Hilda
Hilst: Poeta, Narradora, Dramaturga
por
Anatol Rosenfeld
Homo
sum; humani nihil a me alienum puto.
Terêncio
É
raro encontrar no Brasil e no mundo escritores, ainda mais neste tempo
de especializações, que experimentam cultivar os três
gêneros fundamentais de literatura a poesia lírica, a
dramaturgia e a prosa narrativa alcançando resultados notáveis
nos três campos. A este grupo pequeno pertence Hilda Hilst que,
de início exclusivamente dedicada à poesia e mais conhecida
como poeta convém evitar o termo poetisa carregado de associações
patriarcais invadiu mais recentemente o terreno da dramaturgia e apresenta
agora o primeiro volume de ficção narrativa. Ao lado de
necessidades subjetivas, são sem dúvida também
problemas de ordem objetiva que a levaram a estender a sua arte, de
forma significativa, a domínios literários além
daqueles da poesia. É preciso somente mencionar o fato de que
uma visão antinômica da realidade se exprime de modo mais
radical e aguçado no diálogo da obra dramática,
no dia-logos, isto é, no espírito dividido de um
gênero que surge depois de rompida a unidade espiritual da origem;
unidade todavia que ainda assim subjaz à divisão já
que de outro modo o próprio diálogo se tornaria impossível.
Não será difícil mostrar que também as pesquisas
na esfera da prosa ficcional, tal como praticadas nas obras deste volume,
quase todas distantes dos padrões do conto, obedecem a imposições
objetivas.
Hilda
Hilst nasceu a 21 de abril de 1930 em Jaú, Estado de São
Paulo. O pai, Apolônio de Almeida Prado Hilst, fazendeiro e poeta,
era filho de Eduardo Hilst, imigrante que veio da Alsácia-Lorena
ao Brasil, e de Maria do Carmo Ferraz de Almeida Prado. A mãe,
Bedecilda Vaz Cardoso, era filha de portugueses. Hilda estudou durante
oito anos como interna no Colégio de Freiras Santa Marcelina, em
São Paulo, ambiente evocado na sua dramaturgia (A Possessa,
Rato no Muro), na narrativa O Unicórnio, deste volume,
e também na poesia:
Os
amantes no quarto
Os
ratos no muro
A
menina
Nos
longos corredores do colégio.
O
tema multívoco dos ratos, aliás, ressurge numa das peças
(Aves da Noite) e também na ficção narrativa,
fato digno de nota por revelar a persistência dos motivos que se
mantêm através da obra poética, dramática e
narrativa de Hilda Hilst.
Depois
de terminar o curso clássico na Escola Mackenzie, a poeta estudou
na Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Formada, a jovem
bacharel exerceu durante alguns meses a advocacia, profissão que,
segundo confessa, a deixou "apavorada". Esse pavor se manifesta ainda
na peça Auto da barca de Camiri, na qual se lê, a
respeito do amor, que "essa asa na lei / não está prevista".
Hilda
Hilst publicou seu primeiro livro de poesias aos vinte anos (Presságio,
1950), seguindo-se em rápida seqüência obras como Balada
de Alzira (1951), Balada do Festival (1955) e outras, entre
elas Trovas de Muito Amor para um Amado Senhor (1960). Uma seleção
da sua obra poética madura encontra-se reunida em Poesia 1959/1967.
O seu teatro, constituído de oito peças, permanece lamentavelmente
inédito, embora O Verdugo tenha conquistado o Prêmio
Anchieta de 1969. Algumas das peças foram encenadas pela Escola
de Arte Dramática de São Paulo e por vários grupos
amadores, devendo-se esperar que também o teatro profissional,
mais cedo ou mais tarde, descubra o valor desta obra cênica, marcante
pela qualidade literária e por introduzir uma voz inteiramente
nova e original na dramaturgia brasileira moderna, raramente beneficiada
pela colaboração criativa dos poetas.
Em
1957 e 1961 Hilda Hilst fez viagens maiores pela Europa, demorando-se
na França, Itália e Grécia. Casou-se em 1968 com
o escultor Dante Casarini.
