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Saúde, cura e salvação no pensamento de Paul Tillich

Etienne Alfred Higuet1

Resumo

Tillich interpreta o processo de atualização da vida, ambigüidade na alienação existencial e superação das ambigüidades na presença do Espírito divino, em termos de saúde/doença e cura/salvação. Isso corresponde à perspectiva do mito religioso cósmico, onde salvação e cura sempre aparecem unidas. Trata-se sempre de restabelecer o equilíbrio comprometido, na unidade de todas as dimensões da vida, inclusive na dimensão espiritual que abrange todas as outras. Tillich pretende, mediante essas reflexões, levar à reconciliação da medicina e da teologia. Digamos que traz também uma importante contribuição para a avaliação dos inúmeros procedimentos de "cura divina" que encontramos no atual clima religioso.

Fundamento: o processo vital e a cura/salvação.

Encontramos o fundamento da nossa reflexão na análise fenomenológica e ontológica da vida, que Tillich apresenta, entre outros lugares, na quarta parte da Teologia Sistemática, intitulada: "Vida e Espírito"2 . Enquanto atualização das potencialidades do ser, a vida é uma unidade multidimensional, um processo dialético marcado pela ambigüidade nas suas três funções imanentes. A primeira delas, a auto-integração, baseada na polaridade da individuação e da participação, consiste num movimento de saída de um centro - sem perder esse centro - e de volta para ele. A vida atravessa então os momentos de identidade consigo, mudança-de-si e volta-a-si, integrando os conteúdos acumulados na fase da mudança. Em segundo lugar, a função da auto-produção ou auto-criação conduz a vida na direção do novo, pelo crescimento do indivíduo centrado e pela criação de novos centros. Enfim, na função de auto-transcendência, a vida supera a sua própria finitude na dimensão do espírito, através da experiência do "sagrado".

É preciso acrescentar que cada processo cruza as cinco dimensões da realidade: física ou anorgânica, biológica ou orgânica, psíquica, espiritual e histórica. É apenas no ser humano que todas as dimensões se atualizam. Na natureza em geral, algumas dimensões são atuais (in actu), outras apenas potenciais (in potentia). Por causa da alienação existencial, cada um dos processos vitais sofre de ambigüidade, por causa da mistura de elementos positivos (criadores) e negativos (destruidores) e, em razão da unidade multidimensional da vida, a ambigüidade num ponto atinge todos os outros - a mesma coisa acontecendo no caso de superação das ambigüidades.

No processo de auto-integração, os pólos de individuação e participação podem reforçar-se mutuamente, mas há também possibilidade de des-integração, seja por incapacidade de abrir o fechamento sobre si mesmo, seja por impotência em voltar a si depois da dispersão na mudança. O processo de auto-produção da vida fundamenta-se na polaridade da dinâmica (ou potência) e da forma (ou ato). Trata-se da superação da forma antiga e da criação de novas formas, em particular no campo da cultura. Na passagem do antigo para o novo, a vida atravessa uma fase caótica e, nas condições da alienação existencial em relação à essência, estruturas de destruição mesclam-se indissoluvelmente ao processo criador: a morte se faz presente em todas as dimensões da vida.

Enfim, a vida é auto-transcendente, visando à realização de um universo de sentido - de um ser e um sentido últimos - a partir da polaridade de liberdade e de destino. Isso acontece apenas na vida humana ou na dimensão espiritual, onde encontramos a cultura, a moralidade e a religião. A ambigüidade desse processo manifesta-se, de um lado, na profanização ou "resistência à auto-transcendência" em todas as dimensões da vida, de outro lado, na "demonização" ou identificação do portador do sagrado com o próprio sagrado. 

A superação das ambigüidades da vida se dá, de modo fragmentário porém real, nas condições de existência: na "presença espiritual" ou "presença do Espírito divino" no espírito humano, e, através dela, em todas as dimensões da vida. Na dimensão histórica, falaremos em "Reino de Deus" e, na dimensão transhistórica, em "Vida Eterna". Essas últimas dimensões abrangem também as anteriores. As três expressões mencionadas referem-se simbolicamente ao processo da vida não ambígua, ou de re-unificação e re-integração ou ainda da unidade transcendente de fé e amor.

