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Obra Poética, Prosa e Ensaios

de Apolônio Hilst
(anos 1920-30)

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 Canção do desejo irrealizável e indefinido

(Ao Bloco dos Abacaxis)

 

      Canto de vozes distantes,

      O meu desejo murmúra

      As confissões de loucura

      dos amantes...

 

      Estranhas, doridas vozes!

      Estão em mim ou no vento?

      Os invisíveis algozes

      do sentimento...

 

      O clamor do meu desejo

      vem de longe, vem do fundo,

      vem do universal cortejo

      dos que sobraram no mundo...

 

      Vem do chômage ou do gheto,

      Surdo marulho medonho

      dos sem trabalho do sonho,

      desocupados do aféto...

 

      Maré montante de vazas

      onde em confusa cohorte,

      Boiam os corpos sem azas

      dos que têm fome de sorte.

 

      Vem dos desastres, do anseio

      das cousas nunca alcançadas;

      de tudo o que fica em meio,

      das renúncias obrigadas.

 

      Canção de cativos, rouca,

      rouca e afogada em absinto;

      antes de atingir a boca

      morta na noite do instinto.

 

      Cantiga longínqua, vaga,

      mais sentida do que ouvida,

      murmúrio, soluço ou praga

      que sobe da própria vida.

 

(Poema publicado num jornal de Jaú - SP)

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BRASIL DE COCOS E EMBOLADAS

 

       A procura da alma brasileira tem sido a occupação maior da geração que começou a contar depois da guerra. O espírito nacionalista que trabalha o mundo moderno foi uma das conseqüências dessa guerra que já agora queira ou não queira leva nas costas o peccado original de tantas cousas com que nada teve. O modernismo por exemplo. A agitação espiritual que sacudiu (e sacode) os homens, pondo à tona os mais variados ismos, despejando nas ruas todos os saccos do subconsciente, acabou no lugar-comum da filha legítima e insuspeita da grande rixa do ocidente. Ninguém tem dúvida. No entanto, uma mirada perfunctória, e sem tocar em nada o paradoxo, é suficiente para mostrar que o contrário é que é a verdade - a chamada grande guerra já foi uma manifestação da inquietude contemporânea. Vilolenta e mais brutal que as outras é certo. E também capaz de mudar rumos e deixar estigmas próprios.

      (...)

      Nos países em formação, de existência duvidosa ou que existem apenas na diplomacia dadivosa das cartas geográficas, foi um momento de apalpamento geral. Um auto certificado de identidade. Com e em todos os sentidos. Será que existo mesmo?

      A onda de nacionalismo universal coincidiu com a nossa necessidade de ser. Se para outros foi ou está sendo, Lázaro saído do sepulcro, para nós teve uma importância mais virgem e original. É a inauguração mesma da vida. Adão ainda quente das mãos do Senhor. A vida pela primeira vez. A vida que é ainda o desconhecido e o mistério. Que se vai provar.

      A nossa tarefa é, pois, provar que existimos. Com uma prova um pouco mais real, um pouco mais espiritual, um pouco mais digna do que essa que se infere das nossas dívidas. (...)

      Sabíamos de oito milhões de quilômetros quadrados além da lambuja que nos vieram de um acaso português de caravelas índios minas de ouro e negros escravos. Sabíamos de dois Pedros na história, papagaios, um bicho preguiça, muita saúva e a libra e o dólar lá de cima nos pescando. Sabíamos do mulato que fala difícil, das doenças que falam por baixo e por dentro, do jogo de bicho que dá sem plantar, e duma república de coronéis - com seus chupins de vôos curtos e rápidos que embicam sempre em mamadeiras.

      Chegou o momento de ver se somos gente, se temos sexo, se sobrou alma também para nós. O Brasil já tem alma?

