Juiz natural

Luiz Vicente Cernicchiaro

Ministro do Superior Tribunal de Justiça e professor titular da Universidade de Brasília

A Lei nº 9.299/96 introduziu modificação na legislação militar, remetendo para a competência da Justiça Comum o processo e julgamento dos crimes dolosos contra vida, cometidos contra civil (art. 1º, parágrafo único). O tema chama à colação importante instituto jurídico, o juiz natural. Vem a propósito dos referidos delitos haverem sido praticados antes da vigência da modificação legislativa.

A Constituição da República comanda no art. 5º, LIII: ''Ninguém será processado, nem sentenciado senão pela autoridade competente''. Aí, reside conquista histórico-política. Juiz natural é juiz preconstituído, que se define no dia e em função do crime. Está superada a quadra histórica de o soberano, visando ao próprio interesse, escolher, arbitrariamente, o juiz do processo. Nessa linha, páginas candentes de Franco Cordero, na Itália e, entre nós, Ada Pellegrini e Lauria Tucci. A garantia está vinculada ao princípio, postulado de jurisdicionalização da pena — nulla poena sine iudicio.

Em palavras simples, de fácil compreensão: juiz competente é definido, no momento e no lugar da infração penal. Inderrogável. Nenhuma alteração legislativa pode dispor contrariamente. Se o fizer, atrita-se frontalmente co ma Carta Política; no caso, em harmonia com os estados de Direito Democrático.

O juiz natural é inconfundível com juízo de exceção; significa transferência do julgamento para outro órgão, distinto, portanto, do fixado, insista-se, no dia da prática da infração penal.

A literatura é unânime. Não há, pois, uma só voz discordante.

Esse princípio está inscrito na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José de Costa Rica), ratificado e promulgado pelo Brasil. Luiz Flávio Gomes, in ''Apontamentos Sobre o Princípio do Juiz Natural, in RT 703/417 a 422, observa: ''Em síntese, a proibição de subtrair o jurisdicionado do juiz natural pode ser traduzida, conforme Bidart Campos, no seguinte: ''Depois do fato que irá dar lugar (no futuro) a uma causa judicial, ou que já a ela (causa já iniciada ou pendente), não se pode substituir ou alterar a competência do tribunal (juiz natural) ao qual a lei anterior atribuiu tal fato, para transferi-la a outro tribunal (ou juiz) que receba essa competência depois do fato ''. Antônio Carlos de Araújo Cintra ratifica que alterações da competência introduzida pela própria Constituição, após a prática do ato de que alguém é acusado, não deslocam a competência criminal para o caso concreto, devendo o julgamento ser feito pelo órgão que era competente ao tempo do fato'' (''Teoria Geral do Processo'', RT, São Paulo, 1990, 7a. ed. pág. 123).

Eventual incidência da Lei nº 9.099/95 não modifica o raciocínio e a conclusão. Esse diploma legal, como sistema, aplica-se em qualquer juízo. Aliás, quanto à Justiça Militar, o Supremo Tribunal Federal manifestou-se, reconhecendo a incidência naquela justiça especializada.Precisamente no RHC nº 74.789-MS, Relator o Ministro Marco Aurélio, 10.6.97. A ementa projeta, com fidelidade, o conteúdo:

''A ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves e lesões corporais culposas de competência da Justiça Militar (CPM, art. 209 e 210) depende de representação do ofendido, conforme o disposto no art. 88 da Lei 9.099/95 (''Além das hipóteses do Código Penal e da legislação especial, dependerá de representação a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves e lesões culposas.''). Com base nesse entendimento, a Turma deu provimento ao recurso de habeas corpus para determinar a suspensão do processo-crime instaurado contra o paciente por crime de lesões corporais culposas (CPM, art. 210), a fim de que se proceda à intimação da vítima, nos termos da 2a. parte do art. 91, da Lei 9.099/95 ''... O ofendido ou o seu representante legal será intimado para oferecê-la (a representação) no prazo de trinta dias, sob pena de decadência.''





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