"O SENTIDO DA AUTONOMIA NO PROCESSO DE GLOBALIZAÇÃO" *
Holgonsi Soares Gonçalves Siqueira
(Professor Assistente do Depto de Sociologia e Política-UFSM)
Maria Arleth Pereira
(Professora Titular - Pós-Graduação/Centro de Educação-UFSM)
Este artigo foi solicitado pelos Professores Timothy W. Luke (University Distinguished Professor of Political Science) e Kevin Egan (Department of Political Science Virginia Tech)em 11.06.2002, para fazer parte do projeto de livro eletrônico intitulado "From Analogue to Digital Fordism" do "Center for Digital Discourse and Culture" e "Digital Libraries Project at Virginia Tech".
RESUMO
O processo de globalização está trazendo profundas transformações para as sociedades contemporâneas. O acelerado desenvolvimento tecnológico e cultural, principalmente na área da comunicação, caracteriza uma nova etapa do capitalismo, contraditória por excelência, que coloca novos desafios para o homem neste final de século. Cultura, Estado, mundo do trabalho, educação, etc. sofrem as influências de um novo paradigma , devendo-se adequarem ao mesmo. Neste novo paradigma, a autonomia é privilegiada. Tornou-se necessidade para a vida numa sociedade destradicionalizada e reflexiva. No mundo do trabalho, a autonomia é diferença que marca a mudança do predomínio do fordismo para o pós-fordismo. Já no que tange à educação, deve a mesma possibilitar o desenvolvimento desse valor, trabalhando o homem integralmente para que ele possa não só atender aos requisitos do mercado, mas também atuar como cidadão no mundo globalizado. Nossa análise caminhará sempre no sentido dos limites e das possibilidades desse mundo, tendo como categoria central a autonomia, e como pensamento norteador a teoria pós-fordista sob o enfoque dos teóricos "Novos Tempos".
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* Artigo aprovado por mérito, na categoria Trabalho-Grupo 14-Sociologia da Educação, para a 21ª Reunião Anual da ANPEd- 1998.
* Publicado na Revista EDUCAÇÃO - Centro de Educação-Universidade Federal de Santa Maria-RS - V.22 - N.o 02 - 1998.
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INTRODUÇÃO
A sociedade moderna, tipicamente industrial, sofreu uma transformação radical, sendo caracterizada hoje como uma "sociedade globalizada ". Impulsionada pela explosão das informações e intensificação das comunicações em nível mundial, a sociedade global contempla, de um lado, a cultura pluralista e , de outro, a modificação do valor econômico e do poder do Estado, que fortalecem o "consumo", priorizando a estetização da realidade.
Enfocaremos a globalização, aqui, não apenas como mera concepção de integração econômica, mas, seguindo a linha de CHESNEAUX (1995), como um processo que envolve transformações nos significados de intensificação das comunicações, tempo-espaço, desterritorialização, integração mundial, modernidade técnica e reflexividade social.
Para os teóricos da globalização, estamos vivendo o reflexo/contraste de mais uma modificação sistêmica do capitalismo. Dentro de diversas versões expostas pela Política, Sociologia, História, Geografia, etc., podemos apreender a mudança geral que demonstra a diferença dessa etapa do capitalismo em relação às anteriores. Definindo uma "sociedade globalizada", o capitalismo agora tem suas bases solidificadas na ação da mídia, no tecnopoder e na correspondente cultura da informatização.
Nesse novo espaço, o Estado-nação sofre um certo enfraquecimento frente ao poder das organizações regionais e transnacionais, "(...)tornando-se impotente diante da influência dos macro-agregados globais e dos imprevistos do mercado mundial(...)"(CHESNEAUX,1995:77). Também com mais freqüência vem dividindo seu poder político com outros órgãos da sociedade civil, passando a incorporar a função de controlador, coordenador e gestor das políticas públicas.
No que tange aos meios de produção, estes não são mais determinados exclusivamente pelo capital, pelos recursos naturais tais como a terra, e nem tampouco pela mão-de-obra, mas sim pelo conhecimento técnico e científico. A sociedade globalizada está também transformando a natureza do trabalho, tornando-o cada vez menos braçal e cada vez mais imaterial. A tendência é trabalhar de modo mais intelectual, com empreendimento autônomo e com fortes capacidades criativas. Capacidades autônomas e domínio das informações constituem-se em produção, por excelência, de saberes e de linguagens.
