Unir-se, Axelrod, unir-se a alguém,
é disso que precisas. A quem? À História? Como se
ela fosse alguém essa falada História, penugenta andando
por aí, como se ela fosse real, olha aí a História,
tá passando aí, olha pra ela, olha a História te
engolindo, jantas hoje com a História, os filhinhos da História,
Marat marx mao, o primeiro homicida, o segundo tantas coisas humanista
sociólogo economista agitador, ó tão fundo esse segundo,
tão História tão Estado. E que terceiro, ó
gente, que terceiro.
já leu Marx?
maçante aquilo tudo
mas leu?
sim, o que pude conseguir, as cartas aos
amigos dizem mais dele do que tudo
que límpido ordenado, que precisões
hen? liberdade pra quê? liberdade têm os outros de te montar
em cima, de te arrancarem o naco de carne da boca, tens medo de que te
tirem o quê se não tens nada?
Marx meu amor, te amei tão História,
Mao e Shu vocês também, que soerguido vital, que caminhadas
que floração, que linguagem, e fui relendo, anotando, cintilantes
esquemas, destrinchações, como se eu fosse jantar com a
História logo mais, como se eu fosse meter com a História,
as pernocas abertas da História, as coxonas cozidas de tão
faladas, o vaginão da História, vermelhusco, baboso, e o
meu fiapo magro nadando lá por dentro
já leu tudo, menino? já
sabe tudo de mim, como me fiz, o que sou?
sim dona História
viu que gente de primeira já andou
por aí?
sim dona História
e que sangueira hen filho? Que linguagens,
que porte, que pompas
Vou entrando na História, endurecendo,
vou morrendo explodindo em faíscas, a cavernosa vai me comendo,
ímã gozoso, já não sou Axelrod Silva, sou
nomes, fachadas, sou máscara, já não penso, pensam
por mim, sou credo, sou catecismo, sou bandeira, sou acorde, sou principalmente
Político, o peito teso empinado, tenho idéias mas já
não sou Axelrod Silva, tudo o que quiserdes, menos eu, a História
me chupa inteiro, a língua porejando sangue
goza filhinho
sim dona História, vou indo, estou
cheio de idéias, tenho dúvidas, tenho gozos rápidos
e agudos, vou te apalpando agora, o povo me olha, o povo quer muito de
mim, gosto do povo, devo ser o povo, devo ser um único e harmônico
povo-ovo, devo morrer pelo povo, adentrado nele, devo rugir e ser um só
com o povo, Axelrod-povo, Axelrod-coesão, virulência, Axelrod-filho
do povo, HISTÓRIA/POVO, janto com meus pais, sopa de proletariado,
pãezinhos mencheviques, engulo o monopólio, emocionado bebo
a revolução, lento vou digerindo o intelecto, mas estou
faminto, estarei sempre faminto, cago capitalismo, o lucro, a bolsa de
títulos, e ainda estou faminto, ô meu deus, eu me quero a
mim, ossudo seco, eu.
doutor, o trem tá parando, vai
parar aqui um pouco.
chegamos?
imagine doutor, ainda falta, o senhor
está suando muito, quer um refresco? posso ajudá-lo?
vai para aqui?
uma boiada, e ao mesmo tempo uns enguiços
na máquina, uma hora talvez, não mais
devo descer então?
esticar as pernas doutor, é melhor,
o senhor está suando muito, uma mancha vermelha aí
onde?
na sua testa, dormiu de mau jeito, não
foi? a testa encostou nesse duro da madeira, não foi?
Vermelhosuras da História, devo
descer mas ela não me larga, grudou-se, chutar a cabeça
da História, chutar a bola-cabeça em direção
à trave, também joguei sim senhores, joguei, ia chutando
a cabeça de muitos naquela única bola, esfacelei uns branquicentos
moles, a mim mesmo chutei, chutei minha comensurabilidade, meu limite,
meu finito fibroso, minha putrescível cabeça, minha vermelha
dura fixa cabeça, ah um ocre que vi e não me esqueço,
num canto a parede rebrilhava num branco exibido obsceno e no canto aquele
ocre, esqueceram-se, eu perguntei, esqueceram-se de pintar aquilo ali?
Aquilo onde? cruzes, cara, aquele ocre ali, olhavam-me, não viam
ocre algum, ah mas que ocre, senhores, que ocre, como a fundura de um
peixe, escamas ocres lá no fundo, como certos chamalotes, um vermelho-ocre
tafetoso, uns estilhados de ruído, aquele ocre ali, que fogaço
mínimo, mas que luz a luz daquele ocre. Devo suportar o que me
vem, vem vindo, minha cabeça de laca, de sangue esmaltado, efêmero
tu mínimo, Axelrod, habitante de um planeta mínimo, bola
planeta de uma risível estrela desta Via, lactente pequenino se
pensando inchado em abastança, ridículo pequenino abasbacado,
laca diluída nas tuas veias, coágulos, então Axelrod
te moves quando pensas? ou circulas no teu ridículo espaço
com a pompa dos pavões, o peito purgando adjetivos, togado, promotor,
te acuso Axelrod Silva de se supor a si mesmo um pretenso diferenciado
de fornicar a História com teu
magro minguado. Te acuso de indecências, de pensamenteios, de friorentas
idéias, nunca te moverás, maquinista do Nada.
podemos descer juntos, o senhor quer?
há uma colina mais adiante e abetos
como?
não nada, sim, pode ser bom caminhar
até a colina.
foi isso que pensei, andar um pouco enquanto
o trem, olhe, acenderam as luzes, podemos ver o trem de longe iluminado.
