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Gênero e Literatura Gaúcha

Elaine Santos
UFSM


A realização do presente trabalho tem como objetivo um rastreamento da representação feminina feita pela literatura produzida no Rio Grande do Sul, entretanto, a diretriz que orienta a consecução dessa atividade diz respeito aos estudos de gênero, entendido como uma representação da dualidade social do masculino/feminino que se altera conforme o tempo e a sociedade em que se manifesta.

O trabalho não pretende ser nenhuma inovação nas discussões sobre gênero, mas busca inserir nessas discussões as representações que o ser feminino recebe da literatura dita gaúcha.

O conceito de gênero é bastante recente e ainda suscita controvérsias. Guacira Lopes Louro, no artigo Nas redes do conceito de gênero, tece algumas considerações relevantes:

  • Nos últimos anos, vimos notando uma referência crescente a ‘gênero’ nos estudos e pesquisas acadêmicas, nos discursos de vários campos profissionais e até mesmo na mídia. De uma expressão pouco usual, ela se torna quase freqüente. Mas estaremos todas/os falando da mesma coisa quando falamos em gênero? Que sentidos, quantos sentidos estão contidos nessa expressão? (...). Acredito que talvez ainda estejamos enredadas/os nesse conceito e que valha a pena ensaiar um desembaraçamento dessas redes.
  • A pesquisadora afirma que o conceito tem sido utilizado por diferentes correntes: marxistas, pós-estruturalistas, lacanianos, feministas radicais, provocando diferentes interpretações, essa diversidade de interpretações provoca a dificuldade de uma definição ‘canônica’ de gênero, definição que, por sua vez, vem opor-se aos propósitos daqueles que se dedicam ao estudo da matéria. Lopes Louro assevera:

  • O aparecimento do conceito de gênero provoca algumas turbulências nesse cenário [acadêmico]. Se por um lado sugeria, de modo mais imediato, uma ancoragem teórica, por outro parecia implicar uma abrangência que poderia representar um novo ocultamento do sujeito feminino (...). No entanto, o conceito passava a circular entre estudiosas/os brasileiras/os e as distinções que ele buscava acentuar pareciam, a muitas/os de nós, importantes e merecedoras de atenção.
  • Um dos principais problemas que se colocavam então diz respeito à linguagem. Se em inglês a palavra gender – diferença sexual, sexualidade, opõe-se a sex; o mesmo não ocorria em português, língua em que a palavra gênero comporta diferentes acepções como, por exemplo: conjunto de seres que têm semelhanças importantes entre si ou espécie ou qualidade. Assim, foi necessária a ‘construção’ de um sentido para a palavra, conforme declara Lopes Louro:

  • (...) gênero não pretende significar o mesmo que sexo, ou seja, enquanto sexo se refere à identidade biológica de uma pessoa, gênero está ligado à sua construção social como sujeito masculino ou feminino.
  • Entendendo-se, pois, gênero como uma construção social – logo, histórica, admite-se uma pluralidade de conceitos, de acordo com o ambiente histórico e social, em que a palavra gênero esteja inserida.

    Assim posto, uma pluralidade de conceitos, de acordo com Lopes Louro:

  • (...) implicaria admitir não apenas que sociedades diferentes teriam diferentes concepções de homem e de mulher, como também que no interior de uma sociedade essas concepções seriam diversificadas, conforme a classe, a religião, a raça, a idade, etc.; além disso implicaria admitir que os conceitos de masculino e feminino se transformam ao longo do tempo. Assim, o conceito buscava se contrapor a todos/as que apoiavam suas análises em argumentos essencialistas, ou seja, apontava não para uma essência feminina ou masculina (natural, universal ou imutável), mas para processos de construção ou formação, histórica, lingüística e socialmente determinados (...).
  • Sob esta ótica, que entende gênero como um conceito plural, que envolve construção, transformação social e histórica, o presente trabalho busca rastrear as representações da mulher feitas pela Literatura produzida no Rio Grande do Sul, procurando destacar aquelas obras que ‘borram’ o conceito de gênero enquanto sexo, identidade puramente feminina.

