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Um erro técnico da medicina do séc.XX que precisa ser esclarecido



               Morte encefálica: implicações éticas,
              legais e religiosas de um erro técnico
                      da medicina do século XX


Cícero G. Coimbra

Médico Neurologista

Professor Livre-Docente do

Departamento de Neurologia e Neurocirurgia da

Universidade Federal de São Paulo



Um erro técnico


Em 1968, quando foram inicialmente definidos  os
critérios para o diagnóstico de morte encefálica,
imaginava-se que a associação entre o coma profundo
(nível 3 na Escala de Glasgow) e a ausência dos
reflexos cefálicos (reação pupilar à luz, reflexo córneo-
palpebral, provas calóricas, reflexo do vômito à
estimulação da faringe, reflexo respiratório, etc.),
corresponderia invariavelmente à cessação ou quase
completa cessação da circulação encefálica, a ocorrer
quando a pressão intracraniana, por qualquer razão
(em geral por edema cerebral progressivo após um
traumatismo craniano), atinge níveis máximos, que
igualam ou quase igualam a pressão arterial.  Assim,
bastaria a observação da sustentação desse estado
por algumas horas para que o diagnóstico fosse
firmado, pois o tecido nervoso não poderia manter-se
viável após várias horas de isquemia profunda.  Ao
longo dos 32 anos que se passaram, essa premissa
(que associa a supressão da função sináptica à perda
da vitalidade neural) tem se mantido como a
inspiradora fundamental da aplicação dos protocolos
diagnósticos em todos os países que adotaram a
redefinição de morte como morte encefálica.


Essa premissa fundamental deu origem a  importantes
inferências de caráter técnico que  reciprocamente
viabilizaram a defesa dos critérios  diagnósticos
propostos.  Entre as mais freqüentemente
verbalizadas, propõe-se que a morte encefálica seja
considerada um diagnóstico clínico.  Em outras
palavras, não haveria necessidade de realizar-se
exames confirmatórios.  Obviamente, assumindo-se
que já há parada circulatória intracraniana, e que ela já
se mantém por várias horas, não haveria necessidade
de qualquer dado ratificador adicional.  Nesses casos,
diz-se, o exame complementar poderia ainda ser feito,
mas traria como única vantagem a preservação do
médico que segue o protocolo diagnóstico contra
quaisquer possíveis questionamentos legais.


Também devido a uma inferência decorrente  daquela
premissa básica, foi rejeitado o protesto de
pesquisadores como Alan Shewmon (Neuropediatra da
 UCLA, formado em Harvard) que, em 1987 publicou
um  estudo demonstrando que a mecânica diagnóstica
proposta era, na realidade, própria de prognóstico, não
de diagnóstico.  Segundo Shewmon, quando se
observa que um fenômeno se mantém estável por
algumas horas e, a partir dessa observação, se infere
que o fenômeno não mais se vai alterar, está se
produzindo um prognóstico, e como tal, possibilidades
de recuperação não poderiam ser excluídas,
independentemente do número de pacientes em coma
acompanhados como amostra estatística.  No entanto,
como se tem assumido que o fenômeno fisiopatológico
subjacente àquela condição neurológica é a parada
circulatória intracraniana, mesmo uma pequena
probabilidade estatística de recuperação afigurar-se-ia
inconcebível, apesar de reconhecer-se a natureza
própria de prognóstico na identificação da morte
encefálica.  Assim, em resposta a argumentos como os
 de Shewmon, propôs-se que a morte encefálica
deveria  ser considerada como uma profecia auto-
sustentável  ("a self-fulfilling prophecy"): seria como
dizer-se que  determinada pessoa um dia irá morrer (ou
seja, um  prognóstico, sim, mas casualmente infalível).


Foi exatamente em decorrência dessa premissa
fundamental que a morte encefálica foi de início
precipitadamente definida como necrose encefálica
total. Essa definição revelou-se incorreta em estudos
histopatológicos subseqüentes, os quais (como o NHI
Collaborative Study) demonstraram a presença de
sinais macro ou microscópicos próprios de necrose
afetando o córtex cerebral, o tronco encefálico e o
cerebelo em apenas 40% dos casos, a despeito de
várias horas de sustentação do coma aperceptivo
associado à ausência de reflexos cefálicos até a
ocorrência de parada cardíaca espontânea.