      A melhor resposta dão os que trabalham, os que plantam café, abrem estradas, levantam cidades, todos esses mágicos, criadores de realidades. Da realidade brasileira. Porque a verdade é que se a alma sobrevive ao corpo, sem corpo ela não pode aparecer. Criar e transformar a realidade é todo o serviço do nosso tempo. Os verdadeiros poetas de hoje já não estragam papel e já não perdem tempo com bobagens de letra redonda. Os seus poemas são composições de realidades, criações diretas da vida.

      Dos moços pesquisadores e criadores da nossa alma nenhum tem agido mais corajosamente que Mário de Andrade. Mário teve a desgraça de nascer escritor num país para o qual os escritores são um luxo vagabundo, um luxo de mau gosto e de azar. Um luxo que vive à custa da nossa imbecilidade e do nosso caipirismo. Que faz ele? Manda aos diabos as belas letras e dá de correr o país inteiro sacudindo a alma brasileira para ver se ela acorda de seu sono de preguiça. Ora tapeando, acorda meu amor, ora enérgico, acorda idiota, com todo o talento, todas as forças, todos os recursos ele vai de brasileiro em brasileiro sacudindo a alma que dorme. Tudo o que tinha aprendido para tapear os bobos nessa arte de tapear, que é a de escrever, na poesia, na música, na pintura, na história, na crítica, tudo o que ele tinha aprendido e mais a magia com que Deus o presenteou ao nascer e que faz dele um Macunaíma sem preguiça e com caráter, tudo isso ele pôs a serviço do Brasil, tudo isso são materiais de construção para o Brasil. Ainda agora acaba de chegar do nordeste, onde andou derriçando, ajuntando, colhendo Brasil. Pela música é que ele mais tem feito. Percebeu que o pouco de alma que o Brasil tem caça-se mais facilmente nas nossas músicas e toadas populares de canto e dança. Na música simples e anônima da nossa gente humilde é que melhor se revela o brasileiro como um ser diferente, que já não se mistura mais com representantes de outros aglomerados humanos.

      Mário de Andrade vai expor nas vitrines de São Paulo a alma do Brasil. Para que os paulistas a façam grande para a vida, Brasil de alma musical, das modinhas, dos cocos, das emboladas, dos maxixes, Brasil de alma cantante, Brasil de alma contente, Brasil da gente (...)

 (Texto publicado num jornal de Jaú - SP)

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A MACHINA DE HABITAR E DE VESTIR

 

      Na arte contemporânea de vestir está a inspiração melhor da architetura moderna. O que se vê num corpo de mulher? O essencial, o indispensável. O equilíbrio entre os conceitos de utilidade e de belleza, formando a esthetica que sempre foi a consagração do inútil e do supérfluo sujeita como qualquer de nós às leis da economia. Devemos um abraço a todas as mulheres, pois mais e antes que os modernistas chegaram à verdadeira compreensão da arte moderna. Um vestido é a amostra viva e impressionante duma arte que é moderna porque é de hoje e de todos os tempos de verdadeira arte. A valorização do essencial, panno quanto menos, decoração inexistente ou mínima. Não se pense no entanto que isso seja uma volta à natureza. No seu estado actual de desenvolvimento o homem não supporta mais o natural. O natural seria a mulher núa e de cabellos compridos. Essa espécie de mulher o homem não enxerga. E a mulher que o homem não enxerga não existe. Porque a mulher nasceu para os olhos dos homens como a bolsa dos homens para as mãos das mulheres. É nelles que ellas se dependuram para as suas cambalhotas mais ou menos mortaes. Dançar, rezar, fazer presentes a Deus. Ora, si o nú é a não existência, a mulher tem que vestir para ser. Veste logo é. O merecimento do vestido não é apenas philosophico ou methaphisico, como pode parecer. É esthetico. E está nisso a sua parte melhor. A mulher conseguiu fazer da sua existência uma viva e eterna arte moderna. Desafio que me digam o contrário. A mulher não vive a vida, vive a arte.