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    2. Rio Grande do Sul: uma sociedade historicamente dominada pelo macho
    3. De acordo com Guilhermino César, o nome do atual Estado do Rio Grande do Sul teria aparecido pela primeira vez no mapa de Gaspar de Viegas sob a denominação de Rio de São Pedro, em 1534. Guilhermino César (1993:7), no ensaio Ocupação e diferenciação do espaço, porém adverte que o estado teria nascido, naquela data: " para a cartografia, mas não atraiu povoadores que o individuassem, lançando vida no chão inculto, fazendo rebentar dele uma sociedade organizada." De fato, a colonização do território gaúcho processou-se de maneira bastante tardia. O desinteresse pelas terras sulinas justificava-se pela preocupação da Coroa Portuguesa em obter os maiores lucros possíveis da cultura canavieira, na região Nordeste.

      O Rio Grande do Sul permaneceu terra de ninguém, durante muitos anos, entregue a uns poucos aventureiros, que visitavam seu território em busca de gado, durante os combates fronteiriços ou para ‘raptar e comercializar’ mulheres indígenas.

      As condições geográficas do litoral e o desconhecimento das qualidades do solo gaúcho não chamaram a atenção do colonizador português. Mas, em uma penetração que ocorreu pelo interior do Continente, coube aos padres jesuítas, portugueses e espanhóis, lançarem o fundamento básico para a ocupação do território gaúcho: a pecuária, atividade essencialmente masculina.

      O interesse que a exploração da pecuária despertou no centro do País determinou a fundação oficial do Rio Grande do Sul, ocorrida em 19 de fevereiro de 1737, quando desembarcou, no território de São Pedro, a expedição militar comandada pelo Brigadeiro José da Silva Pais. O posto militar, mais uma vez, uma tarefa dedicada exclusivamente ao homem, erigido na atual cidade de Rio Grande, serviria para garantir o comércio de gado, além do contrabando de mercadorias do Prata.

      No entanto, não havia a definição dos limites territoriais entre as possessões portuguesas e espanholas no extremo sul do Continente. As duas Coroas, da Espanha e de Portugal, celebravam tratados, ao mesmo tempo que estimulavam as invasões territoriais. Aliada à débil segurança e à distância do centro do país, "havia falta de tudo: de remédios, de igrejas, de tecido, de cal, de pregos, de pedras, de telhas, de madeira, de mulheres, de distrações, de moedas e de tijolos (1993:11)." Esses fatores determinavam o imediato povoamento do território. Com o objetivo de ocupar a região, Portugal enviou para o sul, a partir de 1752, inúmeras famílias provenientes das Ilhas dos Açores e da Madeira. A chamada política dos casais tinha como meta o assentamento dos ilhéus na região dos Sete Povos das Missões, que passaria ao domínio português após a assinatura do Tratado de Madrid em 1750. Na verdade, os casais açorianos não chegaram a ocupar a região, pois, após a morte de D. João V, rei de Portugal, a execução do tratado de Madrid foi suspensa e a troca acertada não ocorreu. Mas, a chegada dos açorianos marca definitivamente a presença feminina nos pagos sulinos – a mulher, ainda que dominada pelo marido ou pelo pai, passa a fazer parte do universo provinciano, na condição subalterna de mãe, esposa, trabalhadora rural.

      Durante o século XIX, com o advento da Independência do Brasil e a política adotada pelo nascente Império, que pretendia a diversificação e o desenvolvimento da atividade agrícola, bem como a substituição gradativa da mão-de-obra escrava pelo trabalhador livre, tomou impulso o processo de imigração. Colonos alemães, italianos, suíços, poloneses chegaram ao Rio Grande do Sul, estabelecendo-se, sobretudo, na zona nordeste da então Província e dedicando-se à agricultura e, posteriormente, ao comércio e à indústria.

      A efetiva ocupação do território e a consolidação da independência política da Argentina, do Brasil e do Uruguai serviram para garantir a paz externa e a definição dos limites territoriais do Rio Grande do Sul. No entanto, as terras gaúchas ainda seriam abaladas pela Guerra dos Farrapos. A Revolução que se estendeu por dez anos, entre 1835 e 1845, pretendia a independência da província em relação ao Império do Brasil, seguindo o exemplo do Uruguai, que em 1828, tornara-se um país independente. Enquanto os homens foram para a guerra, coube à mulher manter a família, a estância e esperar...

      A rebelião teve seu término em 28 de fevereiro de 1845, com a assinatura da Paz de Ponche Verde. Luiz Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias, ofereceu anistia geral e paz honrosa aos farrapos, prevalecendo, porém, os interesses do Governo Central.

      É nesse contexto social, político e econômico que tomará forma o mito do gaúcho. De acordo com Marobin (1985: 67), em seu livro A Literatura no Rio Grande do Sul, o habitante da região após a Revolução Farroupilha ganha prestígio:

      No meio da infinda gadaria, que se confundia ao longe, com o horizonte, o centauro das coxilhas emergia, do meio dos animais, vigoroso, exuberante, mítico, como a encarnação da força dominadora.