Assim, tanto no plano prático como no plano teórico, o recurso básico deixa de ser determinado pela lógica taylorista para assumir outro modo de produção fundado no paradigma do conhecimento. Neste, a rigidez do fordismo perde seu lugar central para a flexibilidade dos processos de produção, de trabalho e de consumo, via a intensificada e constante inovação tecnológica, comercial e organizacional.
Quanto ao entendimento dessas transformações, a globalização relacionada a essa nova fase do capitalismo (ou um novo tipo de industrialismo fundido com a esfera cultural) e tendo como forte componente o pluralismo também contempla diferentes enfoques teóricos. A maneira de pensar, sentir, agir e transmitir a cultura na globalização depende da lógica política e do construto ideológico de cada indivíduo.
Se, para os liberais, a sociedade global é sinônimo de racionalidade e de progresso positivista, tendo como valor central a "liberdade de mercado", para uma corrente renovada do marxismo, não só a denúncia dessa visão é possível (visão superficial) , mas também a compreensão de que a nova formação social é uma realidade histórica, e como tal portadora de contradições, tanto destruidoras como criadoras. Assim, a adoção de um enfoque marxista de análise não caracteriza um paradoxo. Embora seus conceitos clássicos não dêem conta da atual situação, se "revisados" a partir das categorias cultural, política e econômica contemporâneas, são indispensáveis para uma leitura coerente das diferenças entre as práticas capitalistas anteriores e as da sociedade capitalista globalizada.
Como exemplo de um novo enfoque, citamos os renomados pensadores marxistas britânicos "Novos Tempos", os quais não se intimidaram frente às mudanças globais, aceitando trabalhar os desafios da globalização não exclusivamente de forma pessimista (como a maioria), mas observando também suas oportunidades, inclusive para contestação. Ao afirmarem que "o mundo mudou, mas isso é o que todo bom marxista deveria ter esperado"(In: KUMAR,1997: 65), estes pensadores examinam as mudanças que ora ocorrem na sociedade, mediante as aplicações das teorias pós-fordistas, ressaltando (numa linha gramsciana) que não apenas a esfera econômica, mas uma "cultura inteira" está passando por um desenvolvimento extremamente amplo e futuro.
Portanto, a atual (des)organização do mundo modifica de forma acelerada os valores básicos da sociedade; muda a concepção de organização da empresa e da economia; transforma as instituições; enfim, são mudanças radicais do final de século, que nos fascinam e ao mesmo tempo nos apavoram. Ao exigirem novas capacidades (tomada de decisão) em ambientes complexos, incertos e competitivos, impõem ao homem pós-moderno mais instrução e aperfeiçoamento contínuo para se inserir no processo de trabalho. Nesse sentido, o conhecimento como valor universal é um direito de todos que deve ser utilizado em toda a esfera da vida cotidiana e não apenas para concorrer a um posto no mercado de trabalho.
Assim, as exigências desta sociedade não estão pautadas apenas nos livros, na Internet e nas técnicas, mas principalmente na pessoa de desempenho que incorpora seus valores, desafia, pesquisa, cria formas de convivência solidária e decide no constante confronto de novas demandas e novas responsabilidades. Essa é a "nova sociedade", que deverá ser cada vez mais marcada pela produtividade, pela participação e pela autogestão fundada no conhecimento, e com preponderância da autonomia sobre a heteronomia taylor-fordista.
A autonomia, portanto, é hoje prioridade revisitada no mundo globalizado. Cada vez mais constata-se uma profusão de novos sentidos sobre esta palavra, a qual passa a exercer grande força para qualificar a ação humana. Atualmente, podemos mapear o conceito de autonomia em todas as circunstâncias da vida social, intensificando-se, na era da globalização, o emprego deste termo numa multiplicidade de contextos.
Esse reconhecido valor constitui, portanto, uma categoria central da essência da vida humana, e como tal, confere o poder de determinar os processos e as estratégias de ação, escolher caminhos e alternativas, bem como objetivar desejos e ideais no sentido de efetivar a ação crítica nas mais diversas situações que a vida nos impõe.