Um quarto exemplo de inferência a partir  daquela
premissa básica é a crença de que o teste da  apnéia -
utilizado para a avaliação do reflexo  respiratório, seria
inofensivo para a recuperação  neurológica desses
pacientes.  Conforme foi  inicialmente proposto em
1968 o teste manteria o  paciente desconectado do
respirador ao longo de 3  minutos, sem qualquer
cuidado quanto à  desoxigenação do sangue.
Obviamente, assumindo-se  que há completo
sofrimento isquêmico já se  prolongando por várias
horas (premissa básica), não há  como conceber-se
que uma parada respiratória tão  prolongada (que
também provoca hipercapnia e  acidose profundas)
pudesse acentuar danos ao  encéfalo.


Há um quinto e último exemplo a destacar-se por  sua
importância.  A Comissão Ad Hoc da Harvard que
elaborou os critérios em 1968 analisou um relatório
referente a 600 casos de coma profundo sem sinais de
atividade eletrencefalográfica, e encontrou 5 casos de
recuperação.  Estudando esses casos verificou a
história de ingestão de altas doses de depressores do
SNC em uns e de hipotermia acidental em outros (estes
 últimos, sendo pacientes que, por exemplo, haviam-se
acidentado dirigindo veículos sob baixas temperaturas
ambientais, e encontrando-se em coma com
traumatismo de crânio, mantiveram-se expostos ao frio
até serem resgatados).  Impossibilitada de conceber
recuperação por um efeito terapêutico da hipotermia,
em face da premissa básica (a hipotermia não poderia
reanimar o tecido nervoso após uma parada circulatória
 intracraniana), a comissão da Harvard imaginou que,
naqueles pacientes específicos, reproduzia-se o quadro
 neurológico próprio da morte encefálica em face do
efeito depressor da hipotermia sobre o metabolismo
encefálico.  Assim, para os membros da comissão, a
recuperação explicar-se-ia pelo retorno da atividade
metabólica normal do tecido nervoso em decorrência
da normalização da temperatura corporal.


Todas essas inferências devem ser  reconsideradas se
for possível a demonstração de que  a sua premissa
fundamental (parada circulatória  intracraniana) não se
encontra de acordo com o  conhecimento científico
atual.  De fato, o fenômeno da  penumbra isquêmica -
hoje largamente reconhecido,  claramente a invalida, na
medida em que demonstra a  dissociação entre função
e vitalidade neurais.  De  acordo com o que agora se
sabe, o tecido nervoso  torna-se reversivelmente não
funcionante  (particularmente no que se refere à
atividade de  complexos circuitos sinápticos) quando o
seu fluxo  sangüíneo reduz-se apenas à metade dos
valores  normais.  No entanto, para que ocorra uma
lesão  irreversível, o fluxo sangüíneo deve cair para
valores  inferiores a um quinto do nível normal.  Como o
fluxo  sangüíneo é uma variável fisiológica de natureza
contínua, torna-se matematicamente impossível admitir-
se que um paciente que apresente hipertensão
intracraniana progressiva não tenha inicialmente o seu
fluxo sangüíneo encefálico globalmente reduzido para
valores entre um quinto e a metade do nível normal
antes de atingir valores ainda mais baixos,
determinantes da necrose celular.  Quando valores
inferiores a um quinto do fluxo sangüíneo normal são
oferecidos ao encéfalo, a produção energética torna-se
 insuficiente para a sustentação dos gradientes
eletroquímicos normais, verificando-se então o influxo
excessivo de cálcio iônico para o interior das células
neuronais e, com isso, o desencadeamento das
reações enzimáticas que levam à necrose.


