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Hilda Hilst: Poeta, Narradora, Dramaturga

por Anatol Rosenfeld


  Homo sum; humani nihil a me alienum puto.
Terêncio

Hilda Hilst na Casa do Sol, 1970.

       É raro encontrar no Brasil e no mundo escritores, ainda mais neste tempo de especializações, que experimentam cultivar os três gêneros fundamentais de literatura — a poesia lírica, a dramaturgia e a prosa narrativa — alcançando resultados notáveis nos três campos. A este grupo pequeno pertence Hilda Hilst que, de início exclusivamente dedicada à poesia e mais conhecida como poeta — convém evitar o termo poetisa carregado de associações patriarcais — invadiu mais recentemente o terreno da dramaturgia e apresenta agora o primeiro volume de ficção narrativa. Ao lado de necessidades subjetivas, são sem dúvida também problemas de ordem objetiva que a levaram a estender a sua arte, de forma significativa, a domínios literários além daqueles da poesia. É preciso somente mencionar o fato de que uma visão antinômica da realidade se exprime de modo mais radical e aguçado no diálogo da obra dramática, no dia-logos, isto é, no espírito dividido de um gênero que surge depois de rompida a unidade espiritual da origem; unidade todavia que ainda assim subjaz à divisão já que de outro modo o próprio diálogo se tornaria impossível. Não será difícil mostrar que também as pesquisas na esfera da prosa ficcional, tal como praticadas nas obras deste volume, quase todas distantes dos padrões do conto, obedecem a imposições objetivas.

       Hilda aos 11 anos (ΰ direita) no C. Santa Marcelina.

       Hilda Hilst nasceu a 21 de abril de 1930 em Jaú, Estado de São Paulo. O pai, Apolônio de Almeida Prado Hilst, fazendeiro e poeta, era filho de Eduardo Hilst, imigrante que veio da Alsácia-Lorena ao Brasil, e de Maria do Carmo Ferraz de Almeida Prado. A mãe, Bedecilda Vaz Cardoso, era filha de portugueses. Hilda estudou durante oito anos como interna no Colégio de Freiras Santa Marcelina, em São Paulo, ambiente evocado na sua dramaturgia (A Possessa, Rato no Muro), na narrativa O Unicórnio, deste volume, e também na poesia:

 

       Os amantes no quarto
       Os ratos no muro
       A menina
       Nos longos corredores do colégio.

 

       O tema multívoco dos ratos, aliás, ressurge numa das peças (Aves da Noite) e também na ficção narrativa, fato digno de nota por revelar a persistência dos motivos que se mantêm através da obra poética, dramática e narrativa de Hilda Hilst.

       Ernesto (?) e Hilda Hilst na Faculdade de Direito, 13/11/1950.

       Depois de terminar o curso clássico na Escola Mackenzie, a poeta estudou na Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Formada, a jovem bacharel exerceu durante alguns meses a advocacia, profissão que, segundo confessa, a deixou "apavorada". Esse pavor se manifesta ainda na peça Auto da barca de Camiri, na qual se lê, a respeito do amor, que "essa asa na lei / não está prevista".

       Hilda Hilst publicou seu primeiro livro de poesias aos vinte anos (Presságio, 1950), seguindo-se em rápida seqüência obras como Balada de Alzira (1951), Balada do Festival (1955) e outras, entre elas Trovas de Muito Amor para um Amado Senhor (1960). Uma seleção da sua obra poética madura encontra-se reunida em Poesia 1959/1967. O seu teatro, constituído de oito peças, permanece lamentavelmente inédito, embora O Verdugo tenha conquistado o Prêmio Anchieta de 1969. Algumas das peças foram encenadas pela Escola de Arte Dramática de São Paulo e por vários grupos amadores, devendo-se esperar que também o teatro profissional, mais cedo ou mais tarde, descubra o valor desta obra cênica, marcante pela qualidade literária e por introduzir uma voz inteiramente nova e original na dramaturgia brasileira moderna, raramente beneficiada pela colaboração criativa dos poetas.

       H.Hilst, Cαssio Rodrigues e Marina Amaral em Roma, 1957.