      O homem adquire o status de mito, senhor das coxilhas, enquanto a mulher, permanece em sua tarefa cotidiana: criando filhos, servindo ao marido, trabalhando na roça e esperando...

    4. A mulher na literatura gaúcha

    Em seu livro Literatura Gaúcha: temas e figuras da ficção e da poesia do Rio Grande do Sul (1985), Regina Zilbermann traça um perfil da mulher: escritora e personagem na literatura sul-rio-grandense. Ao iniciar o capítulo 5 do referido livro, a estudiosa retoma uma frase antológica de Donaldo Schüller: "Nesta terra de centauros, a feminilidade é temida." Cabe a indagação: Por quê? Talvez porque à mulher gaúcha não se tenha dado a possibilidade do ser feminino, conforme destaca Zilbermann (1985:74):

  • (...) o fato pode ser (...) atribuído à situação bastante secundária a que foi submetida a mulher na sociedade sulina, sobretudo enquanto durou o domínio da economia pastoril e do sistema patriarcal no campo.
  • À mulher gaúcha eram legados o obscurantismo, a falta de instrução, o isolamento, a submissão.

    Na segunda metade do século passado, porém, inicia-se, com a professora Luciana de Abreu e os educadores Aurélio Bittencourt e Augusto Totta, uma campanha em favor da alfabetização da mulher. Zilbermann (1985: 77), no entanto, assinala:

  • (...) elevá-la consistia em conferir-lhe condições para assumir a função que lhe caberia na emergente sociedade urbana e burguesa: o papel doméstico e materno, obedecendo às reputadas leis da natureza.
  • Tal situação eqüivale dizer que embora entendida como uma revolução social, a alfabetização da mulher não lhe confere uma mudança de status, ela permanece apenas com suas funções biológicas e matrimoniais.

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    2. As escritoras:
    3. No campo da Literatura, a mulher carecia então de reconhecimento e oportunidades, pode-se somente mencionar poetisas como Delfina Benigna da Cunha, Maria Josefa Barreto, Maria Clemência da Silveira Sampaio e um pequeno universo de outras autoras que não adquiriram maior notoriedade. A respeito da obra dessas autoras, Zilbermann (1985: 79) adverte que seus trabalhos não tiveram "maior significação literária."

      Por outro lado, deve-se salientar que, segundo Zilbermann (1985: 79):

      (...) embora os poetas mencionem amores e abandonos, solidão e ânsia de morte, decorrente da desilusão afetiva, está ausente, por sublimado, o erotismo feminino. A paixão, se existe, dá-se num ambiente descarnado, em que as imagens neutralizam o desejo.

      A mulher permanece objeto, não adquire, durante o século XIX, o estatuto de um ser social, restrita que estava ao bailes e saraus, ou de um ser histórico, relegada ao papel daquela que espera... o marido, o filho, o neto que voltam do trabalho ou da guerra e que faz da sua vida um prolongamento da vida daqueles.

      No século atual, destacam-se escritoras como Lila Ripoll, que, no entanto, assume os temas universais do neo-simbolismo, mas aparecem autoras que anseiam pela mudança social, como Lara Lemos – Poço das águas vivas (1957), Canto breve (1962), Aura amara (1968), Para um rei surdo (1981) -; ou que encaminham suas personagens à emancipação, como Tânia Faillace – Fuga (1964), Adão e Eva (1966), O 35o ano de Inês (1971), Mário/Vera (1983). Entretanto, seria com A Baguala de Ieda Inda que as estruturas sociais e literárias sul-rio-grandenses passariam por um teste. A obra, conforme Zilbermann(1985; 86):

      Desvela a atitude autoritária dos até então galantes gaúchos rio-grandenses, sintetizados na personalidade do marido. Contraria o estereótipo do estrangeiro indigno de confiança, ao valorizar os gestos do jovem Martín, elevando-o à condição de herói que luta por sua amada e pela liberdade de sua terra. E enfoca o tema da mulher adúltera não na perspectiva da culpa e necessidade de punição, mas legitimando sua conduta enquanto busca de novos horizontes existenciais e afetivos, até então domados pela banal rotina doméstica.

      Abre-se uma nova perspectiva de manifestação da mulher, borra-se o estereótipo masculino e feminino consagrado pelo cânone literário sul-rio-grandense. A mulher adquire a oportunidade de enfrentar o meio social, assim como o homem – o centauro das coxilhas – passa por um processo de desmitificação.

