Hilda Hilst, Kazantzakis e meu ano 7
por
Yuri V. Santos
"O
que esperais de um Deus? Ele espera dos
homens que O mantenham vivo."
Hilda Hilst
Vezenquando
recebo, em bloco, diversas mensagens me indagando como fui parar na
casa da Hilda Hilst. Em seguida, novo silêncio, depois,
mais curiosos. Hoje, Rose Falhari, minha ex-professora de redação
no cursinho (1990), me pergunta se sei onde encontrar o livro "Carta
a El greco", de Nikos Kazantzakis, que, segundo a Hilda,
foi o livro que a fez abandonar o ramerrão e os prazeres da São
Paulo boêmia, e se retirar para uma casa de campo (Casa do Sol),
nos arredores de Campinas-SP, onde pudesse encontrar seu próprio
silêncio interior, ou seja, o protagonista explícito ou
não da maior parte de seus livros: Deus. Isto me fez lembrar
do primeiro mês que passei na Casa do Sol, Outubro de 1998, e,
coincidentemente, do primeiro livro que lá li: "Ascese",
também de Nikos Kazantzakis, que, dentre outros, ainda escreveu
"A última tentação de Cristo"
e "Zorba, o grego".
Poucos
acreditam, mas quando Shirley Stefanowsky me apresentou Hilda Hilst
eu não tinha a mínima idéia de quem ela era. Eu
havia abandonado a UnB - e minha querida Brasília - e estava
de volta a São Paulo, onde nasci. Era então sócio
de um estúdio fotográfico (o Base 1) com Dante,
Fábio Correa e Christian Sievers, todos, sem excessão,
excelentes fotógrafos. Shirley era nossa produtora e, enquanto
me ajudava a preparar o lançamento do meu primeiro livro - A
Tragicomédia Acadêmica -, falou-me de Hilda pela primeira
vez. Para mim, então, Hilda se resumia a isto: a amiga escritora
da minha amiga, uma provável hiponga que vivia com montes de
cachorros numa chácara. Cheguei a pensar que ela teria a minha
idade, uma vez que a Shirley falava tão vivamente dela sem jamais
mencionar a idade. Quando, pela primeira vez, vi sua foto na contracapa
do livro "Tu não te moves de ti", emprestado
pela Shirley, pensei: ela deve ter uns quarenta anos. Eu sei que esse
desconhecimento pode parecer incrível e estranho para alguém
que se diz escritor, mas meus interesses nunca se limitaram à
literatura - tanto que não quis estudar apenas Letras -, e sempre
tive o costume de ler preferencialmente aqueles autores citados por
outros autores que eu já conhecia e admirava. Ninguém,
que eu me lembrasse, nunca me citara Hilda antes e, se o fizeram, foi
longe dos meus olhos e ouvidos. (Meu amigo Roosevelt Rocha, professor
de latim - que, aliás, foi quem me deu carona quando me mudei
de mala e cuia pra casa da Hilda - disse que me falara a respeito dela
anos antes, quando ainda vizinhos em Brasília, mas, realmente,
não me lembro.)
Bom,
a situação era a seguinte: eu sabia que, em 24 de Outubro
de 1998, eu iria entrar em meu ano pessoal número 7, o que, na
numerologia, significa que haveria uma tendência, no correr desse
ano, de eu me voltar para meu interior, onde eu iria discernir com maior
nitidez o valor do caminho que escolhera, a amplitude de meus potenciais
e, de quebra, minha própria Voz. (Um escorpiano como eu, por
mais cético que tente ser, leva isto muito a sério.) Só
que eu estava vivendo em meio a uma balbúrdia sem fim, com mil
fotógrafos estressados, assistentes pirados, festas, ravers,
DJs, lindas modelos - o Fábio fotografa pra Elle e Vogue,
o Cristian, pra Trip -, sem falar em minha eterna dúvida:
o que é, mas o que é mesmo que um escritor está
fazendo no meio desse adorável hospício? Quando voltarei
a meu ritmo de leitura e a meus próprios projetos literários?
Como conseguirei ter um tranqüilo ano 7 morando na Vila Madalena
com uma namorada mãe de dois filhos quase da minha idade, cada
qual mais maluco que o outro? (Sim, porque até o Marcelo D2
quis morar por lá, num dos quartos vagos. Sem falar que minha
namorada, quando mais nova, fora namorada do Raul Seixas. Como
dizia um meu amigo: ih, você beijou o Raul Seixas na boca de tabela!)
