Trecho
de
Qadós
de
Hilda Hilst
Difícil
de explicar, ia dizendo aos borbotões que essas coisas senhora
são para fazer uma limpeza na minha alma devo começar por
aí não sei se a senhora entende mas o branco é demais
importante para começar as orações e acendendo as
velas fica visível para a Excelência que sou eu mesmo que
me acendo, matéria de amor etc. etc. A maioria revirava os olhos,
torcia a boca, umas coçavam os cotovelos, a cintura, diziam: homem,
se queres comida eu entendo mas não tenho, o resto é confusão,
despacha-te. Às vezes davam-me panos pretos, ou alaranjados ou
com listas ou vermelho com florzinhas, nunca o branco, Excelência,
e como último recurso para conseguir os círios eu entrava
numa loja aos solavancos, o olho girassol e gritava: duas velas por favor,
a mãe agoniza, em nome do vosso nosso Deus duas velas para as duas
mãos de mamãe. E saía como o raio, como o cão
danado, como Tu mesmo que te evolas quando Te procuro, ai Sacrossanto
por que me enganaste repetindo: hic est filius meus dilectos, in quo mihi
bene complacui? Nudez e pobreza, humildade e mortificação,
muito bem, Grande Obscuro, e alegria, é o que dizem os textos,
humilde e mortificado tenho sido, mas alegre, mas alegre como posso? Se
continuas a dar voltas à minha frente, estou quase chegando e já
não estás e de repente Te ouço, bramindo: mata o
rei, Qadós, o inteiro de carne e de pergunta, pára de andar
atrás de mim como um filho imbecil. Como queres que eu não
pergunte se tudo se faz pergunta? Como queres o meu ser humilde e mortificado
se antes, muito antes do meu reconhecimento em humildade e mortificação,
Tu mesmo e os outros me obrigam a ser humilde e mortificado? Como queres
que eu me proponha ser alguma coisa se a Tua voracidade Tua garganta de
fogo já engoliu o melhor de mim e cuspiu as escórias, um
amontoado de vazios, um nada vidrilhado, um broche de rameira diante de
Ti, dentro de mim? E as gentes, Máscara do Nojo, como pensas que
é possível viver entre as gentes e Te esquecer? O som sempre
rugido da garganta, as mãos sempre fechadas, se pedes com brandura
no meio da noite que te indiquem o caminho roubam-te tudo, te assaltam,
e se não pedes te perseguem, se ficas parado te empurram mais para
frente, pensas que vais a caminho da água, que todos vão,
que mais adiante refrescarás pelo menos os pés e ali não
há nada, apenas se comprimem um instante, bocejam, grunhem, olham
ao redor, depois saem em disparada. Andei no meio desses loucos, fiz um
manto dos retalhos que me deram, alguns livros embaixo do braço,
e se via alguém mais louco do que os outros, mais aflito, abria
um dos livros ao acaso, depois deixava o vento virar as folhas e aguardava.
O vento parou, eis o recado para o outro: sê fiel a ti mesmo e um
dia serás livre. Prendem-me. Uma série de perguntas: qual
é teu nome? Qadós. Qa o quê? Qadós. Qadós
de quê? Isso já é bem difícil. Digo: sempre
fui só Qadós. Profissão. Não tenho não
senhor, só procuro e penso. Procura e pensa o quê? Procuro
uma maneira sábia de me pensar. Fora com ele, é louco, não
é da nossa alçada, que se afaste da cidade, que não
importune os cidadãos. Sou quase sempre esse, matéria de
vileza e confusão para os outros, para os Teus olhos um nada que
te persegue, um nada que se agarra às tuas babas, e como é
difícil te perseguir, nem o rasto, nem a estria brilhante (aquela
que os caracóis deixam depois da chuva) eu vejo, pois é
pois é, seria fácil para o teu inteiro gosma e fereza, o
teu inteiro amoldável, me dar umas pequeninas alegrias e te mostrares
um dia Grande Caracol baboso aguado brilhante, te mostrares um dia intimidade,
vê Cão de Pedra, agora não sei, fui íntimo
para um uma ou dois, nem me lembro, e a princípio como me trataram
bem, cuidado na fala, langor no olhar, a minha palavra era véu
dourado que pouco a pouco pousava, translúcido, luminosidade delicada,
eu Qadós falava e o espaço era pérola, leite fresco,
pistilo, um ou três relinchos para aquecer ainda mais tanta mornura,
sorriam, lábio frouxo encantado, gula de me possuir inteiro, se
era mulher ela me dizia isso mesmo gula de te possuir inteiro, Qadós,
se era homem também, aí eu me escondia, dias e dias sobre
Plotino, outros dias apenas flutuava sobre o verde dos parques, de longe
me seguiam, eu de névoa transfixado, melindre dissolvência,
Qadós O Inteiro Desejado.
(...)
(in Qadós
- SP: Edart, 1973. / Ficções - SP: Quíron,
1977. / Rútilo Nada - Campinas, SP: Pontes, 1993.)