      A architetura modernista procura a originalidade e as emoções estheticas dentro da utilidade, do artificial, do essencial. Uma casa não terá enfeites inúteis e anachronicos. A decoração ficará para as casas suspeitas dos nouveaux riches e dos velhos ricos com afincadas raízes no mau gosto. Nenhuma peça - é uma machina - poderá existir se não tiver função certa e definida. Lugar para poeira e baratas e teias de aranha tem bastante na cabeça dos homens. A belleza cabe perfeitamente dentro do essencial. Os passadistas que censuram o nosso século como a época do chauffeur e da machina e dizem que os homens vão sendo comidos pelas machinas que elles mesmos inventaram, são os que mais escandalosamente são dominados pelo material - e que material! Bugigangas e cacarécos de um bric-a-brac sentimental. Pelo contrário é controlando e domesticando a natureza que se prova o espiritual e o transcendente do homem. E é pela machina que esse controle e esse domínio se tornam possíveis.

      Ainda desta vez, não disse o que queria. Da próxima quem sabe.

 (Texto publicado num jornal de Jaú - SP)

 

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Carta de Mário de Andrade

 

      S. Paulo 22

       Caro Luis Bruma (pseudônimo de Apolônio Hilst)

       Relendo esta manhã sua carta, para lhe responder, vejo que ela data de um mês passado. Esta resposta é realmente tardia. Mas há coisa de 30 dias que não uso pena e tinta. Estive e estou bastante doente. Meu passeio ao Alto da Serra em dia húmido deixou-me entre muitas gigantescas sensações esta fantasmagórica pleurodimia (não sei se é assim que se assina o tal monstro) que me fez sofrer. O pior é que o corpo aproveitou os momentos de cama para (despertar) todas as chamas de doenças que eu tinha semi-mortas, lânguidas dentro de mim. Todas elas resistiram espertas e impacientes. Sou hoje todo um altar de doenças mortuárias. Os médicos não estão satisfeitos comigo. Proibição de estudo, de leitura, de escrever. Querem que saia e vá viajar. O conselho é bom. E me agrada. Mas, por agora, não posso segui-lo. Minhas ocupações foram insidiosamente me envolvendo numa trama tal de cadeias que por maior fôrça que faça não me posso libertar delas. E Deus não teve a piedade de me dar, como a Sansão, fartos cabelos e músculos vencedores. E vou ficando. Tem chovido muito nesta minha arlequinalíssima cidade (luz e bruma. Forno e inverno morno.) Estou à espera que as cadeias enferrugem para milhormente quebra-las. D'aí descansarei um pouco. E, de novo forte e feliz, voltarei a esta luta (pela) arte, que é hoje para mim a milhor razão de amar a vida que tenho.

      Sempre gostei muito da vida. Tudo nela me interessa e atrai dores como prazeres. Observo a dor com a mesma curiosidade ansiosa e divertida com que observo a alegria. Mas essa observação, êsse estudo curioso da vida, que me fazia tanto gostar dela, poderia fazer-me sábio para mim mesmo, um bom vivedor (no milhor sentido que se possa dar ao termo) mas eu seria sempre um homem egoísta, valorizado só para mim mesmo, um desses pobres grandes sábios que passam a vida no laboratório a dissecar, a descobrir e que um dia levam para o túmulo toda uma imensa biblioteca de mesquinhas sabedorias inúteis. Assim apesar de todo o meu gôsto pela vida, a morte não me aterrorizava. Mas depois entrei para esta luta se arte que hoje perturba todo o mundo. Novo Renascimento. E minha vida adquiriu uma finalidade aquém da morte. Esta continua a não me horrorizar. Mas não quero morrer. Não posso morrer. Antes era um homem livre. Hoje sou escravo voluntário da humanidade. Que linda escravidão! Pois que dois ou três me amaram na Terra, não me pertenço mais a mim: sou deles, como eles são meus. Nas cerimônias matinais e misteriosas das nossas catacumbas entoamos os hinos de renovação, numa alegria doida de crentes, de fanáticos. Por que não fanatismo? Não foi esta luta, este amor, esta crença que nos deu a finalidade humana que dantes não tínhamos? Éramos seres inúteis. Temos agora uma finalidade na história, na evolução do homem. Éramos de vidro: translúcidos. Hoje somos de pedra; e a luz do Sol bate em nós para se dissolver e para se ocultar em mil e uma cores exactas. Não se poderá mais olhar através de nós para ver as paisagens da vida, porque fazemos, nos mesmos, parte dessa paisagem. Assim penso agora. É isto que me faz infantilmente pensar que também tenho (e todos nós, modernistas) um lindo valor dentro da humanidade, e me torna inimigo da morte.