No final da quarta parte da Teologia Sistemática, Tillich interpreta o processo de atualização da vida, ambigüidade na alienação existencial e superação das ambigüidades na presença do Espírito divino em termos de saúde/doença e cura/salvação : "O poder de cura/salvação do Espírito divino e as ambigüidades da vida em todas as suas dimensões"3. Embora o Espírito divino não atue diretamente sobre a vida nos domínios anorgânico, orgânico e psíquico, Ele exerce, contudo, em razão da unidade multidimensional da vida, uma influência indireta e limitada sobre as ambigüidades em todos os processos vitais. Pois o Espírito se faz presente à pessoa humana centrada e, no mesmo ato, a todas as dimensões que ela incorpora.4 Há especialmente uma função na qual a infusão do Espírito divino se estende a todas as dimensões, antecipando assim o Reino de Deus realizado: a função de cura, que acontece em todas as dimensões reunidas no ser humano.

A dimensão cósmica da cura/salvação no mito religioso

No mito religioso, salvação e cura aparecem sempre unidas 5. Estão atualmente separadas, porque nos esquecemos do significado cósmico (hoje, diríamos "holístico") da idéia de salvação. Para o pensamento bíblico e patrístico, a salvação é um evento cósmico: o mundo é salvo. A mesma idéia está presente nos mitos de todas as religiões e diz respeito também à cura. A natureza, o universo estão enfermos e precisam de cura e salvação. Encontramos a idéia no Mahabharata da Índia, como também nos escritos apocalípticos do Antigo e do Novo testamento, quando se trata do fim de um ciclo ou do fim do mundo. A ordem da natureza se desfaz e o resultado é caos e auto-destruição. Não é apenas a vida humana que se torna tédio, sofrimento e condenação à morte prematura frente a uma natureza hostil, mas a terra também fica doente, como por exemplo na maldição de Gênesis 3. A divisão introduz-se também na sociedade humana: domínio patriarcal do homem sobre a mulher, confusão das línguas, oposição entre nômades e sedentários, tirania, imperialismo etc. O mais interessante é a interpretação mitológica da cisão psíquica no ser humano por causa da irrupção de forças demônicas. Muitas doenças individuais são atribuídas  à "possessão"  por forças psíquicas destruidoras em conseqüência do "pecado", que é um ato de separação, de rebeldia. A doença cósmica é uma culpa cósmica, de extensão universal, embora inclua a responsabilidade pessoal. 

Os mitos de redenção correspondem, ponto por ponto, aos mitos da doença universal: uma nova terra, com restauração do paraíso como "jardim dos deuses"; paz na natureza e entre os homens, animais e plantas; saúde corporal restabelecida por deuses salvadores como Esculápio ou Hermes e o próprio Jesus, cujas curas são sinais da chegada do Reino, sinais do novo Éon. Doenças corporais e sociais são curadas e a morte é vencida (Mt. 11, 5). O mesmo poder é dado aos discípulos (Mt. 10, 1)6.

Fica clara a identidade da cura corporal e espiritual com a salvação. Embora não possamos separar totalmente os diversos tipos de doença, a cura das enfermidades espirituais ou mentais constitui a prova mais decisiva da salvação: vitória sobre a angústia da culpa e da morte.A vitória sobre as forças demônicas é um sinal de salvação já inaugurada. A graça vence a possessão. Nesse sentido, a salvação é a presença da vida eterna. É também reconciliação do ser humano, a partir de seu centro, com o divino, com a natureza, com os outros e consigo mesmo. A reconciliação é a cura da doença cósmica que tornava o amor impossível. Enquanto salvador cósmico, Jesus é também médico do universo e de todas as criaturas. Como microcosmo resumindo em si mesmo todas as dimensões da realidade, o ser humano penetra o macrocosmo para curá-lo. O Deus-homem vence as forças demônicas e transforma a confusão cósmica numa nova ordem. O poder de cura/salvação manifesta-se numa existência individual que prova a sua unidade com Deus pelo sofrimento e pela morte. A salvação ou cura realiza-se por via de participação no ato transcendente, em particular no momento do culto. Tillich conclui a sua exposição sobre o mito religioso com três reflexões teológicas: 1. Não podemos separar a cura do corpo da cura da alma e do espírito, pois todos os elementos do real pertencem à totalidade cósmica. 2. Na esfera mitológica, a cura não apresenta o caráter de milagre no sentido racionalista da quebra das leis da natureza. 3. Os atos individuais de salvação ou cura devem ser descritos como realização fragmentária, ambígüa e antecipativa da totalidade cósmica7.

