Trecho
de
Contos
D'Escárnio
Textos
Grotescos
de
Hilda Hilst
O
que eu podia fazer com as mulheres além de foder? Quando eram cultas,
simplesmente me enojavam. Não sei se alguns de vocês já
foderam com mulher culta ou coisa que o valha. Olhares misteriosos, pequenas
citações a cada instante, afagos desprezíveis de
mãozinhas sabidas, intempestivos discursos sobre a transitoriedade
dos prazeres, mas como adoram o dinheiro as cadelonas! Uma delas, trintona,
Flora, advogada que tinha um rabo brancão e a pele lisa igual à
baga de jaca, citava Lucrécio enquanto me afagava os culhões
e encostava nas bochechas translúcidas a minha caceta: ó
Crasso (até aí o texto é dela) e depois Lucrécio:
"o homem que vê claro lança de si os negócios e procura
antes de tudo compreender a natureza das coisas". A natureza da própria
pomba ela compreendia muito bem. Queria umas três vezes por noite
o meu pau rombudo lá dentro. E antes desse meu esforço queria
também a minha pobre língua se adentrando frenética
naquela caverna vermelhona e úmida. Empapava os lençóis.
Era preciso enxugá-la com uma bela toalha felpuda antes de meter
na dita cuja. Na hora do gozo ria.
isso
não é normal Flora.
bobinho!
Isso é vida, alegria, o amor é alegre, Crassinho.
Histérica
e sabichona dava gritinhos e rápidos aulidos, e quando tudo acabava,
sentava-se sóbria na beirada da cama:
as
causas judiciais demoram tanto para serem solucionadas, meu Crasso, tem
algum numerário aí para mim? assim que receber dos meus
clientes te pago. O seu único cliente era eu e claro que eu pagava.
Afinal não me fazia mal ouvir Lucrécio de vez em quando,
se a atriz discursante era dona daquela pomba molhada e faminta. Claro
que nem todas as soi-disant cultas são assim tão
chatas. Tive as cultas refinadas e originais também. Mas que mão
de obra, meu pai! Uma delas é inesquecível. Josete. Inesquecível
por vários motivos. Mas principalmente pelo gosto exótico
na comida e no sexo. Ela adorava tordos com aspargos. E pastelões
de ostras. Era preciso que eu telefonasse uma semana antes para os maîtres
dos tais restaurantes. Tordo?! Nunca sabiam se era um pássaro ou
um peixe. Eu imagino hoje que ela sempre acabava comendo um sabiá.
Com aspargos. O pastelão de ostras era mais fácil. Mas os
vinhos para acompanhar aquilo tudo! Josete entendia de vinhos como se
tivesse nascido embaixo duma parreira de Avignon. Depois desse inferno
todo, ainda tínhamos que dançar, porque é delicioso
dançar com você amor, se você tivesse mais tempo...
tenho
todo o tempo do mundo, querida (talvez tivesse, mas nem tanto!)
Tinha
mania de uma música: You've changed, e era aquela xaropada
até às duas da manhã mais ou menos, quando eu já
havia mergulhado meus dedos várias vezes na sua suculenta xereca.
Abria discreta e elegante as pernas nas boates, embaixo da mesa, enquanto
engolia com avidez aqueles vinhos caríssimos. Sorrindo soltava
um pífio arroto de tordos e ostras abafado entre os seus dois dedinhos,
enquanto os meus (dedos naturalmente) beliscavam-lhe a cona. Muitas beliscadinhas,
muito dedilhado até que ela gozava escondendo o gozo e simulando
um segredo e enchendo de bafo, gemidos e saliva a concha do meu ouvido.
Eu dizia com a caceta dura e espremida entre as calças:
vamos
embora, hen bem?
tá
tão gostoso, amor
eu
sei, Josete, mas olha só o meu pau
não
seja grosso, Crasso
E
aí eu tinha que começar tudo de novo, não sem primeiro
ouvi-la pedir as sobremesas e os licores. Depois de Josete ter gozado
umas dez vezes entre sabiás e musses e álcoois dos mais
finos que me custavam um caralhão de dinheiro, levantava-se garbosa,
Espártaco antes da derrocada final, naturalmente. Eu ia atrás
meio cego mas ainda sedento. Um tal de Ezra Pound, poeta norte-americano,
era o xodó de Josete. Ô cara repelente. Um engodo. Invenção
de letrados pedantescos. No primeiro dia que ela citou o tal poeta eu
lhe disse: meu tio Vlad quando eu era molequinho, tinha crises de loucura
quando ouvia esse aí falando numa rádio italiana. O cara
era um bom fascistóide, você sabia?
bobagens,
Crassinho, o homem foi um gênio.
