continuasse a seguir a colheita da cevada, os sumérios colocavam um mês intercalar, chamado de Itu-diri antes do 12º mês, Itu-Se-Gur-Kud, o "mês da colheita da cevada". Este mês intercalar era usado apenas quando, após ter sido examinada a duração do tempo remanecente da estação da cevada, era determinado que o Barag-Zag-Gar não iria dar-se diretamente depois da colheita da cevada. Sob o Ciclo de Meton, tais meses intercalares seriam utilizados com uma freqüência cerca de sete por cada 19 anos.
Da mesma forma que foram os sumérios capazes de ligar o ciclo do ano com o Círculo da Vida, eles também conseguiram operar um sistema de contagem do tempo dentro dos limites do círculo. O tempo estava relacionado com o grau de movimento aparente do Sol, Shamash, à medida em que este se deslocava nos céus a cada dia. Cada grau de movimento era calculado como 4 minutos, chamado um "us". Considerava-se que um círculo completo tinha 12 "horas temporais", ou "beru", que eram literalmente horas duplas de 30 Us. Os sumérios não tinham o conceito de contar a luz do dia, apesar de estarem cientes das variações na duração das horas da noite e do dia durante o ano. Portanto, ao longo de todo ano, considerava-se que o dia tinha 6 Beru de horas de luz e 6 Beru de horas de escuridão, apesar da duração real destas horas ser variável. Para corrigir este fato, eram feitos ajustes nas horas reais, em oposição às horas temporais. Para este fim, uma série de associações eram feitas. Por exemplo, uma hora temporal de luz do dia mais uma hora temporal de durante a noite era sempre igual a 2 horas REAIS. Portanto, uma medição da duração em horas reais do dia ou da noite iria produzir a solução da duração de seu inverso. Acreditava-se também que existiam relações específicas entre os meses do ano, observadas entre estes espaços de tempo. Especificamente, nos meses dos Equinócios de Primavera e de Outono, a medida real das horas durante a noite e o dia eram consideradas iguais. Em contrapartida, no mês do Solstício de verão, considerava-se que a luz do dia tinha o dobro da duração real das horas da noite. Considerava-se que as horas da noite tinham o dobro de duração das horas do dia. Além do mais, eles acreditavam que os meses que antecediam os equinócios tinham a mesma proporção de horas diurnas reais para horas noturnas reais à medida em que o mês prosseguia na direção dos equinócios, e que o mês precedente aos solstícios, da mesma forma, possuía a mesma taxa de horas noturnas relativas às horas diurnas reais à medida em que o mês seguia na direção dos Solstícios. Com este complexo sistema de relações, o cálculo do cumprimento real da luz do dia e da noite era extremamente simplificado.
Notas{1} Gwendolyn Leick, Sex and Eroticism in Mesopotamian Literature, p. 13-14 {2} Id pg. 16 {3}o termo Anu aqui não deve ser confundido com o deus Anu. Aqui, este termo se refere genericamente ao céu ou firmamento {4} A. Heidel, A Babylonian Genesis, p. 51 {5} S.N. Kramer, From the Poetry of Sumer : Creation, Glorification Adoration, p. 23 {6} S. N. Kramer, Sumerian Mythology, p. 39 {7} Ibid {8} Id pg. 40 {9} M. Baigent, From The Omens of Babylon: Astrology and Ancient Mesopotamia, p. 41 {10}J. Van Dijk, "The Birth of Wood and Reed", Acta Orientaliia 28 I, p.45 {11} L.W. King, Babylonian Religion and Mythology, p.28 {12}Id pg. 31 {13}Chaldean Magic and Sorcery, p. 153 {14} Ibid. {15}Jean Bottéro, Mesopotamia: Witing, Reasoning, and The Gods, p. 222 {16}T. Jacobsen, The Harps That Once...Sumerian poetry in Translation, p. 155-156 {17} Id at p.156-157 {18} para uma explicação a respeito do primeiro, sétimo e décimo-quinto dias do mês, leia a seção entitulada ¨Os sinais do céu e da terra¨. {19} Stephanie Dalley, Myths From Mesopotamia, p.15, note-se, entretanto, que alterei as últimas três linhas, substituindo a tradução de Moran de 1970, pois creio que tal ato protege a integridade do sentido desta parte da passagem de forma mais efetiva e correta. {20} Jean Bottéro, Mesopotamia : Writing, Reasoning, and The Gods, p. 217 {21}veja seção precedente {22} Bottero, Supra nota 12, pg. 225 {23} Leo Oppenheim, Mesopotamia: Portrait of a Dead Civilization, p. 184 {24} Id at 186 {25} Supra note 16; veja também seções precedentes. {26} isto não era um ato religioso, mas algo feito para controlar os odores dos alimentos. {27} Oppenhiem, Supra nota 19, pg. 188 {28} see previous section {29} Bottero, Supra nota 12, pg 230. {30} A. Jeremias, The Babylonian Conception of Heaven and Hell, p. 14-15 {31} Leonard Wooley, The Sumerians, p. 120 {32} Bottero, Supra nota 12, pg. 277 {33} Ibid. {34} J. Morgenstern, The Use of Water in The Asipu Ritual, Volume I of The Doctrine of Sin in The Babylonian Religion, p.32 {35} E. Schrader, Keilinschriftliche Bibliothek, Vol. VI, I, 228 {36} Ibid {37} Stephanie Dalley, Myths From Mesopotamia, p. 118 {38} Id pg. 184 {39} Id pg. 187 {40} Lewis Spence, Myths and Legends of Babylonia and Assyria, p. 120 {41} Dalley, Supra note 37 {42} M. Baigent, Supra note 9. p. 50 {43} Dalley, Supra note
AUTOR: ADAPA (TWIN RIVERS RISING, 1995-1997)
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