Desde
cedo seu interesse quase exclusivo se dirigiu para a criação
poética. Nesta paixão foi estimulada pelo poeta e jornalista
João Ricardo Barros Penteado, ao passo que deve a Alfredo Mesquita,
fundador e durante longos anos diretor da Escola de arte Dramática
de São Paulo, o incentivo para invadir o campo da literatura teatral.
Entre os amigos a quem, por razões afetivas ou intelectuais, se
sente ou sentia ligada, salientam-se Sergio Milliet, o escritor gaúcho
Caio Fernando Abreu, Lygia Fagundes Telles, Bráulio Pedroso, José
L. Mora Fuentes, Joy Kostakis e o poeta português Carlos Maria Araújo
a quem dedicou, por ocasião da sua morte precoce, as sete estanças
dos Pequenos Funerais Cantantes.
Dorme
o amigo no seu corpo de terra.
E
dentro dele a crisálida amanhece:
Ouro
primeiro, larva, depois asa
Hás
de romper a pedra, pastor e companheiro.
O
tema da crisálida, do estado intermediário, latente, do
vir-a-ser e da "irrupção" e transcendência é
fundamental na obra de Hilda Hilst, tanto na poesia e dramaturgia como
também na prosa narrativa do presente volume.
Com
Gilberto Amado e Carlos Drummond de Andrade manteve, durante certo tempo,
correspondência amiga; mas foi sobretudo Jorge de Lima, ao lado
de Fernando Pessoa e Cecília Meireles, quem, entre os poetas de
língua portuguesa, mais de perto a tocou. A epígrafe que
escolheu para os Sete Cantos do Poeta para o Anjo (1962) é
de Jorge de Lima:
Nunca
fui senão uma coisa híbrida
Metade
céu, metade terra...
O
tema, reiterado nos Sete Cantos "desde sempre caminho entre dois
mundos" e em outros poemas:
Tão
grande ambivalência
Concedida
aos homens
Terá
sido dos deuses
Complacência?
esse
tema, intimamente ligado aos acima mencionados, irá ser a verdadeira
substância das cinco narrativas de Fluxo-Floema.
A
experiência poética de Hilda Hilst é ampla. Ao lado
dos poetas lembrados, ama, ou pelo menos amava durante certa fase, a poesia
de Höelderlin, Rilke, John Donne, Eliot, René Char, Saint-John
Perse. alguns deles afinam, em maior ou menor grau, com as tendências
místicas e metafísicas de Hilda Hilst, tendências
que se situam, aproximadamente, na linha da tradição platônica
e gnóstico-teosófica e que se manifestam também
e particularmente nas elocubrações físico-geométricas
da sua poesia e dramaturgia. Matemática e mística, por paradoxal
que possa parecer, são terrenos que facilmente se avizinham, sobretudo
na literatura contemporânea. Não surpreende que Hilda Hilst
mostre, no campo da dramaturgia, pouco interesse por Bertold Brecht
embora goste de sua Mãe Coragem e que prefira uma obra
mística como O Dibuk, de An-Ski. Isso explica também
sua inclinação por Ionesco e, sobretudo, por Beckett que,
ao lado de Kafka e Camus, veio a ser, mormente como o narrador de Molloy,
uma influência fundamental na sua ficção narrativa.
Experiência
decisiva, não só de ordem literária e sim "existencial"
(se é possível separar o que é inseparável
para quem, como Hilda Hilst, a criação literária
é uma atividade absolutamente vital) foi a leitura de Nikos Kazantzakis.
Certamente a impressionaram profundamente, talvez em demasia para quem
não afina tanto com o autor grego, a busca esotérica e por
vezes excêntrica de verdade última, de unidade cósmica,
ao lado da exaltação romântica da vitalidade e do
vigor primevos. Hilda Hilst confessa que a leitura da Carta a El Greco
chegou a "mudar a minha vida". É, com efeito, depois desta experiência
fundamentalmente mística que se retirou de São Paulo,
fugindo das "invasões cotidianas" e da multiplicidade de "contatos
agressivos", para viver com o marido na sua fazenda perto de Campinas.
Naturam
expellas furca; tamem usque recurret.
Horácio
Chassez le
naturel, il revient au galop.
