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A bebida das visões

 Conhecido há milhares de anos pelos índios da Amazônia,
 o chá do Santo Daime atrai cada vez mais atenção
 dos farmacologistas e psiquiatras do mundo.

 Por Ivonete D. Lucírio
 Fotos: Pio Figueiroa

 A íntegra desta reportagem você encontra na SUPER de abril de 2000.
        A cor da bebida varia entre o ocre e o marrom-escuro. O gosto é
mais amargo que o de um suco de laranja esquecido fora da geladeira. E os
efeitos mais comuns são vômito e  diarréia. Mas nada disso impede que ela
seja consumida regularmente por índios da  Amazônia ou pelos moradores de
grandes cidades que freqüentam os rituais de seitas  religiosas como o
Santo Daime e a União do Vegetal. Ela também provoca alucinações e  visões
místicas.
         Chamado de daime ou vegetal por seus adeptos, o chá é mais
conhecido pelos antropólogos como ayahuasca - cipó dos espíritos ou vinho
dos mortos em quéchua, língua indígena peruana. Obtido pela fervura de duas
plantas amazônicas - o cipó jagube(O cipó amazônico jagube é um dos
ingredientes do daime. A planta chegou a ser patenteada nos Estados Unidos,
mas o registro está suspenso desde o ano passado MVP4KLPV.JPG), ou mariri
(Banisteriopsis caapi), e o arbusto chacrona (Psychotria viridis) (O
arbusto chacrona é visto como o princípio feminino do chá e, por isso, suas
folhas são separadas pelas mulheres M1EI3KNS.JPG)- , ele é usado há
milênios pelos pajés da floresta. Para eles, o chá é capaz de livrar o
corpo e a alma de
toda impureza, fazer a mente viajar no tempo e no espaço e abrir a
comunicação com os antepassados e as forças da natureza.
         Não é o tipo de coisa na qual os cientistas acreditam, mas o fato
é que a ayahuasca vem  atraindo cada vez mais interesse na comunidade
acadêmica. Alguns estudos indicam que ele ajuda a combater a dependência
alcoólica. Em 1996, os psiquiatras Charles Grob, da  Universidade da
Califórnia, e Eliseu Labigalini, da Universidade Federal de São Paulo,
avaliaram um grupo de quinze usuários da bebida. Alcoólatras há vários
anos, eles haviam abandonado o vício semanas após começarem a tomar o
daime. Mas ninguém  arrisca ainda indicar o uso do chá como terapia. "A
amostragem foi pequena", diz  Labigalini, que continua investigando como o
daime pode contribuir também no  tratamento da dependência de crack e
cocaína.
                                  Algo mais
      A Igreja Nativa Americana, fundada pelos índios da América do Norte,
utiliza em seus rituais o cacto peiote. Ele contém a substância alucinógena
mescalina, tornada mundialmente famosa na década de 70 pelos livros do
antropólogo Carlos Castañeda.
         Rituais buscam um mergulho interior
         Nenhuma seita moderna descobriu a ayahuasca. A primeira descrição
do consumo da bebida é de 1855, feita pelo britânico Richard Spruce, mas há
evidências arqueológicas de que ela já fazia parte dos hábitos indígenas há
5 000 anos. Sua utilização em rituais religiosos é uma tradição corriqueira
entre os pajés de várias tribos amazônicas do Brasil,do Peru e do Equador.
         Foi no meio da mata, com curandeiros indígenas, que o seringueiro
maranhense Raimundo Irineu Serra conheceu o chá. Certo dia na década de 20,
sob efeito da  ayahuasca, Irineu teve a visão de uma senhora, sentada em um
trono, que se identificou como Nossa Senhora da Conceição. Sob sua
inspiração, e sempre sob efeito da bebida, ele se embrenhou na floresta
para receber da santa os ensinamentos da igreja que iria  fundar. Essa é a
história contada pelos seguidores do Santo Daime, seita criada por mestre
Irineu, originalmente em Rio Branco, no Acre, com o mesmo nome que ele deu
ao chá. A origem desse batismo está no pedido que aparece nos hinos
cantados durante os  rituais, em versos como "dai-me força, dai-me luz,
dai-me amor".
         Nascido com princípios católicos, o Daime abriga hoje kardecistas,
umbandistas e até céticos, somando cerca de 2 000 adeptos no mundo todo. A
religião da mata se espalhou para os centros urbanos do Brasil, Europa,
Estados Unidos e Japão e, nos tempos de desorientação de hoje, é procurada
por intelectuais, médicos, psicólogos. O mesmo fenômeno aconteceu com a
União do Vegetal (UDV), a maior organização baseada no uso do chá. Nascida
em 1961, em Rondônia, e tendo como fundador outro seringueiro, mestre José
Gabriel da Costa, a União conta com 6 000 seguidores espalhados por todas
as grandes cidades brasileiras.
         Cerimônia terapêutica
         Os rituais do Daime e da União do Vegetal buscam, acima de tudo, a
introspecção e a autoconsciência, e o chá é o veículo principal para
consegui-las. Mas, no Daime, não é o  único. A dança, que pode se estender
por mais de 10 horas, e os hinos de letras simples e repetitivas ajudam na
concentração mental, até se chegar às mirações. "Apesar de a bebida ser
considerada um alucinógeno, a palavra visão descreve melhor o que acontece
durante o ritual", diz o psiquiatra Charles Grob.
         "Elas são geralmente de cenas positivas ou de seres mitológicos.
Não são assustadoras como é típico nas alucinações", explica ele.
         Aos céticos pode ser apenas o efeito químico das plantas no
cérebro. Mas, para os crentes, o chá destampa o inconsciente e abre o
caminho para o auto-entendimento,numa espécie de psicanálise da floresta.
Ela seria a recompensa para o gosto amargo do vinho dos espíritos.