Cura/salvação como purificação ou como busca de harmonia

Na história da religião e da medicina, encontramos dois modelos para entender a doença/pecado e a saúde/salvação. O primeiro vincula-se às categorias de puro/impuro, presentes em todas as religiões. É a idéia que elementos estranhos podem trazer sujeira ou contaminação em todas as dimensões da vida: corporal, psíquica, ritual, pessoal, moral, sacramental, social...No contexto desse simbolismo, cura e salvação assumem o caráter de purificação, por exemplo nas técnicas de assepsia e desinfeção ou nos rituais de exorcismo ou aspersão com água. É importante não separar os diversos níveis nem privilegiar algum unilateralmente, o que pode provocar perigosos desvios, como a exclusividade da  pureza moral no protestantismo moderno, da antisepsia na medicina ou da pureza ritual na igreja católica, sem falar da caça às bruxas e aos hereges para preservar a pureza doutrinal8.

Encontramos o segundo modelo já na medicina antiga, que considerava a doença como uma perturbação da constituição harmoniosa do corpo, baseada no equilíbrio de forças ou "humores". A arte de curar devia procurar restabelecer a harmonia do todo identificado com saúde e beleza, conforme o ditado Mens sana in corpore sano. A idéia foi retomada no renascimento por Paracelso, que enxergava a harmonia do corpo no quadro da harmonia maior do cosmo. A harmonização dinâmica encontra-se também na medicina e na teologia da época romântica. Assim, Schelling tentava descrever as forças em conflito com a ajuda de conceitos a um tempo ontológicos, biológicos e psicológicos, restabelecendo assim a unidade do natural, do psíquico e do religioso. A atual psicologia dinâmica do inconsciente pertence claramente a essa linha de pensamento, com a concepção da doença como perturbação do equilíbrio dinâmico por pulsões conflitivas. Freud teria descoberta a força dinâmica do inconsciente e insistido na importância do Ich na manutenção do equilíbrio. É a integração das pulsões e não o seu recalque que assegura a saúde. O sistema de Jung dá dimensões cósmicas à perda do equilíbrio entre inconsciente (Es) e consciente (Ich).

Na esfera religiosa, a totalidade é representada pela "paz de Deus" (Paulo), que é mais alta que toda razão e é capaz de preservar o coração (o centro pessoal) e a inteligência (os atos de compreensão racional). A paz de Deus caracteriza o "homem reconciliado" que reencontrou a sua harmonia criada essencial. Inclui a harmonia, o amor, a tranquilidade interior. Aliás, já para Platão, o amor harmonioso entre os elementos era considerado fonte da saúde. Afinal, cada vez que a idéia de harmonia fica no primeiro plano, cura religiosa e terapia médica andam juntas9.

Doença/pecado, redenção/cura e saúde/salvação

 Na polaridade de identidade e mudança-de-si, a desintegração aparece quando um dos pólos domina o outro até o ponto de destruir o equilíbrio vital. É o que chamamos de doenças, cujo estágio final é a morte. O sadio é o inteiro, não destruído, não desintegrado, logo sadio corporal e espiritualmente. O não-sadio é o que está quebrado ou esfacelado. Todo terapeuta - e também o salvador divino - tem como função reunir as partes do que está esfacelado. Por isso, o salvador é também chamado de médico: Jesus disse explicitamente que não veio para os sadios mas para os doentes. As forças de cura - internas ou externas ao organismo - trabalham em vista da integridade e centração do si mesmo, isto é: da saúde. A mesma pode ser considerada a partir de diversas perspectivas. Por exemplo, na dimensão física, a saúde consiste em que todas as partes do corpo humano cumprem a sua função; na dimensão biológica, a saúde é a relação harmoniosa do organismo com o seu ambiente; na dimensão psíquica, é a mudança de si equilibrada pela centração sobre si mesmo; na dimensão espiritual, é a realização do sentido na moral, na cultura e na religião e a superação das alienações pela força salvífica e curativa do Espírito divino; na dimensão histórica, é o equilíbrio de uma sociedade ou de uma cultura entre tradição e novidade. É preciso observar que a saúde e a doença relacionam-se dialeticamente: a saúde não é real sem a possibilidade e a realidade da doença. A saúde é a doença superada. Em resumo, à unidade multidimensional da vida corresponde a unidade multidimensional da cura. Em todas as suas formas, a cura é fragmentária e a doença numa dimensão pode criar saúde numa outra e vice-versa. Afinal, nenhum tipo de cura ou terapia pode salvar o ser humano da necessidade da morte, o que coloca a questão da cura definitiva no Reino de Deus e na Vida Eterna.