Abbé
Destouches
A
poeta chegou à dramaturgia porque queria "falar com os outros";
a obra poética "não batia no outro". Era um desejo de comunicação
(é difícil evitar o termo que, desde que deu o nome a uma
teoria, faz de imediato pensar em canais) e a obra poética não
lhe parecia satisfazer esse desejo, pelo menos não na medida almejada.
Há, em Hilda Hilst, uma recusa do outro e, ao mesmo tempo, a vontade
de se "despejar" nele, de nele encontrar algo de si mesma, já que
sem esta identidade "nuclear" nào existiria o diálogo na
sua acepção verdadeira. Pelo mesmo motivo chegou à
ficção narrativa, depois do desengano certamente provisório
que lhe causou a atitude cautelosa do teatro profissional.
É
apenas por conveniência que os textos do presente volume (Fluxo-Floema
SP: Perspectiva, 1970) foram chamados de "ficção"
ou "prosa narrativa". Para Hegel o gênero épico-narrativo
é o mais objetivo. A ele se contrapõe, dialeticamente, a
antítese subjetiva do gênero lírico, sendo o dramático
a síntese, visto reunir, segundo Hegel, a objetividade épica
e a subjetividade lírica. Semelhante diferenciação
perde o sentido em face dos textos em prosa de Hilda Hilst, já
que neles todos os g6eneros se fundem. Eles são épicos no
seu fluxo narrativo que às vezes parece ter a objetividade de um
protocolo, de um registro de fala jorrando, associativa, e transcrita
do gravador; mas são, ao mesmo tempo, nas cinco partes Fluxo,
Osmo, O Unicórnio, Lázaro e Floema
a manifestação subjetiva, expressiva, torturada, amorosa,
venenosa, ácida, humorística e licenciosa de um Eu lírico
que extravasa avassaladoramente os seus "adentros", clamando com "garganta
agônica", do "limbo do lamento", tateando e sangrando, em busca
de transcendência e transfiguração. Entretanto, este
Eu ao mesmo tempo se desdobra e triplica, assumindo máscaras várias,
de modo que o monólogo lírico se transforma em diálogo
dramático, em pergunta, resposta, dúvida, afirmação,
réplica, comunhào e oposição dos fragmentos
de um Eu dividido e tripartido, múltiplo, em conflito consigo mesmo.
Contudo, as vozes (que não se manifestam no pretérito da
narrativa, mas amalgamando as formas do presente lírico e dramático)
submergem na corrente de uma linguagem de espantosa invenção,
de barroca criatividade, vozes quase indistintas, visto a autora cuidar
de não diferenciá-las pelos símbolos tipográficos
corriqueiros. Deste modo se fundem de novo, quase irreconhecíveis,
no Eu lírico, portador do rasante turbilhão verbal que,
lançado contra pedras e obstáculos, forma redemoinhos de
"floema" engasgado, detendo-se, gago, a língua se tornando objeto
de si mesma, se autocomentando, se autocriticando e autoflagelando, chegando
até à autodestruição, para depois recompor-se
e prosseguir, levada pelo impulso da maré verbal.
Os
textos, em conjunto, visam a enunciar a totalidade do homem através
da sua multiplicidade e essa visão prismática ou caleidoscópica
forçosamente teria que recorrer a todos os gêneros para exprimir-se
na sua plenitude. "Porque vê a mim como adãoeva, dúplice
sim, tríplice sim, multifário, multífido, multífluo,
multisciente, multívio, multíssono..."
Em
cada um dos textos há três "personagens", melhor três
máscaras que se destacam: Ruiska, Ruisis, Rukah (desdobrado em
anão), cada qual se fragmentando e todos UM, Ruiska, que vive entre
o poço e a clarabóia, lunar e solar ("Fluxo"); Osmo, Mirtza
e Kaysa: Osmo telúrico-lunar, sem que na sua escuridão lhe
falte lucidez e aspiração à luz ("Osmo"); os dois
irmãos, a lésbica e o pederasta, cada qual com a sua parte
feminina e masculina, e o Eu que vira unicórnio, não sem
que haja referência meio envergonhada à Metamorfose
de Kafka e aos rinocerontes de Ionesco ("O Unicórnio"); Marta,
Maria e Lázaro esse "solarizado", vontade de ressurreição,
de transmutação, rompendo o casulo ("Lázaro"). ".
