Tratados de Xamanismo - capítulo 1 (Capítulo completo)

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O conhecimento desconhecido.

 

Durante toda a noite fiquei ali observando e fazendo anotações. Peguei o gravador voltei a fita para gravar novamente. Nesse momento tive uma idéia. Coloquei o gravador para reproduzir o som que já estava gravado. O som dos tambores pararam. Só ouvia o som do gravador. Desliguei o gravador dois minutos depois, mas o som dos tambores não voltaram. Resolvi ficar ali mesmo até amanhecer para poder explorar melhor o lugar na luz do dia. Eu tinha certeza que aqueles que estavam tocando aqueles tambores ouviram meu gravador. Eu tinha impressão de ter interrompido o ritual. No momento em que este pensamento passou-me pela mente, ouvi uma voz forte e grave atrás de mim. - Você interrompeu a cerimônia. - Disse a vós. - Tomei um tremendo susto. Cai no chão, soltei um estrondoso grito de pavor, derrubei máquina, lanterna, gravador e tudo o mais no chão. Quando consegui recobrar os sentidos, vi um índio de cócoras com os braços cruzados sobre os joelhos olhando-me fixamente. Era um homem alto de corpo atlético. 

 

- Você me assustou . Disse eu. -

 

- Não foi minha intenção. - Disse ele falando em espanhol.

 

- Quem é você? - Perguntei.

 

- Como pode ver, sou um índio. E você, o que está fazendo aqui? -

 

- Sou uma pesquisadora. Estou aqui para encontrar um aldeia. Você sabe de onde vinha o som dos tambores? -

 

- Sei sim. Este é um lugar sagrado onde fazemos cerimônias. - Respondeu.

 

- Mas onde estão os tambores? Onde estão os outros? Onde é a aldeia? - Perguntei logo tudo de uma vez.

 

- Você faz muitas perguntas. - Disse ele.

 

- O que quer exatamente? -

 

- Já disse. Quero encontrar a aldeia de onde vinha o som dos tambores. Quero entrevistar os índios, pesquisar sobre o conhecimento deles, os rituais, a medicina que utilizam, alimentação, etc. - 

 

- Não é uma tarefa fácil a sua. - Respondeu.

 

- Porque não? - Perguntei.

 

- Eles não vão deixar você se aproximar deles.

 

- Porque não?. - Perguntei novamente.

 

- Eles são sacerdotes, e não pretendem ter nenhum contato com a sua civilização. Para eles, todos ainda são conquistadores espanhóis. -

 

Mas isso já faz muito tempo. Nós somos cientistas, nosso interesse é puramente cultural. Estamos aqui para estudar seus conhecimentos. - Ele me interrompeu dizendo que não adiantava em nada minhas boas intenções. - Continuei com minha insistência em encontrá-los, mas ele nem se mexeu do lugar, e não disse mais nada.

 

O dia já começava a chegar, e eu pude observá-lo melhor a luz do dia. Era um homem muito forte. Devia ter um metro e oitenta talvez. Não tinha nenhum pêlo no corpo a não ser os cabelos.  Perguntei o nome dele, e ele disse que se chamava Raamã. Perguntei onde ficava a aldeia dele, e ele respondeu que ficava mais ao sul da cordilheira. Convidei-o para descermos até o meu acampamento na beira do riacho mais abaixo, e ele concordou. Na decida notei como ele se movia, tinha a agilidade de um felino. 

 

Chegamos no acampamento, guardei meus equipamentos, e sentei-me numa pedra a beira do riacho com meu caderno de anotações em punho.

 

- Fale-me sobre o seu conhecimento, sobre a aldeia dos tambores. - Indaguei.

 

- Se você pretende anotar tudo isso no seu caderninho, vai precisar de toda a floresta convertida em papel para escrever. - Respondeu ele.

 

- Porque acha isso? Vou anotar apenas alguns tópicos para desenvolver um texto depois. - Disse eu.

 

- O conhecimento dos sacerdotes Incas está fora do seu alcance. - Disse.