Como é de esperar-se, um paciente que se  encontre
com o fluxo sangüíneo encefálico globalmente  reduzido
para valores situados entre a metade e um  quinto dos
valores normais apresentará exatamente o  mesmo
quadro clínico que um paciente com fluxo  sangüíneo
encefálico inferiores a essa faixa: ambos  apresentar-
se-ão em coma profundo e com ausência  de reflexos
cefálicos.  Pacientes com fluxo sangüíneo  encefálico
situado nessa faixa intermediária não devem  ser
submetidos ao teste da apnéia, por razões
independentes da ocorrência de hipóxia, mas
principalmente relacionadas à hipercapnia abrupta que
o teste tem por objetivo provocar.  A hipercapnia
determina (1) hipotensão arterial severa (já
corajosamente denunciada na literatura por mais de um
 pesquisador) e, (2) reconhecidamente, elevação da
pressão intracraniana (tanto é que o seu oposto - a
hipocapnia tem sido usada para tratar a hipertensão
intracraniana), o que é particularmente grave nesses
pacientes, devido à acentuada redução da
complacência intracraniana.  Tanto por redução da
pressão arterial média (PAM) como por aumento da
pressão intracraniana (PIC), verifica-se a redução da
pressão de perfusão encefálica (PP), conforme se
espera ao estudar-se a fórmula que define a relação
entre essas variáveis (PP=PAM-PIC). Portanto, aqueles
 pacientes que encontram-se com o fluxo sangüíneo
encefálico apenas parcialmente reduzido podem sofrer
mais intensa redução da circulação intracraniana,
tornando-se, somente então, irreversível a lesão
cerebral.


Mais grave ainda, sabe-se que animais  submetidos
experimentalmente a traumatismo craniano  severo
desenvolvem colapso irreversível do fluxo  sangüíneo
encefálico em decorrência de um episódio  apenas
transitório de hipotensão arterial induzida.  A
ocorrência de um efeito similar determinado pela
hipotensão associada ao teste da apnéia é
corroborada por estudos de pressão de perfusão e
pressão arterial em pacientes vítimas de trauma
craniano severo que evoluem até a parada cardíaca.
Quando o teste da apnéia não é empregado, a
hipertensão intracraniana progressiva (acompanhada
de redução progressiva da PP) sustenta-se até a
parada cardíaca, mesmo que esta leve vários dias para
 ocorrer.  Ao contrário, quando o teste é empregado,
verifica-se que a PP e a PIC encontram-se
normalizadas após a sua execução, mas
paradoxalmente o fluxo sangüíneo encefálico encontra-
se cessado na maioria dos casos, e nos restantes, em
valores inferiores a um quinto do nível normal. Esse
achado parece somente ser explicável pelo súbito e
permanente deslocamento do volume ocupado pelo
sangue para fora do compartimento intracraniano,
determinado pelo colapso irreversível da circulação
intracraniana.  Evidencia-se, portanto, que o teste da
apnéia pode induzir a morte que deveria apenas
diagnosticar.


Ao longo dos primeiros dois anos que seguiram  à
redefinição de morte como morte encefálica, antes  que
o teste de apnéia se tornasse largamente aceito,  foram
feitos estudos de fluxo sangüíneo encefálico em
pacientes que preenchiam os demais critérios clínicos.
Em 50% dos casos, os resultados mostraram valores
circulatórios situados entre os limites hoje reconhecidos
 como próprios da penumbra isquêmica.  Todos os
estudos subsequentes foram executados em pacientes
já sistematicamente submetidos ao teste da apnéia, e
quase invariavelmente demonstraram colapso
circulatório intracraniano.


Profissionais que sustentam a defesa dos atuais
critérios enumeram, entre diversos requisitos
diagnósticos, o teste da apnéia, afirmando, em
conformidade com a literatura tradicional, que os
pacientes que preenchem tais requisitos não vão
recuperar-se.  Esse raciocínio, no entanto, perde o
sentido pela própria invalidade da premissa básica
sobre a qual se sustenta (de que todos os que
apresentam arreflexia cefálica associada ao coma
profundo encontram-se em parada circulatória
intracraniana) que levou a uma das falsas inferências
relacionadas neste texto (de que o teste da apnéia é
inofensivo a esses pacientes).  Parte desses pacientes
(50% a 70%) poderiam recuperar-se se não fossem
submetidos ao teste da apnéia, mas sim a um
tratamento efetivo - a hipotermia.


