O PAPEL DAS MICROPOLÍTICAS NA RENOVAÇÃO DA POLÍTICA TRADICIONAL*

Roberta Canello

* Trabalho apresentado como requisito para avaliação na disciplina de "Globalização e Política", ministrada pelo Prof. Holgonsi Soares G. Siqueira no Curso de Pós-Graduação em Pensamento Político Brasileiro - UFSM - Junho/2003

A globalização é um fenômeno presente, atual e inegável, que possui diversas faces. Como tal, não pode ser concebida apenas em seu aspecto econômico, embora o mais marcante, mas como fenômeno que se revela em todos os aspectos da vida social e, entre eles, da vida política dos habitantes de uma sociedade.

Não podemos compreender a globalização somente no aspecto macro, transnacional ou supra-estatal. Devemos observar suas conseqüências em âmbito regional, local, avaliando-se de que forma suas características afetam a estrutura político-partidária da sociedade, já que a mesma traz crescentes desafios quando modifica referências tradicionais, em especial algumas categorias do pensamento político como sociedade civil, Estado, partidos políticos, movimentos sociais.

Quando se pensa, em especial, no aspecto político e político-partidário, percebe-se que as transformações proporcionadas pela globalização acarretam mudanças significativas nesses setores. Vivemos agora em um mundo sem fronteiras, em que o Estado-nação está se tornando uma ficção e os políticos vem perdendo seu poder efetivo.

A crise dos partidos políticos tradicionais e de seus programas, bem como da própria atuação no governo, abre uma lacuna que está sendo preenchida por novas formas de se fazer política, que se traduzem através dos Novos Movimentos Sociais (NMS), Organizações Não Governamentais (ONGS), organizações sociais de bairros, escolas, enfim, através de uma gama de entidades que vêm suprir a carência do Estado.

Tomando-se a afirmação de que "uma das principais funções do governo é precisamente conciliar as reivindicações divergentes de grupos de interesse especial" (Giddens, 2000, p.63), resta assegurada a existência de outros organismos políticos diversos dos tradicionais, tornando-se necessária a verificação da existência de interferência de tais organismos na renovação da política tradicional.

Pode-se dizer que a política partidária encontra-se em uma crise de grandes proporções. Isso porque a globalização promoveu mudanças, que, de certa forma, interferem na estrutura política do Estado, já que este, através de seus agentes políticos, passou a direcionar sua atenção para aspectos econômicos e de mercado, deixando muitas vezes desatendidas questões importantes para outros setores sociais.

"A globalização, juntamente com o comunismo, alterou os perfis de esquerda e direita" (Giddens, 2000, p. 52). A alteração de perfis anteriormente definidos e conhecidos da população, aliados com o direcionamento das atenções do Estado para setores considerados supra-nacionais, levou a uma descrença generalizada nas instituições tradicionais.

O enfraquecimento do poder político tradicional (partidos-governo) gera uma mobilização entre a sociedade civil, que se organiza em torno de idéias por ela defendidas, geralmente esquecidas pelas formas tradicionais, iniciando-se a nível local, podendo expandir-se globalmente.

Atualmente, não se pode mais exigir que o Estado, com sua forma política tradicional, assegure a coesão social e a satisfação de todos os desejos da população. É necessário que a política tradicional, já enfraquecida, seja substituída por novas responsabilidades determinadas à sociedade civil.

A política tradicional no Estado-nação, partindo-se de um conceito de democracia, orienta-se por regras relativas a disputas entre os partidos sobre assuntos essenciais ao Estado, como crescimento econômico, mudança de governos, empregos. Ocorre que tais aspectos não podem ser tomados como ponto de partida para a nova forma de se fazer política, que surge com as mudanças decorrentes da globalização.

Com a desvalorização da política e o esvaziamento aparente de poder do governo (Giddens, 2000), vislumbra-se o cenário propício ao surgimento de formas substitutivas da política tradicional. Tais traduzem-se pelo surgimento de novos movimentos sociais, organizações não-governamentais, organizações comunitárias, também interpretadas como micropolíticas.

Podemos distinguir as micropolíticas, ou subpolíticas (Beck, 1997) por meio de dois fatores básicos: na micropolítica verifica-se uma participação de outros agentes, diversos daqueles do sistema tradicional político-partidário, atuando em áreas como a do planejamento social; e, além de grupos, percebe-se a presença dos indivíduos competindo entre si e com os grupos pelo poder que emerge do político.