       Em 1957 e 1961 Hilda Hilst fez viagens maiores pela Europa, demorando-se na França, Itália e Grécia. Casou-se em 1968 com o escultor Dante Casarini.

       Desde cedo seu interesse quase exclusivo se dirigiu para a criação poética. Nesta paixão foi estimulada pelo poeta e jornalista João Ricardo Barros Penteado, ao passo que deve a Alfredo Mesquita, fundador e durante longos anos diretor da Escola de arte Dramática de São Paulo, o incentivo para invadir o campo da literatura teatral. Entre os amigos a quem, por razões afetivas ou intelectuais, se sente ou sentia ligada, salientam-se Sergio Milliet, o escritor gaúcho Caio Fernando Abreu, Lygia Fagundes Telles, Bráulio Pedroso, José L. Mora Fuentes, Joy Kostakis e o poeta português Carlos Maria Araújo a quem dedicou, por ocasião da sua morte precoce, as sete estanças dos Pequenos Funerais Cantantes.

 

       Dorme o amigo no seu corpo de terra.

       E dentro dele a crisálida amanhece:

       Ouro primeiro, larva, depois asa

       Hás de romper a pedra, pastor e companheiro.

 

       O tema da crisálida, do estado intermediário, latente, do vir-a-ser e da "irrupção" e transcendência é fundamental na obra de Hilda Hilst, tanto na poesia e dramaturgia como também na prosa narrativa do presente volume.

       Com Gilberto Amado e Carlos Drummond de Andrade manteve, durante certo tempo, correspondência amiga; mas foi sobretudo Jorge de Lima, ao lado de Fernando Pessoa e Cecília Meireles, quem, entre os poetas de língua portuguesa, mais de perto a tocou. A epígrafe que escolheu para os Sete Cantos do Poeta para o Anjo (1962) é de Jorge de Lima:

       Nunca fui senão uma coisa híbrida

       Metade céu, metade terra...

 

       O tema, reiterado nos Sete Cantos — "desde sempre caminho entre dois mundos" — e em outros poemas:

 

       Tão grande ambivalência

       Concedida aos homens

       Terá sido dos deuses

       Complacência?

 

       —esse tema, intimamente ligado aos acima mencionados, irá ser a verdadeira substância das cinco narrativas de Fluxo-Floema.

       A experiência poética de Hilda Hilst é ampla. Ao lado dos poetas lembrados, ama, ou pelo menos amava durante certa fase, a poesia de Höelderlin, Rilke, John Donne, Eliot, René Char, Saint-John Perse. alguns deles afinam, em maior ou menor grau, com as tendências místicas e metafísicas de Hilda Hilst, tendências que se situam, aproximadamente, na linha da tradição platônica e gnóstico-teosófica e que se manifestam também — e particularmente — nas elocubrações físico-geométricas da sua poesia e dramaturgia. Matemática e mística, por paradoxal que possa parecer, são terrenos que facilmente se avizinham, sobretudo na literatura contemporânea. Não surpreende que Hilda Hilst mostre, no campo da dramaturgia, pouco interesse por Bertold Brecht — embora goste de sua Mãe Coragem — e que prefira uma obra mística como O Dibuk, de An-Ski. Isso explica também sua inclinação por Ionesco e, sobretudo, por Beckett que, ao lado de Kafka e Camus, veio a ser, mormente como o narrador de Molloy, uma influência fundamental na sua ficção narrativa.

       Hilda no pαtio interno da Casa do Sol, 1968.

       Experiência decisiva, não só de ordem literária e sim "existencial" (se é possível separar o que é inseparável para quem, como Hilda Hilst, a criação literária é uma atividade absolutamente vital) foi a leitura de Nikos Kazantzakis. Certamente a impressionaram profundamente, talvez em demasia para quem não afina tanto com o autor grego, a busca esotérica e por vezes excêntrica de verdade última, de unidade cósmica, ao lado da exaltação romântica da vitalidade e do vigor primevos. Hilda Hilst confessa que a leitura da Carta a El Greco chegou a "mudar a minha vida". É, com efeito, depois desta experiência — fundamentalmente mística — que se retirou de São Paulo, fugindo das "invasões cotidianas" e da multiplicidade de "contatos agressivos", para viver com o marido na sua fazenda perto de Campinas.