. .como explicar (lê-se em "Fluxo") à crisálida que
ela é casulo agora e depois alvorada. . . como explicar o vir-a-ser
de um ser que só se sabe no Agora, ai como explicar o Depois de
um ser que só se sabe no instante?" E ao fim, em "Floema", Koyo,
Haydum e Kanah: Koyo na sua luta com Haydum relação religiosa
selvagem como o amor; Haydum, o "outro", que, como diz Hilda Hilst, não
sabe o que procura, que busca sem cessar e a este os homens dão,
talvez impropriamente, o nome de Deus. Estranho Deus teosófico
que faz do homem cobaia, que o trata a porretadas como se fosse cão
sarnento, enquanto ao homem cabe salvar este Deus, que, como consta de
uma das peças, é o lobo do homem como o homem é o
lobo de Deus.
Na
linguagem nobre e austera de sua poesia Hilda Hilst não poderia
dizer toda a gama do ente humano, tal como o concebe, nem seria capaz
de, no palco, "despejar-se" com a fúria e a glória do verbo,
com a "merdafestança" da linguagem, sobretudo também com
a esplêndida liberdade, com a inocência despudorada com que
invade o poço e as vísceras do homem, purificando-os com
"dedos lunares" para elevar o escatológico ao escatológico,
visto nesta obra mesmo as trevas e o "porco" "sou porco com vontade
de ter asas", diz Ruiska se carregarem de sentido religioso. Nos poemas
se lê:
Ser
terra
E
cantar livremente
O
que é finitude
E
o que perdura.
Unir
numa só fonte
O
que soube ser vale
Sendo
altura.
Ou
então:
Sou
tantas
Tantos
vivem em mim e pródiga descerro-me
Pródiga
me faço larva e asa.
Mas
só agora consegue cantar livremente. Larvas e asas, porcos, aves,
serpentes e unicórnios tudo se funde na multiplicidade do homem:
semelhante visão forçosamente resulta num universo em que
ressalta o grotesco-fantástico, o grotesco-burlesco, o grotesco-terrorífico
e o grotesco-obsceno, unidos nesta obra única na literatura brasileira.
Rouah,
o demônio, o maldito de "Lázaro", é irmão gêmeo
de Jesus e, sendo nosso irmão, merece, também ele, respeito.
O anão de "Fluxo", que vem do "intestino, da cloaca do universo,
do cone sombrio da lua", diz a Ruiska, o porco com "vontade enorme de
limpar o mundo": "Mas se eu ainda nào sei das minhas vísceras,
se ainda não sei dos mistérios do meu próprio tubo,
como é que vou falar dos ares de lá? . . . é justo
falar do de cima se o de baixo nem sabe onde colocar os pés?"
Os
textos, no seu todo, com a audácia da sua linguagem em que o sagrado
se reveste de atributos diabólicos e o monstruoso, de cores celestes,
são uma celebração ritual levada ao desvario e ao
paroxismo; ritual destinado a convocar a plenitude múltipla do
homem em toda a sua imanência para, ao mesmo tempo, transcendê-la
e fazer vislumbrar "os ares de lá". No próprio elemento
verbal, levando a língua, no fluxo e refluxo da maré e da
ressaca, tanto a tropeçar, com passos ébrios e pesados,
como a dançar, com "graça nos pés" e "leveza nos
andares", Hilda Hilst encarna e ao mesmo tempo supera "o limite da carne"
que "pesa sobre nós". "O pensamento discursivo e lento" (de que
se queixa num poema) naufraga na corrente vertiginosa de uma linguagem
conotativa de cujo ventre fecundo nasce, lembrando quadros de Bosch e
Brueghel, o mundo casto e impudico, real e supra-real, profundamente natural
e terreno e, ao mesmo tempo, alucinatório e fantasmagórico,
das narrativas de Hilda Hilst.
Entre
a verdade e os infernos
Dez
passos de claridade
Dez
passos de escuridão.
São
Paulo, 1970.