E
chegou Julho de 1998. Ainda me lembro da primeira vez que vi a Hilda:
quando entramos na sala daquela casa espanholada, ela estava sentada
em frente à TV, cercada de cães e inclinada sobre uma
mesinha na qual se via seu Whisky, num copo longo, e um pratinho de
cebolinhas. Aliás, foi a primeira vez que comi cebolinhas, que
ela, gentilmente, se apressou em me oferecer. Depois, ela reclamou do
horário tardio em que chegáramos - um pneu havia furado
no caminho - e que deveríamos aguardar o final da novela para
conversarmos melhor. Lembro-me de me espantar com a idade dela: ela
não tinha quarenta, mas uns setenta anos de idade. (Na verdade,
tinha 68 anos.) Passamos um tranqüilo e excelente final de semana
com ela, o qual, infelizmente, terminou com a Hilda literalmente soltando
os cachorros em cima da gente. Sim, pois no sábado fomos até
Campinas assistir a um show conjunto do Naná Vasconcelos
e do Uakti, no qual chegou a ocorrer certo estresse entre estudantes,
eu acho, e a polícia. Tudo teria sido normal se, após
o ótimo show, tivéssemos ido pra casa. Mas não,
fomos com um dos músicos do Uakti prum bar próximo. Depois
apareceu o Naná Vasconcelos e ficamos todos de maravilhoso papo
furado até as quatro e meia da manhã. O problema foi que,
ao entrarmos na chácara da Hilda, fomos recebidos pelos uivos
e latidos de cerca de oitenta cães. Hilda ficou muito assustada
com a tempestade canina e, após especular sobre as possíveis
causas, descobriu, pela manhã, que os hóspedes eram os
culpados. Fomos rispidamente convidados a nos retirar. (Sabe, né,
coisa de taurinos.) O que não nos impediu de lá voltar
ainda outros dois finais de semana e, finalmente, de receber o convite
da Hilda para residir com ela. Passei então, à guisa de
experiência, o mês de Outubro na Casa do Sol, lá
passando meu aniversário de 27 anos. Na biblioteca, que, feito
um sonho realizado, também era o meu quarto, peguei o livro que
mais parecia se coadunar com a essência do que seria meu ano 7:
"Ascese", de Nikos Kazantzakis (foto). Mostrei-o para Hilda
e ela, então, me contou o caso em que Kazantzakis, quando se
preparava para ir escrever em Monte Athos, resolveu antes despedir-se
da vida mundana transando - no vocabulário da Hilda, fodendo
- com uma prostituta em Paris. Ele tomou banho, vestiu-se e, quando
foi ao espelho fazer a barba, viu que seu rosto estava coberto de pústulas.
Encarou aquilo como um sinal dos Céus, desistiu da prostituta
e foi a Monte Athos cumprir seu dharma.
Bom,
foi assim que conheci Hilda Hilst. Neste texto não quero ainda
falar do alcance da minha experiência com ela. Morei em sua chácara
por dois anos - meus anos pessoais 7 e 8 - e, vez ou outra, passo temporadas
por lá. Há muito de verdade e muito de mistificação
nas histórias da Casa do Sol. Mas isto ficará para futuros
textos. (Escrevi lá um diário. Infelizmente ainda não
havia blogs.) Por enquanto, basta dizer que é uma pena que a
Hilda tenha setenta e dois e não vinte anos de idade. Bom, ao
menos acreditamos ambos na imortalidade...
Yuri V. Santos
é autor de "A
Tragicomédia Acadêmica - Contos Imediatos do Terceiro Grau"
(publicado) , "Eu
odeio terráqueos!!" e "L.S.D.eus
- Contos Extáticos".
"Ascese",
de Nikos Kazantzakis
Leia,
a seguir, o fichamento - provavelmente única coisa útil
que aprendi na universidade - que fiz do livro "Ascese",
de Kazantzakis, quando o li na Casa do Sol. (Antes, porém, mais
uma coisa: apesar do tom revolucionário de algumas assertivas,
atente para o fato de que tal ardor não tem nada a ver com política
ou revoluções sociais, estando mais para o que a própria
Hilda afirmou na entrevista concedida ao Cadernos de Literatura Brasileira
- "a verdadeira revolução é a santidade"
- ou para aquilo que Krishnamurti repetiu tantas vezes - "a revolução
fundamental é revolucionar-se" -, enfim, trata-se de uma
transformação da alma humana individual.)