 

- Porque acha isso? - Retruquei. -

 

- O que você chama de conhecimento é muito diferente daquilo que os Incas chamam de conhecimento. Quero dizer, do conhecimento que eles detêm.. - 

 

- Não sei se entendo o que você quer dizer. - Disse eu.

 

- É simples. Pense. Quanto tempo tem sua civilização. A deles tem onze mil anos.  Trazem de seus ancestrais um conhecimento milenar muitas vezes maior que aquilo que a sua civilização chama de conhecimento.  Aliás, a maior parte do conhecimento deles é desconhecido para vocês. Eu chamaria de conhecimento desconhecido. É paradoxal, mas é verdadeiro.

 

- Não sei ainda onde você quer chegar. - Disse eu.

 

- Eles conseguiram chegar a totalidade da consciência.

 

- Pode explicar melhor? - 

 

- Sim. Normalmente os humanos usam quase dez por cento da sua capacidade de percepção. Os antigos descobriram técnicas para aumentar  o poder perceptivo. Isso porque a percepção é a chave do conhecimento. Você pode notar que uma pessoa é mais inteligente que outra. O que é real é que uma pessoa tem o poder perceptivo mais desenvolvido que a outra. Inteligência é subproduto da percepção. Através de exercício e técnicas, os sacerdotes conseguiram quebrar a barreira da percepção consciente. Seria mais certo dizer soltar a percepção. Porém, é necessário um guia  para instruir e controlar os efeitos. - 

 

- Que efeitos? pode falar a respeito? - Perguntei.

 

- Você pode perder sua referência de ser humano, e tornar-se uma aberração. -

 

- Ainda não entendi. -

 

- Os humanos tem o que chamamos de idade sensorial. É totalmente variável de pessoa para pessoa. A maioria da população civilizada está em média com idade quatro. Muito poucos ultrapassam para idade cinco ou seis. Você pode encontrar presidentes ou pescadores com a mesma idade sensorial. Só a partir da idade seis é que a pessoa nota que ela é diferente dos demais. Normalmente o que acontece na sua civilização é que essas pessoas passam a não entender o que está acontecendo com elas porque seus cientistas ainda não dominaram este conhecimento. É ai que as pessoas começam a se convencer que estão ficando loucas. Aliás, loucura é um estágio de percepção não conhecida. É normal um pouco de desequilíbrio quando a pessoa está passando de uma idade mental para outra. Mas, ao passar da idade seis, as turbulências são muito fortes. Neste caso é necessário um mestre para que a pessoa não entre em pânico ou ache que está louca. -

 

- Qual é a idade máxima? Seria dez? - Perguntei.

 

- Podemos dizer que dez seria uma referência. Ainda que não exata. -

 

- O que quer dizer com referência não exata. - 

 

- Ao passar da idade oito para nove, dez não é mais o limite. Pode-se ultrapassar para além, e vislumbrar um conhecimento que só está acessível para os humanos que conseguiram chegar ao digamos nível nove. Ai perde-se a referência de humano. É onde começamos a ser criaturas de consciência plena, e novos mundos lhes são acessíveis. -

 

- O que  quer dizer com novos mundos? Quer dizer novos planetas ou coisa assim? -

 

- Não necessariamente novos planetas, se bem que isso também lhes é possível. Nós humanos somos criaturas mágicas por natureza. O nosso problema, ou melhor dizendo, o problema de vocês é o sistema de ensino que praticam. É totalmente errado para o desenvolvimento da consciência. Ai acabam presos na primeira atenção. -

 

- Primeira atenção? Então existe segunda?

 

- Existem três. A primeira atenção é chamada de atenção conhecida. É uma décima parte da percepção que usamos para o dia-a-dia. Trabalhar, estudar e tudo o mais do mundo normal. Porém, por estarmos presos na primeira atenção não conseguimos perceber o mundo como ele realmente é. Seria o mesmo que uma pessoa que olha para uma paisagem, mas ela só tem menos de dez por cento da capacidade da visão. Ainda sim, ela deve achar que aquilo é tudo que existe e é exato porque ninguém lhe disse que sua visão é minúscula e deficiente. Os homens comuns não tem parâmetros de avaliação neste sentido.