      Não sei com que olhos você lerá toda esta meditação. Mas quando escrevo a aqueles que considero meus amigos, abro o pensamento e lá vou, insensivelmente por vales e montanhas. Desta vez fomos ambos parar no convento da Vida e da Morte. É linda e meditativa a paisagem. Desta altura repare você, Luis Bruma, à esquerda todos estes alcantis inóspitos, sem vegetação, sem vida. Como são agudos, altíssimos êsses píncaros! E como o Sol os (ilumina) perdulário e inesgotável. Desses píncaros, si para êles ascendermos, teremos a paz total, imóvel, o Conhecimento, a Luz. Mas vire agora seus olhos para a direita. Deixa-os rolar no aclive colorido e vegetal. Há pastores e rebanhos de cabras ágeis e de carneiros mansos. E as cascatas estouram. Mais em baixo é a largueza dos rios, os campos plantados, as vilas, as estradas, as cidades. Sinos, gritaria, apitos de fábricas, trens e navios. E o estridar das lutas, das guerras. E uma multidão de pigmeus, semi-cegos, esbarrando-se, contundindo-se, lutando, caindo, trabalhando, vencendo, sofrendo, gozando. Para quê? Para obter uma finalidade e ganhar honestamente a paz dos píncaros, de nós tão próximos. Amigo Luis Bruma, seu revolver funciona bem, seu punhal está bem afiado? E seus músculos? Elásticos, virís e corajosos? Pois desçamos a (?) escoita (sic). Vamos ver do (?) número dos pigmeus.

       Mário de Andrade

 

      P.S.: E anuncia-me você uns problemas estéticos que o torturam. Gosto de problemas dessa ordem. Discutamo-los. Desta troca de fôrças e perguntas só teremos o benefício de adquirir maior musculatura.

      Um abraço

 

      E geralmente costumo trocar com meus amigos longínquos os trabalhos que fazemos. Mande-me algum trabalho seu, prosa ou verso, é indiferente. Farei o mesmo.

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Carta de Apolônio para Hilda

  

      Hilda, minha querida boneca

 

      Minha linda boneca! Você está esquecendo de mim e olhe que isso não fica bem para um coração de boneca. Esquecer é bom para gente grande, gente que tem muito que fazer no coração, que tem o coração de remorso. Você, não. Você é uma boneca, a minha boneca. Tem coração de anjo. Não esquece da gente, sabe querer bem ao Papai da Hilda, é capaz até de ter saudade dele. Até agora o Papai da Hilda está esperando os retratos da Bellezinha do Gonzaga. A minha Bellezinha do Gonzaga! E você esqueceu, esqueceu como uma mulher velha que tem muito o que fazer no coração. Esquecer é bom para a sua mamãe que precisa dormir e cujo destino leva-a para a distância e a indiferença, para você não. Para nós não. Nós caminhamos para outro rumo bem diferente. Nós caminhamos para o país encantado das bonecas e dos homens - nós caminhamos para o amor. Hilda, filha do meu amor, vá preparando sua mamãe para sua viagem commigo. Diga-lhe que muito em breve irei buscar a minha Bellezinha do Gonzaga para levá-la ao paiz das bonecas - onde tudo é sonho e beleza. Hilda, até logo, muito beijos e lembranças ao Ruy. A mamãe não precisa. Ella não gosta de mim. Do papai de Hilda.

       Apollonio

(Do arquivo pessoal da escritora.)

 
 
 
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