Micropolítica ou subpolítica "significa moldar a sociedade de baixo para cima" (Beck, 1997, p.35), que nada mais é do que a minimização do espaço da política tradicional, sua perda de poder. Com esta nova forma de se fazer política possibilita-se aos grupos, agentes, indivíduos e movimentos antes afastados do processo político uma participação efetiva no arranjo da sociedade, na verificação e indicação das prioridades sociais. Na verdade, as micropolíticas orientam-se na direção de uma sistematização da sociedade.

Estas atuam nas questões "esquecidas" pelo Estado –nação, como ecologia, direitos humanos, questões de gênero, até que trazem a tona e colocam esses assuntos em um local de grande espaço e observação, chamando a atenção do político tradicional, que então, toma para si a discussão.

O que ocorre é que as decisões e inovações, cada vez mais, originam-se do centro da sociedade, longe da esfera de poder tradicional. Nos dizeres de Enzens, "só quando uma idéia se torna uma banalidade ela passa para o âmbito da responsabilidade dos partidos políticos" (IN: Beck, 1997, p.).

Primordialmente, analisavam-se os Movimentos Sociais, ONGS e demais organizações características das micropolíticas sob uma ótica restritiva, enfatizando-se seu aspecto local, comunitário. Indiscutivelmente, é a experiência localizada e a efetivação concreta dos movimentos em âmbito local que "amplia enormemente as perspectivas de transformações sociais" (Warren, 1996, p.07). Entretanto, nos dias atuais, não podemos mais conceber tais organizações como locais, senão como inseridas em um mundo globalizado.

Partimos de uma formação e atuação local, organizada muitas vezes em pequenos grupos. Entretanto, não podemos esquecer que tais grupos inserem-se em locais de maior amplitude, interagindo com outros organismos e tomando proporções que fogem do âmbito local para se tornarem movimentos globais. Como exemplo, podemos citar o grupo ecológico Greenpeace, que possui núcleos nas mais diversas e longínquas partes do mundo, atuando em várias questões ecológicas simultaneamente, por meio dos mais variados membros.

Os Novos Movimentos Sociais, ONGS, grupos comunitários e outras entidades introduzem uma nova concepção política relativa à prática tradicional. Através desses grupos, possibilita-se uma articulação de novas idéias, concepções diversas das tradicionais, uma maior participação social.

Com o surgimento, inserção e expansão das micropolíticas, caracterizadas por sua capacidade de auto organização, engajamento social e participação comunitária, vislumbra-se a necessidade de uma reformulação ou redefinição nas áreas de responsabilidade governamental. Contudo, tal processo não importa em um desaparecimento da política tradicional, ou uma supremacia das micropolíticas sobre o Estado, mas sim um trabalho que deve ser equilibrado, realizado em conjunto pelos vários segmentos representantes tanto da política tradicional como das micropolíticas.

A busca de um equilíbrio entre o Estado e a sociedade civil, compreendidos como governo e partidos políticos e agrupamentos sociais fora do Estado como aparelho (Warren, 1996) traduz um dos objetivos das micropolíticas. A partir das novas concepções sobre o espaço de poder e a participação social frente ao Estado, cada vez mais os cidadãos querem manifestar seus desejos e opiniões sobre a direção ou os objetivos governamentais, fazendo-o através das micropolíticas.

Os antigos sistemas representacionais da sociedade, os partidos políticos, constituem-se cada vez mais em instituições desacreditadas, burocratizadas e que não refletem os anseios populacionais. Assim, suscitam a criação de novas formas de se fazer política, desvinculando-se do modelo tradicional, conclamando a sociedade a participar do processo político, possibilitando locais para expressão das opiniões através dos grupos constituintes das micropolíticas.

Nesse sentido elucida Rezende, quando diz que os movimentos sociais são "forças instituintes que, além de questionar o Estado autoritário e capitalista, questionam, com sua prática, a própria centralização/burocratização presentes nos partidos políticos" (IN: Warren, 1996, p.51).

O processo das micropolíticas contribui de forma significativa para a democratização da sociedade, no momento em que se desvincula da política partidária tradicional.

A formação de grupos comunitários, associações de bairros, ONGS, seja em âmbito local, regional ou global, possibilita a participação efetiva do indivíduo no processo de construção e questionamento de novos valores e formas inovadoras para a solução de problemas. O que ocorre, na verdade, é uma transformação dentro da própria sociedade civil, que repensa sua função como agente transformador e questionador, inserindo-se, após, na dinâmica estatal.

As micropolíticas, ou subpolíticas, oportunizam aos indivíduos uma nova forma de exercício da cidadania, vez que através de seus movimentos é possível a reivindicação de direitos e a conscientização de deveres, tarefa essa que não pode mais ser atribuída exclusivamente ao Estado.