 

- A segunda atenção detêm cerca de vinte à pouco mais que cinqüenta por cento do poder perceptivo. As pessoas podem chegar na segunda atenção acidentalmente ou propositalmente através de técnicas. No caso de acidentes, a pessoa começa a perceber coisas que nunca percebera antes, e acha que está louca ou morta. Como o poder perceptivo da segunda atenção é muito forte, é necessário um controle absoluto, e saber o que está fazendo. Caso contrário pode-se ficar muito apavorado e ter um enfarto fulminante por não entender o que está acontecendo com sua percepção.  Esta é a fase que chamamos de entrar no conhecimento desconhecido.

 

- A terceira atenção é algo de que não podemos falar estando presos na primeira atenção. Só entrando na segunda é que se pode vislumbrar a terceira. Nosso poder perceptivo na primeira atenção não pode conceber o que seja a terceira atenção. É algo incognoscível, indescritível e impensável.   Uma vez lá, perde-se a referência de ser humano, pois novos mundos e criaturas lhes são perceptíveis.

 

- Confesso que fiquei um pouco atordoada com tudo isso, não sabia bem o que pensar sobre o que Raamã havia explicado. Para mim tudo era muito estranho. Durante a explicação, ele fez um círculo no chão de aproximadamente trinta centímetros de diâmetro. Dentro deste fez um outro menor representando a segunda atenção, e um terceiro círculo ainda menor dentro do segundo representando a primeira atenção.  

 

- Lembrei-me de já ter lido um livro que fazia alusão a cultura Tolteca, onde o escritor fazia referências a divisão das atenções. O livro se não me engano tinha o título "Uma estranha realidade". Comentei com Raamã sobre o livro e o escritor que também é antropólogo. 

 

- Os Toltecas também fizeram grandes avanços nesse assunto. Porém, o domínio da segunda atenção tem múltiplas faces e muitas facetas possíveis. Um guerreiro pode enveredar por labirintos que jamais conseguirá sair sem ajuda. Os Mazatecas descobriram técnicas para atravessar as fronteiras da atenção, mas faziam isso em bandos. E este foi o erro deles. A maioria perdeu-se na imensidão que é possível de se alcançar lá fora. Os Astecas eram mestres nesse conhecimento. Mas, ao invés de preservarem-se, foram-se todos. 

 

- Verdadeiramente não há nada que ainda não tenha sido escrito, mostrado, estudado ou falado pelos povos do passado. A questão é que sua civilização não desenvolveu uma cultura adequada para esses conhecimentos serem absorvidos pela população. Ao contrário, trataram de destruir os povos indígenas e suas culturas. Os sacerdotes que podiam repassar esses conhecimentos para o seu povo viram suas nações serem destruídas e escravizadas, trataram também de esconder esse conhecimento do seu povo. Mas ainda sim, esse conhecimento foi dito ou escrito, mas os que manipulavam os destinos dos povos trataram também de não deixar esses conhecimentos chegarem até os homens comuns da sua civilização. Chamar sua civilização de civilização é utópico porque sua civilização não tem nada de civilizada. O seu povo tem como maior inimigo ele próprio. Assim como alguns povos do passado, seu povo também será extinto através de seu próprio veneno.

 

- Pode explicar melhor o que é o nosso veneno? - Perguntei.

 

- Pra começar, literalmente vocês comem veneno todos os dias nas grandes cidades. E os hospitais estão lotados em qualquer parte do mundo. Fabricam armas para matarem-se uns aos outros. Vendem e alugam seus corpos como se fosse uma mercadoria de consumo qualquer. Escravizam-se psicologicamente e fisicamente. Além do mais criaram um Deus que não existe, e um dinheiro que compra tudo, inclusive suas próprias vidas.

 

- O que é que você chama de civilização?

 

 

- Não tive resposta para a pergunta dele.

 

 

 

Continua no capítulo 2 - Os portais e as plantas mágicas

Jornal Clandestino

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