A partir disso, queremos situar a inserção do homem nas novas formas organizacionais e num novo modo de produção circundado pelo dinamismo revolucionário constante da tecnologia e da crescente globalização e internacionalização da produção. Para compreender o homem enquanto precurssor dessa nova vida social, que transcenda o econômico e incorpore outras alterações na vida familiar, no lazer, na cultura e na política, precisamos lançar mão das teorias pós-fordistas que interpretam essas mudanças privilegiando a questão da autonomia.
1. A SOCIEDADE GLOBAL E A AUTONOMIA
Para analisarmos a necessidade da autonomia na sociedade atual, partimos do pressuposto de que a globalização em curso não está apenas nas macrorelações do sistema mundial de Wallerstein, mas também nas práticas da vida cotidiana. Interferem no modo de vida da sociedade, exigindo profundas modificações nas suas instituições. Assim, o terreno sobre o qual a autonomia se deve sedimentar localiza-se não apenas no campo tecnológico, mas também na abrangência de toda a vida social, envolvendo elementos da política, da cultura, do trabalho, bem como os processos de produção e consumo.
Traduzir essas mudanças de forma esquemática é bastante complexo e, na maioria das vezes, compromete-se a realidade. Das várias tentativas de resumo apresentadas pelos teóricos que trabalham a diferença entre fordismo e pós-fordismo (entre eles os pensadores "Novos Tempos"), destacamos aquelas que trabalham as mudanças sob os mais diversos ângulos, e que, segundo KUMAR (1997), podem ser traduzidas no seguinte:
- economia: consolidação de um mercado internacionalizado e declínio das empresas nacionais e das Nações-Estado como unidade eficiente de produção e controle; fim da padronização; produção de trabalhadores em tempo flexível, parcial, temporários e autônomos, aumento da terceirização e franquias;
-relações políticas e industriais: fragmentação das classes sociais; declínio dos sindicatos de categorias centralizadas de trabalhadores e de negociações salariais; ascensão de negociações localizadas, baseadas na fábrica; força de trabalho dividida em núcleos; fim do compromisso do corporativismo de classe; esfacelamento da provisão de benefícios padronizados e coletivos e fortalecimento da aposentadoria privada;
- cultura e ideologia: desenvolvimento e promoção de modos de pensamento e comportamento individualistas; cultura da livre iniciativa; fim do universalismo e padronização na educação; aumento do sistema modular e da escolha por alunos e pais; fragmentação e pluralismo em valores e estilos de vida; ecletismo pós-modernista; privatização da vida doméstica e das atividades de lazer.
Nesse contexto, os indivíduos estão cada vez mais mergulhados na turbulência da incerteza, do medo, da perplexidade, o que os leva a procurarem soluções alternativas para o percurso da existência nos novos paradigmas sociais da cultura contemporânea. Para tanto, cada vez mais o homem é obrigado a abdicar da rigidez das idéias, atitudes e tipos de comportamentos fundamentados no sistema de valores tradicionais e buscar resposta nos valores de uma "modernidade reflexiva"(GIDDENS, 1996)que, em muitos aspectos, ainda estão para serem formulados.
Assim, o entendimento da concepção do novo saber produzido neste fim de século direciona a ação não mais dentro do fluxo contínuo, seqüencial e fixo, mas envolve impulso descontínuo e flexível com permanente oportunidade de recriação de formas sociais e vida de trabalho diferentes.
Sob esse aspecto, concordamos com Giddens que estamos numa sociedade cuja marca é a destradicionalização ("(...)as tradições são constantemente colocadas em contato umas com as outras e forçadas a "se declararem""(Giddens,1996:99)) e, portanto, a reflexividade social("(...) condição e resultado de uma sociedade pós-tradicional, onde as decisões devem ser tomadas com base em uma reflexão mais ou menos contínua sobre as condições das ações de cada um"(Giddens, 1996:101)).
Essa reflexividade aponta elementos significativos para a sedimentação da autonomia na sociedade globalizada. A autonomia como condição de autodeterminação para conviver com os riscos, incertezas e conflitos passa a ser considerada hoje na escala de valor como um bem necessário gerador de decisões e criador de possibilidades no manejo com o conhecimento. É a única alternativa aberta para orientar nossa capacidade de relacionamento com a "superprodução" da sociedade contemporânea.
