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Rigor diante da paisagem

 por MORA FUENTES

 

As portas e janelas também, fechadas, tudo perfeitamente limpo e cer­cado, os baobás no jardim, as mudas na estufa, tudo em ordem, na mais perfeita ordem, os vitrais fulgurantes, limpos, harmoniosos, e essa har­monia deve tomar tudo, interior e exterior, indefinida mas exata, geomé­trica, porque ao meu regresso (sim, porque um dia vou regressar), quero tudo incrivelmente exato e real como agora, a ordem deve ser a mesma que neste momento percorro com o olho tentando memorizar, guardar com outros instantes, outras harmonias, ascendente e descendente de mim, pluvial e lacustre, mar e sargaço. E nada deve crescer sem minha pre­sença, as samambaias vão continuar na estufa, os baobás não vão perder as folhas, o jasmim-manga eu vou encontrar sempre assim, a flor se for­mando, e adiante a roseira, parte ensolarada, não cortem nunca os galhos da roseira, nem cortem a grama, nem deixem a água escorrer pelo riacho do jardim, nem escutem o canário e a cigarra enquanto eu não estiver, pois eu prometo regressos e vida novamente. O cotidiano, a desarmonia buli­çosa que se forma, os seixos e as folhas vindo pelo rio, tudo se fará nova­mente comigo, não antes, nunca antes de mim, não sem que eu esteja pre­sente para guardar todos esses acontecimentos por mais tempo, para dar-lhes vida mais longa, uma eternidade que sem o meu olho acompanhando não poderiam gozar. Quanto tempo é o tempo da chuva, ou da folha caindo da figueira? E quanto tempo podem durar sem mim, eu que os recrio e guardo?

As janelas já disse, bem fechadas,colo­quem algodões nas frestas para impedir que o pó marque um espaço, de modo algum deve parecer que parti há muito e nunca voltei, que por infi­nito tempo vou distante. Não, nada pode insinuar a mais leve ausência, os criados não devem envelhe­cer, que essa que é minha mulher não se modi­fique durante esse vazio, que me espere sem tecer mantos, deve adorme­cer apenas, como eu, como meu corpo que cada vez mais se incorpora a um extenso negro e vazio, es­paço pontilhado de escuro e névoa, um nada aglutinado de memórias rápi­das e faiscantes, perecíveis, o riso de uma tarde, um pedaço de sol atra­vessando o vidro da janela, um tempo inteiro de gozo.

Depois de um tempo, mais nada junto comigo. Negro ne­gro. Espaço que eu não sei. A cada ins­tante pene­tro mais nessa névoa desconhe­cida, cada vez mais sou menos, e dessa forma, menor vai se fazendo o tempo  do regresso. Prometo retor­nar. E agora que já não consigo divisar o parque, quando meu olho se fe­cha ou parece que se fecha deva­gar mas na realidade se torna baço, agora antes que o agudo no ventre me venha outra vez, neste instante em que sou dono de todas as promessas, quando começa em mim o espaço face­tado, vertigi­noso, antes do poço, antes do escuro mais pleno, antes de mim mesmo e do meu instante que cada vez mais se aproxima, eu te abençôo, vida. Eu te abençôo.

 

Mora Fuentes  - Casa do Sol - Topo

Página criada em Janeiro de 2000.