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Trecho de

O verdugo

(Peça em dois atos)
1969

Hilda Hilst

Montagem de O Verdugo, por Rofran Fernandes, no Oficina, em 1973

(...)

Filho: Como ele é bem de perto, pai? (Pausa) Fala.

Verdugo: O homem tem um olhar... um olhar... honesto.

Mulher: Honesto, ha!

Verdugo: Limpo, limpo. Limpo por dentro.

Mulher (Com desprezo): Ah, isso!

Filha: Por dentro ninguém sabe como ele é. Ninguém sabe como ninguém é por dentro.

Filho: Eu sei como você é por dentro.

Filha: Ah, sabe? Fala, então.

Filho: Por dentro você não tem nada. É oca.

Verdugo (Manso): Chega.

Filha (Para o irmão): Mas vou deixar de ser. Vou casar, vou ter filhos...

Filho (Interrompe e refere-se ao noivo da irmã): Com aquele? (Faz caras de deprezo)

Filha (Exaltada): Com aquele, sim. E vou deixar de ver a tua cara. Isso já será um grande consolo.

Filho: Você só pode se casar se o pai ganhar esse dinheiro.

Filha: A morte do homem é daqui a dois dias.

Filho: O pai não vai fazer o serviço.

Mulher: Cala, menino. Cala. (Pausa) Come. (Pausa)

Filho: Hein, pai?

Verdugo (Manso): Não sei, meu filho, não sei.

Mulher (Para o filho): O seu pai precisa descansar. E vai aceitar o serviço, sim. (Para o verdugo, branda) Não é?

Verdugo (Seco): Não sei.

Mulher: Trate de ficar sabendo logo. Não é o primeiro nas tuas mãos.

Verdugo (Seco): Ele é diferente.

Mulher: Diferente, limpo, uf! É igual aos outros.

Filho: Ninguém tem o mesmo rosto.

Mulher: Eu quero dizer que ele é igual a todos os outros filhos da puta que morreram porque a lei mandou. (Para o verdugo, sorrindo com ironia) Você se lembra daquele que parecia um anjinho? Hein? Lembra? Todos diziam...

Verdugo (Interrompe): Eu não.

Mulher: ...mas os outros diziam: ele tem cara de anjo. E vocês se lembram do que ele fez? (Para o verdugo e para o filho) Se lembram? Conta, filha, porque aquele outro anjinho foi condenado.

Filha (Sorrindo): Ele matou aqueles dois menininhos.

Mulher (Irônica): Só isso?

Filha (Sorrindo): Não. Primeiro ele queimou as plantas dos pés e as mãozinhas dos menininhos.

Mulher: E depois?

Verdugo (Seco): Já sabemos, chega.

Mulher (Para o verdugo): Não, espera. (Para a filha) E por que ele queimou as plantas dos pés e as mãozinhas dos meninos? Hein, filha?

Filha (Sorrindo): Porque assim os menininhos não podiam ficar em pé e nem podiam se defender com as mãozinhas.

Mulher: Para fazer aquela porcaria, não é? Então, e muita gente dizia que ele parecia um anjinho.

Verdugo: Eu não.

Filho: Mas esse é diferente, não é nada disso, mãe. Esse só falou.

Mulher: Deve ter falado besteira.

Filho: Ele falava de Deus, também.

Mulher: Deus, Deus, onde é que está esse Deus? (Para o filho) Não foi você mesmo que andou lendo que naquele lugar, lá longe...

Filho (Interrompe): Na Índia.

Mulher: Sei lá, na Índia, onde for, as criancinhas de seis anos vão para o puteiro? Deus, Deus... e depois não foi você mesmo quem disse que se elas não fossem para os puteiros aos seis anos, elas morreriam de qualquer jeito, de fome? Hein?

Filho: Foi, sim, mãe. Fui eu mesmo.

Mulher: Então deixa o teu pai fazer o serviço. Se Deus não consegue ajudar aquelas criancinhas, você acha que esse homem é que vai nos ajudar? (Pausa)

(...)

 

(Nankin editorial.)

 

 
 
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