As micropolíticas ocupam um espaço de suma importância dentro da sociedade civil. As mesmas não podem ser concebidas como fenômenos isolados ou formas combativas ao Estado. Devem sim ser vistas a partir de sua interatividade com o Estado, já que este possui um campo de atuação privilegiado se comparado as micropolíticas, ao passo em que essas possuem a capacidade de organização e transformação da sociedade civil de forma interna, ausente no Estado.

Pode-se dizer que as micropolíticas constituem fontes de pressão em especial no campo cultural e político. As mesmas vislumbram concepções alternativas para velhos e novos problemas, além de se constituírem no espaço em que a sociedade civil elenca suas reivindicações e pensa soluções. Como movimento, é inegável sua participação na constituição de novos atores sociais e na redefinição dos espaços da cidadania (Warren, 1996).

Contudo, não se pode conceber a idéia de que as transformações serão realizadas isoladamente, ou seja, sem a participação do Estado ou da política tradicional. É necessário que haja uma verdadeira interação entre as duas formas de se fazer política: a tradicional e a inovadora.

Com as transformações proporcionadas dentro da sociedade civil, através das micropolíticas, e a área de abrangência do Estado, que deve absorver as idéias novas, é possível se falar em uma verdadeira construção da cidadania.

Para tanto, faz-se necessário um fortalecimento das relações entre Estado e sociedade civil organizada para que se possa ter um projeto concreto de democratização global da sociedade, e tal fortalecimento não pode ser concebido sem a participação de partidos políticos.

As micropolíticas, isoladas, não possuem a força necessária para a implementação de seus objetivos. Nesse ponto, os partidos políticos assumem uma vital importância, não na sua forma tradicional burocratizada e desacreditada, mas no desempenho de um novo papel, relativo ao encaminhamento das problemáticas e soluções das questões levantadas pelos movimentos característicos das micropolíticas. Para isso se faz necessária a remodelação das formas institucionais dos partidos.

Com a renovação da política tradicional, representada através dos partidos políticos, produzida em grande parte pela atuação das micropolíticas, que repensam e reiventam os objetivos, poderemos concretizar metas almejadas por nossa sociedade, como um mundo democrático, em condições de igualdade, com respeito ao ser humano.

Com as micropolíticas percebe-se a ocorrência de uma desconcentração da política. O que anteriormente não possuía uma conotação política hoje o traz, da mesma forma que o que era político hoje perde sua força (Beck, 1997).

Na verdade, "procuramos o político no lugar errado, nas tribunas erradas e nas páginas erradas dos jornais" (Beck, 1997, p.30). Hoje a política encontra-se nas mãos dos cidadãos organizados em ONGS, Novos Movimentos Sociais e demais organismos. Tais entidades, por sua vez, introduzem uma nova concepção política relativa à prática tradicional. Através desses grupos, possibilita-se uma articulação de novas idéias, concepções diversas das tradicionais, uma maior participação social, originando uma forma de renovação política.

A política tradicional jamais vai findar, embora constatada sua degeneração em relação a esfera pública (Aronowitz, 1991). Entretanto, não se pode conceber o privado, as micropolíticas, sobrepondo-se ao público, senão uma atuação conjunta das duas categorias.

As micropolíticas têm uma participação fundamental na renovação política, na medida que provocam a revisão e reformulação de práticas políticas tradicionais, dentro dos partidos políticos, até mesmo propiciando a formação de novos partidos, surgidos a partir da hegemonia buscada por certos movimentos. Somente atingindo um novo equilíbrio entre sociedade civil e Estado, ampliando a democratização e oportunizando cada vez mais a prática da cidadania poderemos falar em uma real renovação política, que contará com a participação de toda a sociedade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARONOWITZ, Stanley. Pós-modernismo e política. IN: HOLLANDA, Heloísa Buarque de (org). Pós-modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.

BECK, Ulrich e GIDDENS, Anthony e LASCH, Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. Trad. De Magda Lopes. São Paulo: Ed. UNESP, 1997.

GIDDENS, Anthony. A terceira via: reflexões sobre o impasse político atual e o futuro da social-democracia. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Record, 2000.

_________________. Para além da esquerda e da direita. O futuro da política radical. Trad. Alvaro Hattnher. São Paulo: Ed. UNESP, 1996.

SCHERER-WARREN, Ilse. Redes de movimentos sociais. São Paulo: Edições Loyola, 1996.

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