CHOCOLATE E IDENTIDADE*
Slavoj Zizek
*Publicado na Folha de São Paulo em 22/12/2002
PRODUTOS COMO O KINDER OVO FAZEM UMA ANALOGIA PERFEITA COM A
ESTRUTURA MENTAL DO HOMEM MODERNO
Um dos mais populares produtos de chocolate à venda em toda a Europa é o
chamado "Kinder Surprise" (no Brasil, Kinder Ovo), ovos ocos feitos de
chocolate e embrulhados em papel colorido: depois de desembrulhar o ovo,
quebra-se a casca de chocolate e se descobre no interior um pequeno
brinquedo plástico (ou pequenas partes com as quais se monta um
brinquedo). A criança que compra esse ovo de chocolate em geral o
desembrulha nervosamente e apenas quebra o chocolate, sem se importar em
comê-lo, interessada somente no brinquedo em seu interior. Esse apreciador
de chocolate não é o exemplo perfeito do moto de Lacan "Eu o amo, mas
inexplicavelmente amo alguma coisa em você mais do que você mesmo e
portanto o destruo"? E, efetivamente, não é esse brinquedo o que Jacques
Lacan chama de "l'objet petit" em seu sentido mais puro, o pequeno objeto
que preenche um vazio central, o tesouro oculto, "agalma", no centro da
coisa que desejamos?
Mais, menos
O vazio material no centro do ovo de chocolate representa a lacuna
estrutural por conta da qual nenhum bem é "realmente aquilo", nenhum
produto satisfaz a expectativa que desperta. O Kinder Ovo, portanto,
oferece a fórmula para todos os produtos que prometem "mais" ("compre um
reprodutor de DVD e ganhe 5 DVDs grátis" ou, numa forma ainda mais direta,
mais da mesma coisa -"compre esta pasta de dente e ganhe 30% a mais,
grátis"), para não falar no truque padrão da garrafa de Coca-Cola ("olhe
no interior da tampa metálica e poderá descobrir que ganhou um prêmio,
desde outra Coca até um carro zero quilômetro"). A função desse "mais" é
preencher a falta de um "menos", compensar o fato de que, por definição,
uma mercadoria nunca cumpre sua (fantasiosa) promessa. Em outras palavras,
a mercadoria "verdadeira" definitiva seria aquela que não precisasse de
qualquer suplemento, aquela que simplesmente cumprisse totalmente o que
promete -"você recebe aquilo pelo que pagou, nem menos nem mais". E não há
uma clara homologia entre essa estrutura do produto e a estrutura do
sujeito universal moderno? Os sujeitos, precisamente à medida que são
sujeitos dos direitos humanos universais, também não funcionam como esses
ovos de chocolate Kinder? Na França ainda é possível comprar um doce com o
nome racista de "la tête du nègre" [cabeça de negro": um bolo de chocolate
em forma de bola, vazio no interior ("como uma cabeça de negro burro"). A
resposta do humanista-universalista à "tête du nègre" não seria
precisamente algo semelhante a um ovo Kinder? Como colocariam os ideólogos
humanistas: podemos ser infinitamente diferentes -alguns são negros,
outros brancos, alguns altos, outros baixos, alguns são mulheres, outros
homens, alguns ricos, outros pobres etc. etc.-, mas no fundo de nós existe
o mesmo equivalente moral do brinquedo plástico, o mesmo "je ne sais
quoi", um X indefinível que de certa forma representa a dignidade
compartilhada por todos os seres humanos. Citando "Our Posthuman Future"
(Nosso Futuro Pós-Humano, ed. Farrar, Straus & Giroux), de Francis
Fukuyama: "O que a exigência do reconhecimento de igualdade implica é que,
ao removermos todas as características contingentes e acidentais de uma
pessoa, resta no fundo uma qualidade essencialmente humana que é digna de
um certo nível mínimo de respeito: chame-o de Fator X. Pele, cor,
aparência, classe social e riqueza, sexo, antecedentes culturais e até os
talentos naturais de uma pessoa são todos acidentes de nascimento
relegados à classe das características não essenciais. (...) Mas no reino
político somos solicitados a respeitar as pessoas igualmente com base em
sua posse do Fator X".