Assim como há muitos processos de desintegração, há muitos caminhos de cura ou de restauração da saúde. Tillich distingue três tipos ou métodos de cura, igualmente presentes nas culturas antigas e modernas: cura religiosa, mágica ou natural. A primeira usa o poder da palavra divina, a segunda utiliza forças psíquicas e a terceira trabalha com intervenções físicas como cirurgia ou remédios. A religião é relação com algo definitivo, incondicionado, transcendente, que diz respeito ao homem inteiro, ao seu centro pessoal. A atitude religiosa é a consciência de dependência, é entrega, é aceitação. Por sua vez, a magia é uma visão do mundo, uma arte e uma técnica, não uma religião. Acredita na interação simpática entre todas as partes do universo. Sympathein é participar psiquicamente - não fisicamente - de um outro ser pelo conhecimento e pela ação10.

Na antigüidade e até o renascimento (Paracelso), os três métodos sempre apareciam vinculados, por exemplo nos templos dos "deuses curandeiros" como Esculápio, onde se praticava a "incubação" dos doentes dormindo e sonhando à noite no templo. Os sacerdotes eram médicos, como Cosme e Damião, receitando medicamentos, dietas e até pequenas cirurgias. Saúde e doença são situações da pessoa inteira, em todas as suas dimensões vitais; por isso, deve também haver cura da pessoa toda. Apesar da sua unidade, os domínios vitais mantém uma relativa independência entre si, o que vai determinar o tipo de tratamento utilizado: um ferimento benigno no dedo não será tratado da mesma maneira que uma grave perturbação psíquica. Diversos métodos deverão ser usados para alcançar ao mesmo tempo diversas dimensões da vida. Quem poderia negar que até hoje a arte médica combina numa sábia dosagem o corpo e a psiqué, fatores científicos e religiosos, a vis mediatrix naturae e a vis mediatrix Dei, o poder de cura da natureza e o poder de Deus?

A questão que se coloca aqui é de saber se existe uma cura no Espírito e, no caso de resposta afirmativa, como se relaciona com as outras espécies de cura e com o tipo que, em linguagem religiosa, é chamado salvatio. Como se relacionam os diferentes métodos com o poder de cura do Espírito divino? O conceito ambíguo de "cura pela fé" não constitui uma boa resposta à pergunta quando se entende por "fé" um ato psíquico de concentração ou auto-sugestão - a expressão "cura pela fé" designando então um procedimento mágico - e não criação do Espírito divino ou estado de estar possuído por aquilo que nos concerne incondicionalmente, pela presença do Espírito divino. Para Tillich,

    A cura pela fé no sentido não pervertido da palavra é a recepção da salvação/saúde no ato da fé, isto é: na entrega a algo que nos diz respeito incondicionalmente, ao sagrado que não pode ser forçado a se colocar a nosso serviço. De tal entrega deriva a cura no centro da personalidade, integração das forças contraditórias que se subtraem ao centro e querem então se apossar dele11.

A consideração fundamental  a respeito dos caminhos de cura e de sua relação com o Espírito divino é a seguinte:

    A integração do si mesmo pessoal só é possível mediante a sua elevação até aquilo que chamamos simbolicamente de si mesmo (ou personalidade) divino. E isso só é possível graças à irrupção do Espírito divino no espírito humano, isto é, pela presença do Espírito divino12.

Nesta relação, salvação e saúde são idênticas, sendo ambas expressões da elevação do ser humano à unidade transcendente da vida não ambígua. No sentido mais profundo da palavra, a saúde é vida não ambígua, porém fragmentária, na fé e no amor.