A   hipotermia moderada (33?C) mantida por 12 a  24
    horas proporciona:

Rápida normalização da PIC, com conseqüente
recirculação do tecido nervoso sob penumbra
isquêmica global


Redução do edema cerebral (a hipotermia é o único
recurso terapêutico capaz de proporcionar esse  efeito)


Inibição da atividade enzimática nociva à sobrevida  da
célula neural


Prevenção do represamento térmico (elevação da
temperatura intracraniana em pacientes com lesão
encefálica recente, que pode chegar a 42ºC, a
despeito de uma temperatura sistêmica normal, e  que
provoca desnaturação das proteínas neurais)



O neurocirurgião japonês N. Hayashi, pioneiro  da
utilização da hipotermia moderada no trauma  craniano
severo tem recuperado 70% dos pacientes  que se
encontram em coma profundo, com pupilas  dilatadas e
sem resposta à luz, ao ponto de permitir o  retorno
desses pacientes à sua vida diária normal.   Reitere-se
aqui, para melhor clareza, que se forem  submetidos
previamente ao teste da apnéia, a  hipotermia
provavelmente não lhes trará qualquer  benefício.  Ao
tempo em que este texto está sendo  escrito, sabe-se
que a hipotermia é executada  rotineiramente no Brasil
para proteção cerebral  somente no Hospital das
Clínicas de São Paulo.  A  indisponibilidade do
tratamento hipotérmico em todos  os demais hospitais
públicos brasileiros torna a  captação de órgãos para
transplante uma atividade  contrária à ética médica:
solicita-se aos familiares a  doação de órgãos após a
realização sistemática do  teste da apnéia após
apenas 6 horas de observação  de coma profundo
associado à arreflexia cefálica.  Não  se solicita à
família autorização para a realização do  teste, que não
é executado visando proporcionar  qualquer benefício
terapêutico posterior ao paciente.  E  como não foi
submetido ao tratamento hipotérmico,  trata-se de um
paciente para o qual não foram  esgotados os recursos
terapêuticos.


Observa-se que o tempo ao longo do qual o  tecido
cerebral pode manter-se viável sendo  alimentado por
um fluxo sangüíneo situado entre um  quinto e a metade
dos valores normais pode ser de até  48 horas.
Quando essa redução parcial é mantida  apenas pela
PIC elevada e não há uma fonte necrótica  contígua ao
tecido em sofrimento isquêmico parcial (a  liberar
neurotoxinas continuamente), como há no caso  da zona
periférica da isquemia focal (AVC isquêmico),  é
possível que o tecido encefálico sustente sua  vitalidade
por um tempo ainda mais longo sob  penumbra
isquêmica global, mantendo-se aberta a  chamada
"janela terapêutica" para a hipotermia por um  prazo
correspondente.


Por outro lado, uma larga parcela de pacientes  que
encontram-se em coma profundo e com ausência  de
reflexos cefálicos permanecem com a sustentação  da
atividade secretora do hipotálamo ao longo de  vários
dias, a evidenciar-se pela manutenção do  controle da
temperatura corporal e pela secreção de  hormônios de
liberação para a hipófise anterior.   Evidentemente, na
vigência de níveis circulatórios  insuficientes para a
sustentação da vitalidade do tecido  nervoso, o
hipotálamo não poderia manter-se  funcionando.  É
possível, portanto, que o encéfalo  desses pacientes
encontre-se irrigado por níveis  circulatórios
insuficientes para a viabilização da função  dos
complexos circuitos sinápticos responsáveis pela
manifestação da consciência e dos reflexos cefálicos,
mas ainda suficientes para a preservação da função do
 hipotálamo (o qual consome normalmente 3 vezes
menos energia que o córtex cerebral).  A preservação
ininterrupta da função hipotalâmica durante os
primeiros dias pode, portanto, constituir-se em um
indício de que o paciente é ainda recuperável pelo
tratamento com hipotermia.