X misterioso
Assim, tratando-se de seres humanos, pode ser um chocolate branco, um
chocolate ao leite padrão, um escuro, com ou sem nozes ou uvas passas no
interior, há sempre o mesmo brinquedo plástico (em contraste com os ovos
Kinder, que são iguais por fora, mas cada um tem um brinquedo diferente
oculto no interior). E, resumindo a história, o que Fukuyama teme é que,
se interferirmos muito na produção do ovo de chocolate, como poderemos
gerar um ovo sem o brinquedo plástico no interior? Fukuyama está bastante
certo ao enfatizar que é crucial percebermos nossas propriedades
"naturais" como uma questão de contingência e sorte: se meu vizinho é mais
belo ou mais inteligente que eu, é porque ele teve a sorte de nascer
assim, e nem mesmo seus pais poderiam ter planejado isso. O paradoxo
filosófico é que, se removermos esse elemento casual da sorte, se nossas
propriedades "naturais" forem controladas e reguladas pela biogenética e
outras manipulações científicas, perderemos o Fator X. É claro que o
brinquedo plástico oculto pode receber um viés ideológico específico, como
a idéia de que, depois de nos livrarmos do chocolate em todas as suas
variações étnicas, sempre encontraremos um americano (mesmo que o
brinquedo seja, com toda a probabilidade, feito na China): "Lá no fundo,
todos queremos ser americanos". Esse X misterioso, o tesouro interno de
nosso ser, também pode se revelar como um invasor alienígena, até mesmo
uma monstruosidade excremental.
Excremento íntimo
A associação anal aqui é totalmente justificada: a aparência imediata do
interior é uma merda amorfa. A criança que dá sua merda como presente está
de certa maneira dando o equivalente imediato de seu Fator X.
A conhecida identificação por Freud do excremento como a forma primordial
de presente, do objeto interno mais profundo que a criança dá a seus pais,
não é portanto tão ingênua quanto pode parecer: a questão muitas vezes
desprezada é que esse pedaço de mim oferecido ao Outro oscila radicalmente
entre o sublime e não o ridículo, mas precisamente o excremental.
Esse é o motivo por que, para Lacan, uma das características que
distinguem o homem dos animais é que, entre os seres humanos, livrar-se da
merda representa um problema: não porque ela cheire mal, mas porque saiu
de nosso interior mais profundo. Temos vergonha da merda porque nela
expomos/exteriorizamos nossa intimidade mais profunda.
Os animais não têm problema com isso porque não têm um "interior" como os
seres humanos. Aqui devemos nos referir a Otto Weininger, que designa a
lava vulcânica como "der Dreck der Erde". Ela vem do interior do corpo, e
esse interior é maligno, criminoso: "Das Innere des Koerpers ist sehr
verbrecherisch". Aqui encontramos a mesma ambiguidade especulativa que há
com o pênis, órgão de urinação e procriação: quando o nosso mais profundo
é diretamente exteriorizado, o resultado é repugnante.
Essa merda exteriorizada é o equivalente exato do monstro alienígena que
coloniza o corpo humano, penetrando-o e dominando-o por dentro, e que, no
momento culminante de um filme de horror-ficção-científica, brota do corpo
através da boca ou diretamente do peito. Talvez ainda mais exemplar que o
"Alien" (1979) de Ridley Scott seja "Hidden" (1987), de Jack Sholder, em
que a criatura alienígena em forma de verme extraída do corpo no final do
filme evoca diretamente associações anais: uma merda gigantesca, já que o
alienígena obriga os seres humanos que ele penetra a comer vorazmente e a
regurgitar de maneira repugnante e embaraçosa. O Fator X não apenas
garante a identidade subjacente de sujeitos diferentes, mas também a
continuação da identidade do mesmo sujeito. Vinte anos atrás, a "National
Geographic" publicou a famosa foto de uma mulher afegã com reluzentes
olhos amarelos; em 2001 a mesma mulher foi identificada no Afeganistão,
embora seu rosto esteja mais escuro, a pele enrugada e gasta pela vida
difícil e o trabalho duro, seus olhos intensos foram imediatamente
reconhecíveis como o fator de continuidade. No entanto, há um problema com
esse Fator X que nos torna iguais, apesar de nossas diferenças: por baixo
da profunda percepção humanista de que "no fundo de nós mesmos somos todos
iguais, os mesmos seres humanos vulneráveis", espreita a cínica
declaração: "Por que se incomodar em combater as diferenças superficiais,
se no fundo já somos iguais?" -como o proverbial milionário que
pateticamente descobre que tem as mesmas paixões, os mesmos medos e amores
que um mendigo.