No desenvolvimento desse processo, as práticas sociais cotidianas são freqüentemente alteradas e as informações renovadas são uma constante dessa dinâmica. Isto faz com que o conhecimento reflexivamente aplicado altere a vida, obrigando os indivíduos, as instituições e as organizações políticas, sociais e econômicas a reformularem os seus conceitos e valores como pressupostos básicos para a entrada no processo da globalização.
Agora, as ações cotidianas de um indivíduo estão entrelaçadas em todo o sistema, o que lhe coloca como essencial um certo grau de autonomia para que o mesmo possa sobreviver, e, como diz Giddens, "moldar uma vida" na sociedade contemporânea. Entendida a partir dos processos e estruturas culturais que configuram a globalização, a autonomia refere-se às múltiplas capacidades do indivíduo em se representar tanto nos espaços públicos como nos espaços privados da vida cotidiana, ao seu modo de viver e aos seus valores culturais; à luta pela sua emancipação e desalienação; à forma de ser, sentir e agir; à capacidade de potenciar atividades em diversas formas de trabalho; à resolução de conflitos; ao fortalecimento em relação às suas próprias emoções, que o torna capaz de solidarizar com as emoções dos outros e, enfim, estar mais associado em suas ações.
Portanto, é inegável que a autonomia tornou-se requisito básico no mundo globalizado. Constitui-se como necessidade material, no momento em que a racionalidade tecnológica coloca como exigências para o homem o domínio do conhecimento, a capacidade de decidir, de processar e selecionar informações, a criatividade e a iniciativa. Somente um indivíduo autônomo consegue manejar com estes elementos, os quais exigem ações/tomadas de decisões constantes para responder/resolver novas problemáticas advindas desta nova fase do capitalismo.
É uma necessidade psicológica, uma vez que os indivíduos precisam desenvolver uma efetiva comunicação entre si, num espaço destradicionalizado. Nesta sociedade, o diálogo molda a política e as atividades, possibilitando discussões abertas rumo à definição da "confiança ativa", a qual constitui este viés psicológico ao exigir uma "renovação de responsabilidade pessoal e social em relação aos outros"(GIDDENS, 1996:22).
Esse enfoque, até então deixado de lado, é essencial hoje quando o mesmo está relacionado a um objetivo nobre, ou seja, somente o diálogo democrático possibilitará a "democratização da democracia"(GIDDENS,1996) e, com isto, a preponderância da justiça em escala global.
Relacionando-se a esta questão, a autonomia tornou-se uma necessidade sócio-cultural; mas também porque no processo de globalização é um trabalho que diz respeito a um amplo movimento cultural de superação de velhas concepções de mundo, constitui-se numa nova direção de relação social e elaboração de um novo comportamento reflexivo.
Assim, a autonomia não pode estar dependente de justificações de ordem econômica ou ideológica, por constitui um valor que capacita a nossa participação no percurso de todas as circunstâncias da existência humana. Neste sentido, há muito a se conhecer a respeito da real possibilidade da utilização desse valor.
Por tudo isso, é por excelência uma necessidade política, pois somente um indivíduo autônomo ("sujeito ativo") possui condições de entender as contradições que permeiam o mundo globalizado, questionando-as e agindo no sentido de canalizar as oportunidades desta sociedade para mudanças qualitativas e, concomitantemente, apresentar alternativas às ameaças. Sob este aspecto, autonomia é rompimento com as políticas instituídas no passado e que ainda perduram, manifestadas na dependência, na submissão, no conformismo e na alienação.
Se a nossa escolha não é outra senão "decidir como ser e como agir"(Giddens, 1997:94),o como "ser e agir" num contexto globalizado diz respeito à escolha de comportamentos, maneiras de participação nos espaços públicos, atitudes no espaço da produção e do consumo; porém, esta escolha não é mais dirigida por regras fixas, mas sim pela flexibilidade, o que nos leva a destacar que a ação envolvida nesse processo precisa ser consciente, e isto, segundo CASTORIADIS, é peça essencial para a autonomia, pois a tornará uma proposta que nos fará conscientes e autores de nosso próprio evolver histórico.
Torna-se imperativo um entendimento crítico na constituição e prática da autonomia. O que queremos afirmar com isto é que todos esses pontos (da autonomia material, psicológica, sóciocultural e política) são inter-relacionados, e o desmembramento dos mesmos inviabiliza o objetivo maior que é a construção de uma sociedade autônoma.
(trabalho, educação, conclusão e referências bibliográficas)