Para
agradá-la, pedi que me emprestasse algum livro dele. Emprestou
Do Caos à Ordem, cantar XV. Aquilo era uma pústula,
uma privada de estação em Cururu Mirim. Senão, vejam:
"O
eminente escabroso olho do cu cagando
[moscas,
retumbando
com imperialismo
urinol último, estrumeira, charco de mijo sem
[cloaca
.................
o preservativo cheio de baratas,
tatuagens
em volta do ânus
e
em círculo de damas jogadoras de golfe em
[roda
dele."
Josete
adorava. Os olhinhos cor de alcaçuz, úmidos, tremelicavam.
A boca repetia lentamente (em inglês, lógico) esses últimos
dois versos do tal gênio: "tattoo marks around the anus, and
a circle of lady golfers about him". Eu achava um lixo, mas não
queria me desentender com toda aquela boceta-chupeta que literalmente,
quando ativada, abraçava e quase engolia o meu pau.
tudo
bem, Josete, se você gosta... de gustibus et coloribus etc.
pois
gosto tanto, amor, que vou te mostrar a que ponto vai minha reverência
por esse autor admirável
Abatido,
já me imaginei desperdiçando aquelas horas a folhear idiotias,
ainda mais em inglês. Estávamos no apartamento de Josete.
Pensei: é agora que ela vai se levantar e esparramar os livros
do nojento aqui na cama. E adeus mesmo, vou inventar uma súbita
náusea e me mando. Surprise! Ah, como a vida me encheu de
surpresas! Josete deitou-se de bruços e ordenou lacônica:
pegue
aquela grande lupa lá na minha mesinha.
Lupa?
Lupa,
sim, Crassinho.
Então
peguei.
faz
um favor, benzinho, abra o meu cu.
como?
oh,
Crassinho, como você está ralenti esta noite
e
o que eu faço com a lupa?
a
lupa é pra você olhar ao redor dele.
ao
redor do seu cu, Josete?
evidente,
Crassinho.
Foi
espantoso. Ao redor do buraco de Josete, tatuadas com infinito esmero
e extrema competência estavam três damas com seus lindos vestidos
de babados. Uma delas tinha na cabeça um fino chapéu de
florzinhas e rendas.
não
acredito no que estou vendo, Josete, você tatuou à volta
do seu cu pra quê?
homenagem
a Pound, Crassinho
mas
isso deve ter doído um bocado!
the
courageous violent slashing themselves with knifes ( que quer dizer:
os violentos corajosos cortando-se com facas. Continuação
do Canto XV).
coma
meu cuzinho, coma meu bem, andiamo, andiamo (cacoetes de Pound)
Aí
achei o cúmulo. "Jamais, meu amor, machucaria essas lindas damas".
Josete começou a chorar.
ó
Crasso, você é o primeiro homem a quem eu mostro esse mimo,
essa delicadeza, essa terna homenagem ao meu poeta, andiamo, andiamo
in the great scabrous arse-hole (no grande escabroso olho do cu)
Aí
pensei: essa maldita louca vai começar a choramingar mais alto
e o prédio inteiro vai ouvir. Enchi-me de coragem e estraçalhei-lhe
o rabo com inglesas ou americanas (who knows?) e babados e o chapéu,
não naturalmente sem antes lhe tapar a boca, porque tinha certeza
que ela ia zurrar como um asno. Zurrou abafada, mas eu podia discernir
algumas palavras. Ela zurrava: ó (leia-se aou, aou, aou, entonação
inglesa) Aou Ezra, aou my beloved Ezra! Nunca entendi por que Josete
quando citava Pound colocava a entonação inglesa. Também
nunca perguntei. Certamente o nojento era o Shakespeare dela.
(...)
(Contos D'Escárnio/Textos
Grotescos - SP: Siciliano, 1990.)