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Pais e educadores

 

Um quarto só para mim

Acordar esporadicamente no quarto dos pais ao fim-de-semana pode ser uma forma de reforçar laços afectivos, mas quando a cama dos pais passa a ser sua, isso pode ser uma verdadeira «catástrofe psicológica» para a criança.

    A campainha toca. Maria, o mais pe­queno membro da família, corre para a porta para receber os convidados dos pais, mas assim que estes che­gam ela sussurra do alto dos seus três anos, em «portugalês»: «Que­rem vê o quato da Maria?» Ainda, antes de estes terem hipótese de re­cusar, ela já pegou na mão de um deles e encaminhou-o na direcção daquele espaço sobre o qual ela exerce soberania plena.

«Este é o meu quarto!»

    E é assim que deve ser, com cada criança e em cada casa, ou seja, é importante para o desenvolvimen­to dos mais pequenos que estes tenham um quarto só para eles, por­que dormir permanentemente no quarto dos pais e partilhar a sua in­timidade pode ser um verdadeiro «desastre psicológico». Pelo me­nos, é essa a convicção da maioria dos psicólogos e dos pedopsiquiatras, que advertem para a necessi­dade de as crianças terem um espa­ço próprio na casa onde vivem. Um espaço privado que não deve ser violado. E preservá-lo significa mesmo proteger o desenvolvimen­to psíquico infantil.

    Para Rita Silva, psicóloga, uma das batalhas mais difíceis de travar é precisamente convencer os pais da importância que se reveste, para o desenvolvimento psicológico saudável dos filhos, o facto de terem um espaço próprio, sendo que «isso não significa que não di­vidam o quarto com irmãos, não é disso que se trata, o que se passa é que na maioria das famílias por­tuguesas, as crianças dormem no quarto dos pais. Ou um dos pais dorme no quarto do filho», refere.

A importância do quarto

    Na sociedade portuguesa domina a confusão dos espaços no interior das famílias, independentemente do estracto social e cultural a que pertençam. Há muitas crianças que mesmo depois dos seis meses de idade, altura em que os pedia­tras indicam como idade de refe­rência para se ter o seu próprio es­paço, continuam a dormir no quarto dos pais.

    Mas, afinal, porque razão é tão importante uma criança ter o seu próprio quarto? Para esta psicólo­ga «o quarto da criança contém (ou deve conter) tudo o que lhe é íntimo, desde a cama, onde dorme e sonha, até aos brinquedos, livros de histórias, e à medida que vai crescendo todos os objectos que têm a ver com o seu desenvolvi­mento e com novas aprendiza­gens». Em suma, o quarto da criança é como que um refúgio, um espaço privilegiado para a criança enfrentar os seus medos, frustrações e angústias. Para cres­cer ela necessita de vivcneiar todas estas coisas. Logo, «quando os pais a colo­cam no quarto deles, muitas vezes na pró­pria cama, não estão a permi­tir que a crian­ça cresça», su­blinha Rita Silva.

Corredor da fantasia

    Na mesma linha de pensamento o psicanalista italiano Pontalis referia num artigo, publicado em 1979, que era importante haver um corredor entre o quarto dos pais e o das crianças, sendo que esse espaço funcionaria como um impulso à curiosidade da criança e contribuiria para desen­volver a sua capacidade imaginativa. Mas, muitas vezes, na prática, não só não existe um corredor, como não existem quartos diferentes.

Na cama da mãe

    «Ao ocupar o lugar de um dos pais na cama do casal, a criança corre o risco de desenvolver as suas curiosi­dades voyeuristas e os seus desejos exibicionistas regressivos», adianta a psicóloga.

    Há muitas situações em que os filhos são utilizados para adiar a discussão de problemas existentes entre os próprios pais. Assim sen­do, os pais socorrem-se do pretex­to de que os filhos choram porque não querem dormir sozinhos, e um deles acaba por passar a noite no quarto do filho, ou o filho na cama com a mãe, e o pai dorme na sala. Também é frequente que após um divórcio a criança passe a dormir na cama do progenitor à guarda de quem ficou, mas para a psicóloga isto «é uma forma de o adulto usar a criança como um "medicamen­to" para re­solver as pró­prias frustra­ções, acaban­do por projec­tar toda a car­ga negativa no filho. Resul­tado? Muitas crianças ficam com atrasos afectivos, com inibições da vida mental, que se tradu­zem muitas vezes em insu­cesso escolar».

    Apesar de os pais pen­sarem que es­tão a fazer o seu melhor, na realidade quando se in­trometem no espaço físico que devia ser exclusi­vo dos filhos, ou quando aceitam passivamente a invasão do espaço que deveria ser esclusivo da inti­midade do casal, durante a noite, estão «a desculpabilizarem-se por­que inconscientemente acreditam que durante o dia existe uma falha na sua presença afectiva», refere a psicóloga. Só que «este comporta­mento sistemático leva a que haja um desenvolvimento e uma ma­turação deficiente na estrutura psicológica da criança», diz Rita Silva.

Insucesso escolar

    Sofia tinha doze anos quando os pais se separaram e, coincidindo com a separação, ela começou a ter maus resultados na escola. O diagnóstico foi feito rápida e pre­cipitadamente: «Insucesso escolar, como resultado da separação dos pais.» A pressa é sempre inimiga da perfeição. E numa consulta de acompanhamento psicológico o que se observou é que a mãe pro­jectou na criança todas as angús­tias, pedindo-lhe que dormisse no seu quarto porque tinha medo de ficar sozinha. Sofia tornou-se au­toritária, agressiva e passou a ter maus resultados na escola. Segun­do a psicóloga, «o que se verificou foi que a criança passou a ter de vi­ver com a nova realidade de não ter o pai em casa e sentiu que a mãe esperava que ela o substituís­se e não conseguiu suportar o peso dessa responsabilidade, daí o fra­casso ern termos escolares. A separação não tinha de afectar a crian­ça se a mãe tivesse conseguido que ela mantivesse os mesmos hábitos e a mesma rotina e não projectasse nela toda a sua angústia».

Cama para três

    São nove e meia da noite e Maria reclama porque está na hora de ir para a cama. Face à resistência da mãe, ainda ensaia uma pequena chantagem a pretexto de que há visitas. «Hoje, posso dormir na cama dos pais?» «Não Maria!, o teu quarto é muito mais giro, tem muitos brinquedos que te vão fa­zer companhia. E além disso, a tua cama tem música e a minha não», diz-lhe a mãe. E esta é a atitude correcta, ou seja, procurar manter uma rotina em que a criança ador­mece no quarto dela, valorizando sempre os aspectos positivos do seu quarto.

    O que não quer dizer que não ha­jam excepções, isto é, «visitas» pon­tuais à cama dos pais, ou porque as crianças estão doentes, ou assusta­das, ou no fim-de-semana em famílias bem estruturadas e saudáveis, podem ser salutares, e servir para reforçar laços afectivos. Mas lem­bre-se: só é benéfico como excep­ção, nunca como regra.

Revista “Saúde” - 14 de Outubro de 2001 - Carla Ramos

 

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