      Uma linha semelhante àquela proposta por Ieda Inda será seguida por Lya Luft, que coloca suas personagens no limite da condição humana – a solidão e a loucura – em busca de si mesmas, de uma identidade pessoal e social. As personagens de Luft, porém, sucumbem em seus universos particulares e não alcançam a condição de seres socialmente ativos.

    4. As personagens:

    Tecendo considerações a respeito das personagens femininas da literatura produzida no Rio Grande do Sul, Regina Zilbermann (1985: 88) assevera que a mesma dificuldade "em traçar um caminho autônomo transparece na trajetória ficcional das personagens femininas dos romances de Moacyr Scliar, Assis Brasil e Donaldo Shüller."

    Em Os Deuses de Raquel (1975), Moacyr Scliar concede à protagonista a mesma ambivalência que caracteriza seus personagens masculinos – um ser dividido, sem identidade.

    Manhã Transfigurada (1982), de Luiz Antonio de Assis Brasil, segundo Zilbermann (1985: 88) traz "o conflito entre o código imposto à mulher e seu esforço de libertação." Camila, a personagem principal, embora adote a determinação e desafie as leis sociais e religiosas, sucumbe de modo teatral e arrasta consigo todas as pessoas que lhe estão próximas.

    Em A mulher afortunada (1981), Donaldo Schüller também propõe a temática da emancipação feminina, no entanto, a temática serve como pano de fundo para que o narrador conte a história da mulher no Rio Grande do Sul – seu heroísmo na defesa da família e do amor, contraposto a sua fragilidade, que a diminui e marginaliza.

    Quanto a Chimarrita (1985), de Donaldo Schüller, a obra destaca-se de acordo com Zilbermann porque (1985: 90):

  • (...) recapitula o itinerário do Rio Grande do Sul, analisando-o sob a ótica da mulher que sofreu a ação predatória do machismo. Assim, verbaliza outra versão do passado, agora na voz do(a)s oprimido(a)s e (...) expressa o empenho da mulher em prol de sua autonomia, propondo-se a repensá-la na perspectiva temporal que cristalizou preconceitos ainda vigentes _, para revelar seus pontos em comum.
  • Em Camilo Mortágua (1980), de Josué Guimarães,destacam-se duas figuras femininas: Mocinha e Leonor. Ambas, porém, configuram-se como estereótipos.

    Mocinha é "a figura delicada (...) alegre e sorridente" (1997: 133), a moça que ama, que se entrega docilmente e que, quando abandonada, prosta-se num silêncio abnegado, em que o amor ainda é o móvel de tudo.

    Leonor, por sua vez, aparece como "uma das mulheres mais belas" (1997: 233), a mulher que brilha socialmente, que domina pela sedução, pela malícia e que não teme, para satisfazer seus desejos, ofender e magoar aos que a cercam.

    A obra, pois, insere-se no cânone da literatura sul-rio-grandense, não concedendo à mulher a condição de ser que atua independentemente do homem, de ser que constrói sua própria identidade, de ser que atua doméstica e socialmente.

    Cabe destacar, por fim, a produção de Érico Veríssimo, considerado pela crítica como aquele que valoriza a personagem feminina em suas obras. No entanto, uma análise superficial de romances como Clarissa e Música ao Longe permite a avaliação de uma moça sujeita aos padrões sociais, presa às tradições. Quanto a trilogia de O Tempo e o vento, na obra seres femininos que adquirem a condição masculina para sobreviver num universo dominado pelo macho e que, em conseqüência, perdem a identidade pessoal.

     

    Considerações finais

    Os estudos acerca de gênero recentemente têm sido divulgados e, por isso, ainda carecem de maior aparato teórico. Ainda assim investigar sob esse prisma uma rica literatura como a sul-rio-grandense apresenta-se como uma atividade inovadora e instigante, afinal essa literatura foi produzida em uma região em que as diferenças biológicas entre homens e mulheres encontram-se fortemente marcadas.

    Literatura produzida em um universo assim configurado, o rastreamento, ainda que superficial, aqui realizado demonstra que essa literatura ainda está distante daquele conceito de gênero enunciado por Lopes Louro, mas que algumas tentativas têm sido feitas no sentido de encaminhar a representação feminina à libertação, dando à mulher um estatuto de ser social, que atua, que modifica, que reage, que busca, que, enfim, vive.