Apesar da sustentação da função hipotalâmica,  que
necessariamente implica na presença de fluxo
sangüíneo, observa-se que esses mesmos pacientes
eventualmente não apresentam atividade
eletrencefalográfica ou opacificação das imagens
vasculares ao exame angiográfico.  Faz-se portanto
necessária a correlação desses achados com níveis
quantitativos específicos de fluxo sangüíneo encefálico,
pois tanto a atividade eletrencefalográfica (que é
dependente da função sináptica), como a opacificação
vascular (que é dependente da concentração que o
contraste atinge no interior dos vasos sangüíneos)
podem não ser detectáveis apesar da presença de um
nível circulatório ainda suficiente para sustentação da
vitalidade do tecido encefálico.  Somente com essa
correlação estabelecida de forma estrita poderão os
resultados dos exames confirmatórios serem
considerados válidos.



Perspectivas e dilemas éticos, legais e religiosos


A definição da situação ora configurada  encontra-se
constrangida por diversos e profundos  interesses que
transcendem o simples aspecto técnico  do
diagnóstico, e que se encontram em grande parte
infelizmente atrelados à cirurgia dos transplantes de
órgãos vitais.  Alterar-se de forma radical os critérios
diagnósticos representaria reconhecer-se como fato
incontestável a aplicação sistemática de protocolos
diagnósticos não somente incorretos e falhos mas
também eventualmente mortais ao longo dos 32 anos
que já se passaram desde a proposição da morte
encefálica como redefinição de morte.  Adicionalmente,
 implicaria em reconhecer-se a perda de muitos
milhares de vidas também em face da
desconsideração do valor terapêutico da hipotermia
(pois que relegada à condição de simples critério de
exclusão ao longo de 3 décadas) como explicação
alternativa plausível para a recuperação das vítimas de
traumatismo de crânio que têm sido resgatadas em
hipotermia acidental provocada pela exposição ao frio
no local do acidente.


Pode-se vir a antever, como conseqüência, a
irremediável perda da credibilidade da cirurgia dos
transplantes de órgãos vitais.  Isso porque, segundo
essa visão, mesmo que novos critérios fossem
propostos com base científica solidamente atualizada,
os representantes do direito, da ética e das diversas
correntes filosófico-religiosas que aceitaram a
redefinição de morte proposta pela medicina em 1968
não desconsiderariam a necessidade de nova revisão
de critérios diagnósticos em futuro talvez não muito
distante, em face de novas aquisições do
conhecimento médico, que hoje avança com celeridade
 jamais vista anteriormente.


Em particular, o caráter de relatividade do  conceito de
morte aos avanços da ciência pode ser  considerado
incompatível com a natureza perene  desejável para a
moral e o pensamento religiosos, que  buscam
correlacioná-la com a ruptura da ligação entre  a alma
ou o espírito e o corpo físico.


O mesmo se aplica para as decisões tomadas  no
âmbito do direto que, em diversas circunstâncias,
dependem de uma definição estável, clara e definitiva
de quem está morto e quem está vivo, além de como e
quando ocorreu a morte.  Por exemplo, criminosos
condenados por agressões que resultaram na morte
encefálica de suas vítimas poderão pleitear a redução
de suas penas, alegando que seu crime deva ser
desqualificado como homicídio, por não poder-se
excluir a possibilidade de que o desligamento do
respirador, e não a violência que impuseram, tenha
sido a causa final da morte.  Situações similares
podem desencadear tumultos judiciários, fazendo com
que o sistema legal acabe por retomar a parada
cardíaca como o momento da morte, evitando-se assim
 que novos períodos caóticos sobrevenham no futuro.