                               Para saber mais
       Guiado pela Lua, de Edward MacRae, editora Brasiliense, São
       Paulo, 1992.Na Internet: www.udv.org.br / www.santodaime.org

O impacto do primeiro gole
 No dia 18 de março a SUPER foi até o Céu de Maria, um local no Pico do
Jaraguá (SP) onde são realizados rituais do Daime. O jornalista Maurício
Lara experimentou pela primeira vez o chá e participou de toda a festa, uma
homenagem a São José.
 Leia suas impressões:
          "Sou um cético. Não acredito em Deus ou em milagres. E foi com
esse espírito (ou com a falta dele), que visitei um ritual do Santo Daime.
O que tinha a meu favor era o fato de ser tão insatisfeito quanto aquele
sujeito típico que procura as  sociedades iniciáticas. Quer respostas, acha
que a vida carece de um sentido mais amplo e coerente. Ocorre que muitas
vezes queremos mesmo é que a vida se enquadre em nossos próprios termos. E
as iniciações, cada uma a seu modo, procuram não se importar muito com
isso. Obedecem a regras muito estritas e exigem um preço, pago não raro à
custa de sofrimentos que não condizem com as nossas mais dignificantes
expectativas. Isso acontece porque quem participa de um ritual não pode
sair dele do mesmo jeito que entrou. É necessário um deslocamento de si
mesmo e do cotidiano para encontrar referenciais que até então não nos
pertenciam. Sabia que, de qualquer forma, estaria participando de um espaço
simbólico, onde as coisas valem pelo que representam, não pelo o que são.
Se tentasse racionalizar esse tipo de experiência, o ceticismo que muito
prezo com certeza a estragaria. À parte o belo sincretismo religioso que o
Daime evoca, seu ritual é muito simples. Toma-se o chá, dança-se um bailado
pouco rebuscado e canta-se hinos quase ingênuos. Mas, sob o efeito da
bebida e com o desprendimento necessário, a experiência vai aos poucos
adquirindo outro tom. As emoções acabam por ficar à flor da pele. Pobre de
quem não estiver bem. E é nessa hora de provável apuro que se busca algum
refúgio na música.
 Antes infantil, ela começa a tecer significados que me pareceram bem
coerentes.Mais que isso, concentrando-se na letra e na melodia, percebi que
elas me impediam de sucumbir ao cansaço e ao mal-estar físico causado pelo
chá. Esse  mal-estar chega a ser tão grande, que é quase necessário um
forçoso esquecimento do corpo. E assim se vai até a hora em que o mesmo lhe
obriga a correr para o mato vomitar. Vomita-se muitas vezes. De cócoras,
exausto e me refazendo da pancada no estômago, a experiência parecia um
suplício sem propósito. Mas foi exatamente nesse momento que a floresta que
rodeia o local do ritual emergiu surpreendentemente viva. Luzes de brilho
estranho começaram a estalar por todos os lados. Ramagens e árvores
vibravam, freneticamente, como se a mata não se contivesse. Sensações e
sentimentos variáveis acompanharam as visões, difícil separá-los ou
descrevê-los. E, como se uma espécie de recompensa me fosse reservada,
percebi que as coisas estavam com as cores vivas e luminosas como jamais
vira. Logo, um dos fiscais -um membro designado para auxiliar quem passa
mal - do culto veio me perguntar se tudo estava bem e pediu que voltasse
para o "trabalho" assim que me refizesse. O Daime não admite que se deixe
estar sem propósito. Tornei a dançar e a correr para a mata muitas vezes
ainda naquela noite. O ritual, que começara às 7 horas da tarde, terminou
por volta das 6 da manhã. Cheguei em casa implorando por uma cama e
desmaiei. Três ou quatro horas depois despertei refeito, incrivelmente bem
disposto. E esse saldo positivo foi o único mistério que restou daquela
noite infernal."

http://www2.uol.com.br/super/super0400/bioquimica.html