 

       O escultor Dante Casarini e H.Hilst sob a figueira da Casa do Sol, 1967.

       Naturam expellas furca; tamem usque recurret.

Horácio

 

Chassez le naturel, il revient au galop.

Abbé Destouches

 

       A poeta chegou à dramaturgia porque queria "falar com os outros"; a obra poética "não batia no outro". Era um desejo de comunicação (é difícil evitar o termo que, desde que deu o nome a uma teoria, faz de imediato pensar em canais) e a obra poética não lhe parecia satisfazer esse desejo, pelo menos não na medida almejada. Há, em Hilda Hilst, uma recusa do outro e, ao mesmo tempo, a vontade de se "despejar" nele, de nele encontrar algo de si mesma, já que sem esta identidade "nuclear" nào existiria o diálogo na sua acepção verdadeira. Pelo mesmo motivo chegou à ficção narrativa, depois do desengano — certamente provisório — que lhe causou a atitude cautelosa do teatro profissional.

      É apenas por conveniência que os textos do presente volume (Fluxo-Floema — SP: Perspectiva, 1970) foram chamados de "ficção" ou "prosa narrativa". Para Hegel o gênero épico-narrativo é o mais objetivo. A ele se contrapõe, dialeticamente, a antítese subjetiva do gênero lírico, sendo o dramático a síntese, visto reunir, segundo Hegel, a objetividade épica e a subjetividade lírica. Semelhante diferenciação perde o sentido em face dos textos em prosa de Hilda Hilst, já que neles todos os g6eneros se fundem. Eles são épicos no seu fluxo narrativo que às vezes parece ter a objetividade de um protocolo, de um registro de fala jorrando, associativa, e transcrita do gravador; mas são, ao mesmo tempo, nas cinco partes — Fluxo, Osmo, O Unicórnio, Lázaro e Floema — a manifestação subjetiva, expressiva, torturada, amorosa, venenosa, ácida, humorística e licenciosa de um Eu lírico que extravasa avassaladoramente os seus "adentros", clamando com "garganta agônica", do "limbo do lamento", tateando e sangrando, em busca de transcendência e transfiguração. Entretanto, este Eu ao mesmo tempo se desdobra e triplica, assumindo máscaras várias, de modo que o monólogo lírico se transforma em diálogo dramático, em pergunta, resposta, dúvida, afirmação, réplica, comunhào e oposição dos fragmentos de um Eu dividido e tripartido, múltiplo, em conflito consigo mesmo. Contudo, as vozes (que não se manifestam no pretérito da narrativa, mas amalgamando as formas do presente lírico e dramático) submergem na corrente de uma linguagem de espantosa invenção, de barroca criatividade, vozes quase indistintas, visto a autora cuidar de não diferenciá-las pelos símbolos tipográficos corriqueiros. Deste modo se fundem de novo, quase irreconhecíveis, no Eu lírico, portador do rasante turbilhão verbal que, lançado contra pedras e obstáculos, forma redemoinhos de "floema" engasgado, detendo-se, gago, a língua se tornando objeto de si mesma, se autocomentando, se autocriticando e autoflagelando, chegando até à autodestruição, para depois recompor-se e prosseguir, levada pelo impulso da maré verbal.

      Os textos, em conjunto, visam a enunciar a totalidade do homem através da sua multiplicidade — e essa visão prismática ou caleidoscópica forçosamente teria que recorrer a todos os gêneros para exprimir-se na sua plenitude. "Porque vê a mim como adãoeva, dúplice sim, tríplice sim, multifário, multífido, multífluo, multisciente, multívio, multíssono..."