O poder de cura do Espírito divino não substitui os métodos de cura específicos para cada dimensão da vida, assim como esses métodos não substituem o poder de cura do Espírito divino. Por exemplo, o perdão dos pecados e a aceitação de quem não é aceitável (justificação pela fé) não bastam para efetuar uma cura, sendo a ajuda médica e psicológica também necessária. Nem a magia fica totalmente excluída, pois as formas mágicas de cura alcançam sucesso e nenhuma forma de cura está absolutamente livre de elementos mágicos. A magia produz efeitos físicos, psíquicos ou espirituais, sem usar instrumentos físicos nem racionais. Assim, o propagandista, o professor, o pregador, o pastor, o médico, o amante ou o amigo influenciam tanto o centro psíquico (vinculado à percepção) quanto o centro espiritual (vinculado à tomada de decisão) e o ser total do ser humano, incluindo o seu inconsciente. Embora o elemento mágico na cura possa ter conseqüências perigosas, ele está presente em toda verdadeira comunicação e em todo encontro autêntico. Torna-se destruidor quando exclui as outras formas de tratamento e cura13.

Além da separação moderna entre ciência e fé14

Quando a função médica e a função sacerdotal ficaram totalmente  separadas, na época moderna, a cura no sentido de salvação (que era salvação do inferno numa vida futura) não tinha mais nada a ver com a cura no sentido médico. Havia oposição entre a imagem materialista do ser humano e do mundo da maioria dos médicos e a imagem idealista dos religiosos. Nenhuma das duas imagens subsiste hoje. Do lado da medicina, dois fatores, sobretudo, provocaram a mudança: a descoberta do caráter unificado, de totalidade centrada ( Gestalt), de todos os processos vitais - o que conduz a entender a doença como separação de elementos que pertencem à totalidade - e a redescoberta do inconsciente na psicologia profunda - o que permitiu superar o dualismo do Ego consciente e do corpo-máquina, por exemplo, na medicina psicossomática. A psicoterapia também deixou de atribuir enfermidades neuróticas ou psíquicas a causas puramente físicas.

Do lado da religião, o idealismo teológico foi abandonado e o existencialismo na filosofia e nas artes ressaltou a precariedade e a falta de saúde/salvação do ser humano. A angústia frente ao nada misturou-se com a coragem de dizer sim à existência. É o ser humano inteiro que precisa de cura, pois é na totalidade do seu ser que está alienado de si mesmo, em contradição consigo mesmo, unido e dividido, criador e destruidor, na graça e na culpa, salvo e despedaçado - tanto no seu corpo quanto no seu espírito. A cura não é efetiva enquanto não é total. Para chegar à cura total, o psicanalista - por exemplo - deveria poder colaborar com o religioso, distinguindo a angústia existencial - superada pela coragem criada pelo Espírito divino - e a angústia neurótica, que pode ser curada pela psicanálise. O psicanalista deve reconhecer assim tanto a alienação existencial do ser humano em relação consigo mesmo, quanto a possibilidade de re-união na auto-transcendência.

Quando se entende salvação como cura, não sobra lugar para um conflito entre a medicina e a teologia, mas há uma íntima relação entre elas. A oposição só viria de uma teologia esquecendo-se dessa relação e entendendo a salvação como elevação do ser humano a um lugar celeste, ou de uma medicina negando a importância da dimensão não fisiológica para a saúde.

Conclusão

A ambigüidade existencial da vida em todas as suas funções – que se manifesta como cisão ou separação – é a fonte do que chamamos doença ou enfermidade e é também a origem da nossa situação de "pecado" ou não-salvação. A unidade da vida humana justifica a compreensão da saúde como totalidade englobando as dimensões orgânica, mental e espiritual, tanto na pessoa individual quanto nas relações intersubjetivas, sociais ou políticas, antecipando assim a salvação definitiva na reunião com o divino. Encontramos nos mitos religiosos o testemunho mais antigo da unidade cura/salvação na experiência humana e na promessa divina da re-integração e re-unificação escatológica do cosmos em Deus. Na concepção cristã, a partir da morte e ressurreição de Cristo, participamos desde já da unidade divina transcendente através da superação das enfermidades e da restauração da saúde em todos os processos vitais.

Entre os dois modelos de cura/salvação: purificação ou busca de harmonia, Tillich privilegia o segundo, mais conforme à visão da saúde/salvação como totalidade integrada na medicina, na psicologia e na teologia contemporâneas. A mesma unidade se manifesta à análise fenomenológica do processo da doença e da cura na multidimensionalidade da vida. Aparece ainda na necessidade de usar de modo integrado os métodos terapêuticos religioso, mágico e natural, reconciliados na autêntica cura do Espírito. Para isso, precisamos ficar abertos à irrupção da presença do Espírito divino em nosso espírito, fonte de toda nova criação na fé e no amor. Enfim, a visão da unidade saúde/salvação no pensamento atual permite superar o conflito moderno entre a ciência e a fé, entre a razão e a revelação.