A antevisão desses acontecimentos pode  determinar
inflexível resistência à discussão científica  aberta e
honesta desses questionamentos técnicos, em  face do
grande investimento econômico com que hoje é
favorecida a especialidade de transplante de órgãos, a
qual também acumula proporcional influência decisória
nos sistemas de saúde e nos conselhos que
regulamentam a atividade médica na maioria dos
países.  Enquanto alternativas como o xenotransplante
não forem viabilizadas tecnicamente pela biologia
molecular a serviço da engenharia genética, pode
verificar-se sistemático repúdio à discussão científica
endereçada à validade dos critérios diagnósticos
correntes.  Assim, é possível que em nenhum outro
campo do conhecimento médico a aquisição de
avanços seja tão demorada, penosa e alvo de tantas
retaliações.  Pelos mesmos motivos, essa resistência
tenderá a repetir-se sempre que (e se) reapresentar-se,
 no futuro, nova necessidade de equiparação dos
critérios diagnósticos aos avanços do conhecimento.  A
 perda de vidas proporcional, decorrente dessa
resistência contribui para questionar-se a ética do
atrelamento do diagnóstico de morte encefálica à
cirurgia dos transplantes.


Apesar de o teste da apnéia afigurar-se como um
procedimento altamente vulner ável à crítica pelos
problemas éticos que o envolvem (provoca hipotensão
severa  e paradas cardíacas fatais, é aplicado em
pacientes nos quais o diagnóstico de  morte ainda não
foi firmado, sem permissão formal dos familiares, e
sem o  objetivo de proporcionar ao paciente qualquer
benefício terapêutico posterior),  paradoxalmente, sob o
ponto de vista técnico, pode ser considerado por
muitos  como essencial para a sobrevivência do
transplante de órgãos vitais.  Seria  obviamente
indesejável que um paciente declarado como morto,
através de crit érios que excluíssem o teste do reflexo
respiratório, voltasse a respirar  durante o ato cirúrgico
para a retirada dos órgãos vitais.


Assim, os profissionais ligados ao sistema de
transplante de órgãos vëem-se  frente a um dilema
inacreditavelmente comprometedor frente ao
julgamento da hist ória da medicina. Por um lado, se
reconhecerem os indiscutíveis riscos  determinados
pelo teste (bem como a sua falta de benefícios) para
aquela  parcela de pacientes que se encontram sob
penumbra isquêmica global, ver-se-ão  constrangidos a
excluí-lo dos protocolos diagnósticos, o que pode
dificultar a  viabilidade do diagnóstico de morte
encefálica.  Por outro lado, estarão  assumindo
conscientemente a responsabilidade por arriscarem-se
a induzir a  morte de uma parcela talvez larga dos
candidatos a doadores, se optarem por uma  posição
de cristalizado repúdio à discussão científica, ou se
apenas simularem  contestá-la através da discussão de
detalhes formais, esquivando-se de refutar  o
argumento central que tem sido reiteradamente
apresentado, e que é  inteiramente auto-sustentável:


"é matematicamente impossível que o fluxo
sangüíneo encefálico atinja níveis  inferiores aos
necessários para a preservação da vitalidade do
tecido nervoso  sem que, previamente, níveis
circulatórios mais altos, que sejam apenas
insuficientes para sustentação das funções neurais
especializadas (consciência  e reflexos cefálicos)
sejam ofertados ao encéfalo "


Os protocolos diagnósticos atuais não diferenciam
pacientes cujo fluxo sangü íneo encefálico se encontre
num ou noutro nível, ou seja, casos reversíveis de
casos irreversíveis.  Portanto, o conhecimento atual
torna imperiosa a utilizaç ão de métodos confirmatórios
capazes de determinarem o fluxo sangüíneo com a
devida confiabilidade, correlacionando-o com o nível da
atividade metabólica do  encéfalo.  Indentificando-se
valores que sejam incompatíveis com a sobrevida do
encéfalo, não há justificativa para o teste da apnéia.  Há
que ressaltar-se, no  entanto, que tais métodos não
podem retardar a administração de medidas terap
êuticas eficazes, como a hipotermia.  É fato que
diferentes níveis de  temperatura, durações de
tratamento, período de indução, disponibilidade de
monitoração da temperatura intracraniana bem como a
ocorrência de insultos  secundários alteram sua
eficiência terapêutica. No entanto, o fato de a
hipotermia encontrar-se em fase de estudos para a
avaliação do melhor paradigma  terapêutico não
justifica a sua não aplicação, principalmente quando a
única  alternativa oferecida é nociva e de caráter não
terapêutico - o teste da apn éia.  Deve-se, portanto,
implementar-se o protocolo de maior efetividade - o do
Prof. Hayashi, incorporando-se melhorias a medida que
novas informações  surgirem.