A ascese:
"Teu
primeiro dever consiste em perceber e aceitar, sem inútil revolta,
os limites do entendimento humano, e em respirar e trabalhar sem tréguas
dentro da rigidez dos limites."
"Reconheço esses
limites, e em sua cidadela, com resignação, coragem e
amor, luto com satisfação, como se eu fora livre."
"Disciplina: eis a
mais alta das virtudes. Graças a ela, a força e o desejo
se equilibram, e o esforço do homem pode produzir seus frutos."
"Não aceito
os limites! Os fenômenos não me podem conter! Asfixio-me!
viver esta angústia, em teu sangue, profundamente, eis teu segundo
dever."
"Por trás de
todas essas aparências, sinto que uma essência luta. Quero
unir-me a ela."
"Qual será meu
dever? Romper o corpo; lançar-me à união com o
Invisível; impor silêncio a meu cérebro, a fim de
ver e ouvir o apelo do Invisível."
"A outra voz - que
chamaremos de sexto sentido ou coração - contesta e grita:
'Não e não! Não admitas jamais as limitações
do homem! Rompe esses limites! Nega tudo o que teus olhos vêem;
morre, dizendo: a morte não existe!"
"Sou uma criatura débil
e efêmera, massa de argila e sonho. Mas, em meu interior, sinto
turbilhonar todas as forças do universo."
"Beijemo-nos, abracemo-nos,
de corações uníssonos, nós que somos humanos!
Tanto quanto a temperatura da Terra nos permita, enquanto não
tenhamos sido exterminados pelos terremotos, os dilúvios, as
avalanchas e os cometas! Criemos um cérebro e um coração
para a Terra. Criemos, atribuamos o sentido humano ao inumano combate!"
"Liberta-te do conforto
ingênuo do cérebro que se ordena na esperança de
assim domar os fenômenos; livra-te do terror do coração
que procura encontrar a essência na esperança."
"Afasta de ti a maior
das tentações: a esperança. Eis o terceiro dever."
"Despede-te de tudo
a cada instante. Fixa teu olhar, lento e apaixonado, sobre todas as
coisas, e diz contigo: nunca mais!"
"Olha só: vivem,
trabalham, amam, esperam. Olho outra vez: e já todos terão
desaparecido!"
"Congrega tuas forças
e escuta. O coração do homem é todo ele um grito;
debruça-se sobre teu peito para ouvi-lo; alguém dentro
de ti luta e reclama."
"Ama o perigo. Que
haverá de mais difícil? É isto que eu quero. Qual
o caminho a seguir? O que sobe, o mais escarpado. Este é o que
eu tomo; segue-me!"
"Aprende a obedecer:
só é livre aquele que sabe obedecer a um ritmo superior
a si mesmo."
"Aprende a comandar:
só quem sabe comandar pode representar-me nesta Terra."
"Ama a responsabilidade.
Dize a ti mesmo: só eu tenho o dever de salvar a Terra. Se ela
não for salva, a culpa é minha."
"Mantém-te sempre
insatisfeito e revoltado. Assim que um hábito se torna agradável,
elimina-o. O maior dos grandes pecados é a satisfação."
"'Aonde vamos? Será
que venceremos? Qual a razão deste combate?' - Cala-te; os combatentes
jamais perguntam."
"As gerações
futuras não existem num tempo distante e vago, mas já
estão agindo e desejando em tuas entranhas mais íntimas."
"Pois não és
simplesmente um escravo. Contigo nasce uma nova oportunidade, e o grande
coração tenebroso de tua raça estremece com um
novo impulso de liberdade."
"Queiras ou não,
és portador de um novo impulso, de uma idéia nova, de
um novo sofrimento. Enriquece a terra paternal acrescentando-os a ela."
"Tu és responsável.
Não controlas apenas a tua própria existência insignificante
e efêmera. Mas és um lance de dados em que se joga, num
moemnto fugaz, todo o destino de tua raça."