Terminaremos com duas citações de Tillich:

    Chegamos assim à conclusão que cura e salvação se pertencem mutuamente de modo indissociável, que os múltiplos aspectos do curar/salvar devem ser claramente diferenciados, que eles são produzidos por uma força suprema de cura e que seus portadores devem lutar juntos a favor da humanidade. Nenhuma separação, nenhuma confusão mas um objetivo comum de todo "curar": o ser humano salvo, em totalidade15.

E, enfim, voltando-me para os teólogos:

    Uma religião que não possui um poder de curar e salvar é desprovida de sentido16.


1Ver a nota da Introdução.

2Paul Tillich. Systematic Theology, London, Nisbet, 1968, vol. 3, pp. 11-113.

3Encontramos uma justificação para a assimilação dos dois processos na etimologia: a palavra latina salvatio significa ao mesmo tempo salvação e cura e o ato de curar pertence assim à obra da salvação. Em alemão, o verbo heilen  tem os dois sentidos, dando origem aos substantivos Heil (salvação) e Heilung (cura). Embora o inglês use salvation para o sentido religioso, as palavras que designam a cura: heal, healing, health, pertencem à mesma raiz germânica que heilen. Ver: Systematic Theology, vol. 3, p.293-300.

4Systematic Theology, vol. 3, pp. 317ss.

5Ver: Paul Tillich. "The Relation of Religion and Health. Historical Considerations and Theoretical Questions." In: Perry LeFevre (ed.). The Meaning of Health. Essays in existentialism, Psychoanalysis, and Religion. Chicago, The Exploration Press, 1984, pp. 16-52. Aqui, pp. 16-24.

6. Aliás, só se pode entender o significado dos relatos de cura no Novo Testamento quando se admite que o Reino de Deus devia chegar à terra  como poder de cura. Infelizmente, a leitura desses relatos na igreja enfatizou mais o lado maravilhoso que a dimensão de cura. A partir da aproximação entre teologia e medicina atualmente, percebeu-se que a mensagem religiosa dos relatos de cura é o poder de cura/salvação do Novo Ser em Cristo e não a irrupção sobrenatural de Deus nos processos naturais. A compreensão do "milagre" em termos de ruptura da ordem natural transforma o Espírito divino em causalidade finita ou categorial ou em substância física no meio de outras. Ver: Paul Tillich. The Impact of Psychoterapy on Theological Thought. In: The Meaning of Health, pp. 144-150.

7. Ver: "The Relation of Religion and Health", pp. 23-24.

8. Ver: "The Relation of Religion and Health", pp. 37-39.

9. Ver: "The Relation of Religion and Health", pp. 39-42.

10. Uma forma de magia baseia-se em "sugestão", deixando maior ou menor liberdade psíquica à pessoa influenciada, sendo a hipnose o caso extremo da sugestão. A sugestão está sempre presente em maior ou menor grau em todo tratamento médico. Há também uma sugestão religiosa, através de sonhos, visões e fé religiosa, elementos que alcançam o inconsciente. A sugestão está sempre presente de algum modo na cura pela fé autêntica. Precisamos sempre verificar se os elementos que apreendem o inconsciente são portadores do Incondicionado e se são recebidos pela pessoa como um todo ou se permanecem nela como corpos estranhos. The Relation of Religion and Health, pp. 32-33.

11 . Paul Tillich. Heil und heilen. Conferência radiofônica, München, 1965. In: Dialog. Mitteilungsblatt der deutschen Paul-Tillich-Gesellschaft, Neue Folge Nr. 18, Oberursel-Alemanha, Fevereiro de 1994, pp. 2-4. Aqui, p. 2.

12. Systematic Theology, vol. 3, p. 298.

13. Systematic Theology, pp. 297-298. "Curas pela fé" no sentido mágico acontecem também no seio das igrejas cristãs, pelo uso de orações intensivas e repetidas, reforçadas pelo apoio psicológico de ações sacramentais. Nesse caso, o objetivo final não é Deus e a reunião com Ele - o que incluiria a vontade de aceitar a decisão divina - mas o conteúdo da oração, no caso presente, a saúde.

14. Ver: Heil und heilen, pp. 2-3 e Systematic Theology, pp. 299-300.

15. Heil und heilen, p. 4.

16. The Impact of Pastoral Psychology..., p. 149.

 

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