Diferenças
A conhecida série animada de grande sucesso "The Land Before Time",
produzida por Steven Spielberg, oferece o que talvez seja a mais clara
articulação dessa ideologia do Fator X. A mesma mensagem é repetida
diversas vezes: somos todos diferentes -alguns grandes, alguns pequenos,
alguns sabem lutar, outros sabem voar...-, mas deveríamos aprender a
conviver com essas diferenças, a percebê-las como algo que enriquece
nossas vidas. Lembrem-se do eco dessa atitude nos recentes relatos de como
os prisioneiros da Al Qaeda são tratados em Guantánamo: eles recebem
comida adequada a suas necessidades culturais e religiosas específicas,
têm permissão para rezar... Por fora, todos parecemos diferentes, mas lá
dentro somos todos iguais, indivíduos assustados e perdidos no mundo,
necessitando da ajuda dos outros. Em uma das canções, os grandes
dinossauros maus cantam sobre como os grandes podem quebrar todas as
regras, comportar-se mal, esmagar os pequenos indefesos: "Quando você é
grande/ Pode empurrar todos os pequenos/ Eles olham para cima/ Enquanto
você olha para baixo/ .../ As coisas são melhores quando você é grande/
Todas as regras que os adultos fizeram/ Não se aplicam a você".
"Crianças como nós"
A resposta dos pequenos oprimidos na canção seguinte não é como se poderia
esperar combater os grandes, mas compreender que, por baixo de sua
aparência prepotente, não são diferentes de nós, secretamente temerosos,
com seus próprios problemas: "Eles têm sentimentos/ Assim como nós/ Eles
também têm problemas./ Nós pensamos que porque eles são grandes/ Eles não
têm, mas têm/ Eles são mais barulhentos e mais fortes/ E fazem mais
confusão/ Mas lá no fundo/ Eu acho que são crianças como nós". A conclusão
óbvia é o elogio das diferenças: "É preciso todos os tipos/ Para fazer um
mundo/ Baixos e altos/ Grandes e pequenos/ Para encher esse lindo planeta/
de amor e alegria./ Para torná-lo ótimo de viver/ Amanhã e no dia
seguinte./ É preciso todos os tipos/ Sem a menor dúvida/ Tipos burros e
inteligentes/ Tipos de todos os tamanhos/ Para fazer todas as coisas/ Que
precisam ser feitas/ Para tornar nossa vida divertida".
Limites
O problema, é claro, é: até onde nós vamos aqui? É preciso todos os tipos
também bons e violentos, pobres e ricos, vítimas e torturadores? A
referência ao reino dos dinossauros é especialmente ambígua aqui, com seu
caráter brutal de espécies animais devorando-se entre si -essa também é
uma das coisas que "precisam ser feitas para tornar nossa vida divertida"?
A própria incoerência dessa visão da "terra antes do tempo" é portanto
testemunha de como a mensagem da colaboração-nas-diferenças é ideologia no
sentido mais puro.
Por quê? Porque qualquer noção de um antagonismo "vertical" que atravesse
o corpo social é censurada, substituída ou traduzida para a noção
totalmente diversa de diferenças "horizontais", com as quais temos de
aprender a conviver porque são complementares. E nossa tarefa hoje é
exatamente reafirmar a noção de um antagonismo inerente que constitui o
campo social: desenterrar o núcleo antagônico no que parece uma rede de
diferenças "horizontais".
Assim, voltando ao ponto de partida: a lição final é que nós todos temos
"cabeças de negro", com um buraco no centro, e aquilo a que nos referimos
como o núcleo fixo de nossa identidade é exatamente mais um brinquedo
plástico. A verdadeira "luta de idéias" é a luta pelo brinquedo plástico
que preencherá o vazio central.
Slavoj Zizek é filósofo esloveno, professor do Instituto de Sociologia da
Universidade de Liubliana. É autor de "Eles Não Sabem O Que Fazem" e "O
Mais Sublime dos Histéricos" (ed. Jorge Zahar). Escreve regularmente na
seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.