"'Não estou
só! Não estou só!' - Este conceito deve abrasar-te
os olhos noite e dia."
"Que é a felicidade?
A experiência de todos os infortúnios. Que é a luz?
A contemplação de toda a treva, com olhos claros e intrépidos."
"Dessa massa humana,
alguém procura libertar-se com os pés e as mãos,
afogado entre lágrimas e sangue."
"Não é
meu coração que bate e se agita no meu sangue; é
a Terra inteira, que olha para trás e revive a terrível
ascensão para sair do caos."
"Quando falo aos homens,
distingo Deus que luta em seus cérebros mesquinhos e grosseiros."
"Nem a dor, nem a esperança
terrestre, nem a esperança futura, nem a alegria, nem a vitória
- nada disto é por si só a essência do meu Deus.
Toda religião que ergue um culto a uma dessas máscaras
de Deus tolhe o nosso coração e a nossa mente."
"Qual é o fim
desse combate? Assim indaga o pobre cérebro do homem, preocupado
apenas, como sempre, com o seu próprio interesse, e esquecido
de que o grande Sopro não opera no tempo, no espaço ou
na causalidade humana."
"O mais profundo de
nossos deveres humanos não é o de analisar o ritmo da
marcha de Deus, mas de ajustar a ela o ritmo da nossa vida precária."
"Só assim é
que nós, mortais, poderemos criar o imortal: colaborando com
Ele."
"Para que este Sopro
não nos abandone, tratemos de revesti-lo com palavras, alegorias,
pensamentos e encantações. (...) Mas Ele não se
deixaria aprisionar pelas vinte e quatro letras que conseguimos arregimentar;
e percebemos logo que essas palavras, esses símbolos, esses sentimentos
e esses encantos só podem constituir uma nova máscara
diante do abismo."
"Somente limitando
o ilimitado é que podemos trabalhar no interior das fronteiras
do círculo humano que acaba de ser traçado."
"Que significa trabalhar?
Povoar esse círculo de desejos, de angústias, de ações,
forçá-lo até as suas fronteiras mais recuadas,
não poder ser mais contido por elas e rompê-las, reduzindo-as
a nada. Estirando assim os fenômenos, enaltecemos e ampliamos
a essência."
"Daí o valor
inestimável de nosso retorno aos fenômenos, após
o contato com a essência."
"No círculo
gigantesco da ação divina devemos distinguir o pequenino
arco vibrátil de nossa época."
"Nessa imperceptível
curva de fogo, sentindo profundamente o impulso de todo círculo,
podemos avançar em harmonia com o universo, adquirindo o nosso
próprio impulso, e combatendo."
"Ouçamos o nosso
coraçào e perscrutemos com intrepidez o abismo. Com a
nossa carne e o nosso sangue, modelemos a nova face de nosso Deus, aquela
que se adapta ao nosso tempo."
"A Vida é um
serviço militar nos exércitos de Deus. Como os Cruzados,
partimos, voluntários ou não, para libertar não
o Santo Sepulcro, mas o próprio Deus, atolado na matéria
e em nossa alma."
"Toca fogo em tudo,
eis nosso dever de hoje, num mundo dissoluto e sem esperanças."
"Assim, pois, a salvação
do Universo é ao mesmo tempo nossa própria salvação.
A solidariedade entre os homens já não é um luxo
dos corações sensíveis, mas uma necessidade, uma
profunda necessidade de autodefesa. Como na batalha, a salvação
de teu próximo é também a tua."
"Deixemos nossa porta
aberta ao pecado. Não tapemos os ouvidos com receio de ouvir
as sereias; e, sem nos fazermos amarrar, por fraqueza, ao mastro de
uma grande idéia, não nos percamos ao ouvir e abraçar
as sereias."
"Deus exclama: Abre
teus olhos, quero ver! Aplica os teus ouvidos, quero ouvir! Segue à
minha frente, que és minha cabeça!"
"Pela primeira vez,
Deus pode contemplar, através de nosso espírito e de nosso
coração, sua luta sobre a Terra."
"É seu dever
realizar seus próprios trabalhos antes de morrer. Sem isso, não
pode ser salvo. É a sua própria alma, dispersa em tudo
que o rodeia, nas árvores, nos animais, idéias e homens,
que ele salva ao realizar suas tarefas."
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