Em cada ano, apenas no Brasil, milhares de pacientes
são sistematicamente  submetidos ao teste da apnéia
visando um diagnóstico precoce de morte encef álica e
captação imediata dos órgãos vitais.  A maioria são
adultos jovens em  idade economicamente produtiva,
vitimados por traumatismo craniano severo.  São
admitidos em hospitais públicos, os quais, em sua
maioria, encontram-se  desprovidos de um número de
leitos de tratamento intensivo suficiente para  atender a
demanda por cuidados de neuroproteção.
Paradoxalmente, os mesmos  hospitais possuem infra-
estrutura satisfatória para participarem do sistema de
captação e, até mesmo, muitas vezes, do transplante,
incluindo-se o próprio  cuidado intensivo posterior à
declaração da morte encefálica, necessário para
sustentar-se a perfusão dos órgãos do doador até sua
retirada.  As vítimas de  traumatismo craniano grave
são, portanto, pessoas que, em geral, não têm sequer
assegurado o direito ao tratamento tradicional
condigno, quanto mais ao  tratamento hipotérmico que
se encontra já implantado em alguns dos principais
centros internacionais.


A perda das vidas desses pacientes relega por muitos
anos ao abandono e à dor  aqueles que os amam e,
muitas vezes, que deles dependem para o seu
sustento,  educação e formação profissional.  Nada
poderá provocar maior dano à reputação  da atividade
médica do que a subtração da verdade no que
concerne ao bem maior  do ser humano - a vida.  A
conduta ética deixa ao médico, como alternativa  única,
defender a vida dos pacientes em coma, ainda
recuperáveis, acima de  quaisquer interesses, de forma
transparente, inequívoca e desassombrada,  auxiliando,
sempre que possível, a disseminação da discussão em
torno do  assunto para a disponibilização imediata da
verdade.  Ao mesmo tempo, devem ser  enfatizadas
campanhas de esclarecimento do público em relação à
necessidade do  tratamento contínuo de diversos
distúrbios que afetam irreversivelmente a funç ão dos
órgãos vitais, tal como a hipertensão arterial (que afeta
16 milhões de  brasileiros, e se constitui na maior
causa de lesão renal no Brasil), de forma  a reduzir-se a
demanda por transplantes.


Os textos para discussão desse assunto, com toda a
fundamentação bibliográfica,  encontram-se disponíveis
nas revistas médicas:


Brazilian Journal of Medical and Biological Research,
ano 1999 (dezembro), vol  32, fascículo 12, páginas
1479-1487, que também pode ser obtido livremente
atrav és da rede mundial de computadores nos
sequintes endereços eletrônicos:



{  
HYPERLINK 
http://www.epub.org.br/bjmbr/year1999/v32n12/pdf/3633.pdf   }
http://www.epub.org.br/bjmbr/year1999/v32n12/pdf/3633.pdf


ou
 

{  
HYPERLINK 
http://www.epub.org.br/bjmbr/year1999/v32n12/3633c.htm   }
http://www.epub.org.br/bjmbr/year1999/v32n12/3633c.htm



Revista Neurociência, ano 1998 (agosto), vol. 6,
fascículo 2, páginas 58-68.
 


Cartas de apoio de especialistas internacionais em
morte encefálica (inclu ído-se entre eles, Alan
Shewmon, membro da Comissão Organizadora do III 
Congresso Internacional sobre Coma e Morte, que
ocorreu de 22 a 25 de fevereiro  de 2000, e James
Bernat, Presidente da Comissão de Ética da Academia
Americana  de Neurologia) podem também ser obtidas
através da rede mundial de computadores:
 

          { HYPERLINK http://www.epm.br/neuro/opin
ioes.htm
                }http://www.epm.br/neuro/opinioes.htm