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Como uma brejeira escoliasta

- por J. L. Mora Fuentes para a revista Cult -

 

Deus? Uma superfície de gelo ancorada no riso.

"Com meus olhos de cão"

Hilda Hilst

 

      "Sou uma dessas máquinas que às vezes explodem. A intensidade de minhas emoções me faz tremer e rebentar de rir." Nietzsche, carta para um amigo. O fragmento também poderia servir de epígrafe para Cascos e carícias, livro inédito de Hilda Hilst, que reúne as crônicas publicadas pelo "Caderno C" do jornal Correio Popular (Campinas, SP), no período de 1992-1995.

      Surgindo como resposta ao convite do editor Wilson Marini, os textos são lúcida irreverência, humor e crítica impiedosa das mofinezas humanas, bem como da comiseração pela fragilidade e desatinos da espécie. Aliando prosa e poesia para estampar o absurdo que partilhamos na matéria, a inquietante Hilda bombardeou, durante 62 contundentes semanas, a tradicional sociedade campinense com questionamentos essenciais, repletos de mordacidade, pungência e erudição. Talvez apenas um seleto grupo de nigromantes pudesse prever o alvoroço provocado. A resposta inflamada dos leitores, sua passionalidade defendendo ou criticando violentamente a escritora e os inúmeros debates que se seguiram mostraram o quanto a sociedade está sempre faminta de diálogo (Pois não é que os ventos mudaram? Há pouco tempo, esta modesta articulista estava a ponto de ser apedrejada como uma infeliz rameira lá da Galiléia. E não é que virei santa? Credo, Elias! Santo sofre, "Musa Cavendishi", 15 de fevereiro de 1993). A profusão de cartas serviria também para silenciar aqueles que, por praticidade e inexatidão, qualificam a autora de hermética.

      Distanciando-se propositadamente da análise política, preferindo ser porta-voz da indignação popular diante dos constantes desacertos e desmandos de nossos políticos (Tem sido mais fácil compreender Heidegger, Wittgenstein, sânscrito, copta, do que compreender explicações de ministros e quejandos, "Lama, Lhamas, Perus", 17 de maio de 1993), HH questiona o Ser Político, comentando o Brasil tramoso de escusos benefícios, das cifras astronômicas, dignas de um primeiro mundo, que engordam os bolsos de alguns dos nossos representantes, do desrespeito com a cidadania e das escabrosas realidades que deveriam pertencer exclusivamente à filmografia de José Mojica Marins (Há alguns dias, através da imprensa, soube que alguns encontraram, num monturo de lixo hospitalar, em Olinda, uma teta. E devoraram-na. Cuidai-vos, jovens senhoras, de exibir tetas e nádegas portentosas (...). Desgraçado País onde um povo famélico, esfarrapado, doente, encontra na podridão o seu guisado, "Presidente, abre o olho: Tão comendo gente!", 24 de abril de 1994).

      A autora descreve também a solidão e estranheza do poeta diante do comportamento humano, a perplexidade de pertencer à mesma espécie que abriga simultaneamente vilões, santos, heróis e demasiada truculência. Como nas suas demais obras, vamos encontrar aqui a indicação de que só através da pergunta e do exercício constante na busca do entendimento podemos pretender algum significado (Frente a frente com Deus, serei aquele amontoado de perguntas e já posso lhe ver a língua rosada, dourada, e perdigotos azuis roçando-nos com suas diminutas asas, "Para buchos e neurônios", 28 de novembro de 1993).

      Escritas após a publicação de sua trilogia erótica (O caderno rosa de Lori Lamby, Contos D'Escárnio/Textos grotescos, Cartas de um sedutor), num período de plena produtividade e pujança criativa (publicou os livros Bufólicas e Do Desejo, ambos de poesia, em 1992, Rútilo nada, prosa, em 1993, e Cantares do sem nome e de partidas, poesia, em 1995), talvez a importância maior das crônicas tenha sido a de expor o surpreendente Universo Hilstiano a um público bem mais vasto do que aquele dos seus tradicionais seguidores. Mérito que, sem dúvida, devemos exclusivamente ao veículo utilizado, o jornal, que independe da precária distribuição com que os livros dos nossos melhores escritores e poetas costumam ser brindados.

      Aos doutos que creditam o gênero como algo menor dentro da literatura, cabe realçar a rara singularidade da cronista e a evidência de que a qualidade da obra de arte é intrínseca aos atributos e refinamentos do universo de seu autor. Se o escritor fala sempre de si mesmo e das suas angústias, talvez na crônica, como simples narrador, distante das suas múltiplas personagens, possa nos informar melhor de si mesmo.

      Quando declinou de continuar com as crônicas, exausta da obrigatoriedade de dizer alguma coisa a alguém uma vez por semana e sentindo-se limitada pelo espaço jornalístico (Uma das coisas que mais me chateiam nisso de escrever crônicas é a quase obrigação de ser sempre pra cima, vivaz, alegrinha, "O arquiteto dessas armadilhas", 4 de outubro de 1993), Hilda Hilst já iniciava seu Estar sendo - Ter sido, ficção publicada em 1997 e que considera, ao menos até o momento, sua despedida literária. Não lhe pareceu compatível a convivência de tessituras e profundezas tão diferentes, como a que se pretendia na linguagem jornalística e a exigida pelo novo texto.

      Hilda Hilst pertence ao patamar dos grandes artistas, cuja essencialidade nos impõe o dever de preservar todos seus escritos. Não é surpresa, portanto, que a Unicamp tenha comprado, recentemente, seu arquivo particular. Da mesma forma, ao editar a totalidade das crônicas, a editora Nankin não apenas respeitou a vontade da autora, mas beneficiou o leitor com esse registro permanente.

      Sábia de requintes que nos permitem avançar no pouco-nada que intuímos de nós mesmos, Hilda desmascara sem pudor, seja com cascos, suaves garras, ríspidas carícias, nossos mais preciosos ícones. E assim revela nosso rosto verdadeiro.

(J. L. Mora Fuentes é escritor e jornalista.)

 

 
 
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