      Em cada um dos textos há três "personagens", melhor três máscaras que se destacam: Ruiska, Ruisis, Rukah (desdobrado em anão), cada qual se fragmentando e todos UM, Ruiska, que vive entre o poço e a clarabóia, lunar e solar ("Fluxo"); Osmo, Mirtza e Kaysa: Osmo telúrico-lunar, sem que na sua escuridão lhe falte lucidez e aspiração à luz ("Osmo"); os dois irmãos, a lésbica e o pederasta, cada qual com a sua parte feminina e masculina, e o Eu que vira unicórnio, não sem que haja referência meio envergonhada à Metamorfose de Kafka e aos rinocerontes de Ionesco ("O Unicórnio"); Marta, Maria e Lázaro — esse "solarizado", vontade de ressurreição, de transmutação, rompendo o casulo ("Lázaro"). ". . .como explicar (lê-se em "Fluxo") à crisálida que ela é casulo agora e depois alvorada. . . como explicar o vir-a-ser de um ser que só se sabe no Agora, ai como explicar o Depois de um ser que só se sabe no instante?" E ao fim, em "Floema", Koyo, Haydum e Kanah: Koyo na sua luta com Haydum — relação religiosa selvagem como o amor; Haydum, o "outro", que, como diz Hilda Hilst, não sabe o que procura, que busca sem cessar e a este os homens dão, talvez impropriamente, o nome de Deus. Estranho Deus teosófico que faz do homem cobaia, que o trata a porretadas como se fosse cão sarnento, enquanto ao homem cabe salvar este Deus, que, como consta de uma das peças, é o lobo do homem como o homem é o lobo de Deus.

      Na linguagem nobre e austera de sua poesia Hilda Hilst não poderia dizer toda a gama do ente humano, tal como o concebe, nem seria capaz de, no palco, "despejar-se" com a fúria e a glória do verbo, com a "merdafestança" da linguagem, sobretudo também com a esplêndida liberdade, com a inocência despudorada com que invade o poço e as vísceras do homem, purificando-os com "dedos lunares" para elevar o escatológico ao escatológico, visto nesta obra mesmo as trevas e o "porco" — "sou porco com vontade de ter asas", diz Ruiska — se carregarem de sentido religioso. Nos poemas se lê:

 

      Ser terra

      E cantar livremente

      O que é finitude

      E o que perdura.

 

      Unir numa só fonte

      O que soube ser vale

      Sendo altura.

 

      Ou então:

 

      Sou tantas

      Tantos vivem em mim e pródiga descerro-me

      Pródiga me faço larva e asa.

 

      Mas só agora consegue cantar livremente. Larvas e asas, porcos, aves, serpentes e unicórnios — tudo se funde na multiplicidade do homem: semelhante visão forçosamente resulta num universo em que ressalta o grotesco-fantástico, o grotesco-burlesco, o grotesco-terrorífico e o grotesco-obsceno, unidos nesta obra única na literatura brasileira.

      Rouah, o demônio, o maldito de "Lázaro", é irmão gêmeo de Jesus e, sendo nosso irmão, merece, também ele, respeito. O anão de "Fluxo", que vem do "intestino, da cloaca do universo, do cone sombrio da lua", diz a Ruiska, o porco com "vontade enorme de limpar o mundo": "Mas se eu ainda nào sei das minhas vísceras, se ainda não sei dos mistérios do meu próprio tubo, como é que vou falar dos ares de lá? . . . é justo falar do de cima se o de baixo nem sabe onde colocar os pés?"

      Os textos, no seu todo, com a audácia da sua linguagem em que o sagrado se reveste de atributos diabólicos e o monstruoso, de cores celestes, são uma celebração ritual levada ao desvario e ao paroxismo; ritual destinado a convocar a plenitude múltipla do homem em toda a sua imanência para, ao mesmo tempo, transcendê-la e fazer vislumbrar "os ares de lá". No próprio elemento verbal, levando a língua, no fluxo e refluxo da maré e da ressaca, tanto a tropeçar, com passos ébrios e pesados, como a dançar, com "graça nos pés" e "leveza nos andares", Hilda Hilst encarna e ao mesmo tempo supera "o limite da carne" que "pesa sobre nós". "O pensamento discursivo e lento" (de que se queixa num poema) naufraga na corrente vertiginosa de uma linguagem conotativa de cujo ventre fecundo nasce, lembrando quadros de Bosch e Brueghel, o mundo casto e impudico, real e supra-real, profundamente natural e terreno e, ao mesmo tempo, alucinatório e fantasmagórico, das narrativas de Hilda Hilst.

 

      Entre a verdade e os infernos

      Dez passos de claridade

      Dez passos de escuridão.

 

      São Paulo, 1970.

 

 
 
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