Esguio, de passadas lentas, a nuca magra,
o olhar é de um cinzento alagado, tenso de ombro e omoplata, discorre
pausado de topografias, que à nossa frente, esta, se parece a outras
que já viu mas não se lembra onde, que viu tão pouco
de tudo e que por isso deveria lembrar-se desse pouco onde, olhe ali,
há queimadas, se não vou me cansar até o pequeno
topo, não não, imagine eu digo, também nem tanto,
quarenta e dois anos ainda suportam um passeio na tarde, e há esse
frescor, esse caimento, o cheiro dos abetos. Como? O cheiro desses verdes,
ah sim, parecem estranhos, o mundo também, a forma das coisas,
é um gavião lá no alto? Sim, pode ser, e me diz que
nào quis dizer que eu lhe parecia velho, que nem pensou nisso quando
perguntou se eu não cansaria até o pequeno topo, digo que
não me importo com esses luxos da idade, que aos vinte temos muitas
certezas e depois só dúvidas.
certeza de nada eu tenho
exceção. Aos vinte pontifiquei,
tinha um orgulho danado, um visual pretensamente sábio
como?
discorria claro sobre as coisas, pensava
que via
o senhor é professor?
sim, História
Apressado me interrompe, entre eu e ele
um espêsso, porque me interrompe? entre eu e ele uns afastados,
parece desejar chegar ao topo, sim porque deve ser bonito ver o trem lá
embaixo iluminado, da História diz que não sabe nada, da
sua própria estória sim, começa a correr como se
me esquecesse, bem assim também não, correr na subida já
maltrata coronárias coração, escuto-lhe a risada
quinze passos acima, vejo-o de frente, longo, um nítido de sol
numa das faces, não, não devo subir mais, o espesso desmanchando-se,
está vivo à minha frente como se fosse o primeiro vivo visto,
digo que o moço está tão vivo e tão adequado
àquele espaço, tão singularmente colocado que
vamos, venha, ou desço para te
ajudar?
Desço para te ajudar, íntimo,
caloroso, estendeu os braços, amplo, lento pensando o passo vou
subindo, o visível pensado me diz que há um medo se construindo
em suor e vazios, o visível pensado não nomeia este medo,
não deveria subir mas vou subindo, amasso com meus pés os
tufos verdes, fixo-me nos sapatos, moles, úmidos, as meias molhadas,
um ridículo Gólgota, sorrio, falta um, não deveriam
ser três? Ele e os dois, e faltam cruzes, os dois viram-no subir
lá do alto das cruzes? E faz falta a multidão, os lamentos,
e a hora da subida não foi esta, subiu a que hora Jeshua? ao meio-dia?
A hora, seis e meia a minha, ridiculez de subida, a camisa empapada, tenho
cheiros? cheiro como um homem, aprumo-me, sou um home, tropeço,
estou de bruços, de bruços pronto para ser usado, saqueado,
ajustado à minha latinidade, esta sim, real, esta de bruços,
as incontáveis infinitas cósmicas fornicações
em toda a minha brasilidade, eu de bruços vilipendiado, mil duros
no meu acósmico buraco, entregando tudo, meus ricos fundos de dentro,
minha alma, ah muito conforme seo Silva, muitíssimo adequado tu
de bruços, e no aparente arrotando grosso, chutando a bola, cantando,
te chamam de bundeiro os ricos lá de fora seo Silva brasileiro,
seo Macho Silva, hôhô hôhô enquanto fornicas bundeiramente
as tuas mulheres cantando chutando a bola, que pepinão seo Silva
na tua rodela, tuas pobres junturas se rompendo, entregando teu ferro,
teu sangue, tua cabeça, amoitado, às apalpadelas, meio cego
cedendo, cedendo sempre, ah Grande Saqueado, grande pobre macho saqueado,
de bruços, de joelhos, há quanto tempo cedendo e disfarçando,
vítima verde amarela, amado macho inteiro de bruços flexionado,
de quatro, multiplicado de vazios, de ais, de multi-irracionais, boca
de miséria, me exteriorizo grudado à minha História,
ela me engolindo, eu engolido por todas as quimeras.
machucou-se
nem um pouco
Trêmulo me levantando, eu Axelrod
me levantando porque o Grande Saqueado deixo ali de bruços, descola-te
de mim, eu sozinho sou mínimo, alavancas do sonho, as impossíveis
para te levantar, idéias palavras abstrações textos
dialéticas, impossíveis alavancas de sonhos impossíveis,
beijo-te as nádegas, brasilíssima fundura, teus gordos aparentes,
beijo lívido tua escura saqueada rodela, te pranteio
me dá tua mão Axel
A mão do moço, pesada, curta,
seca, não está em emoção, a palma toca a minha,
molhada, a voz num tom de sacristia, baixa respeitosa, me dá tua
mão, Axel, (comeu-me o sufixo, não importa) talvez me veja
um pouco abade, abacial, tenho ares de, apesar da magreza, abade Axelrod,
ali vai Axel o abade, amanhã ventrudo, tropeçou, vê
só, me dá a tua mão, Axel, que tons, como se os turíbulos
tivessem passado há um segundo, como se eu lhe tivesse dado escapulários,
obrigado abade Axel, posso lhe beijar a mão? Vou me levantando
inteiro abade, curvado vou me fazendo, tento chamar a velhice, fazer ares
de, quero ser velhíssimo neste instante, e agachado correndo, num
urro senil estaco. E numa cambalhota despenco aqui de cima, nos ares,
morrendo, deste lado do abismo.