O
P. S. PROPÕE OUTRA JANELA. (Off the record: a realidade) (Pós-escrito à Carta 6.c)
Março de 2000.
Para: Don Pablo González Casanova
UNAM,
México. As
janelas são como as bolachas: são
gostosas e alimentam. Don
Durito de la Lacandona.
Don Pablo:
Com certeza você vai estranhar a epígrafe que encabeça esta carta, e mais ainda
o autor. Não é simples de explicar mas tratarei de fazê-lo. Tudo começou quando ...
Lá em cima o céu se espreguiça de horizonte a horizonte. Se estica tanto que a
pele chega a rasgar e a luz aparece por entre os farrapos. Venta muito pouco, ainda assim,
uma brisa fugaz me traz os ecos de algumas vozes. Desço da ceiba e caminho rumo a uma
pequena luz coberta pelas árvores. Parece uma pequena reunião, ou algo parecido. Me
aproximo e paro para distinguir as vozes dos ecos e, entre as vozes, ouço somente
uma. O Chapéu Louco e a Lebre de Março repartem o chá enquanto discutem com La
Mar uma pesquisa que diz que 90% dos seres humanos prefeririam celebrar seus
não-aniversários e renunciar às festas de aniversário. Estas coisas acontecem só
entre as montanhas do sudeste mexicano. Eu estou com o 10% que prefere celebrar os
aniversários, por isso fiquei sem o chá e sem a discussão.
Seja como for, o 21 já ronda por todos os calendários e, na falta do chá, terá
café e bolachas de bichinhos. E, falando de bichinhos, o gabinete ampliado de Zedillo (ou
seja, ele mesmo e a chamada - de forma presunçosa - equipe de campanha de
Labastida) aborrece com suas declarações o cada vez mais raquítico respeitável
público. E não é que o respeitável tenha perdido a respeitabilidade, o que acontece é
que diminui aceleradamente o número de mexicanos e mexicanas que atendem ao que o
supremos lhes diz.
Durito, que quando o assunto é bolachas se joga como um político que procura seu
nome nas listas dos candidatos, aparece por uma das beiradas da mesa. Eu estava escrevendo
uma resposta para Don Pablo González Casanova (melhor um pós-escrito), quando Durito,
jogando num canto a venda, a perna de pau e o gancho, exclama-pergunta-exige-reivindica: -
Alguém falou em bolachas? -
Não falei, escrevi. E não fique emocionado porque são daquelas de bichinhos que, pelo
que eu sei, não estão entre as que você prefere. -
Por que você sempre mistura a política com coisas tão nobres como as bolachas? Além do
mais eu sei onde estão guardadas algumas Pancrema.
Parei
logo de escrever. -
Pancrema? Aonde? -
Nada, nada. Se não tem chá, não tem bolachas. -
Mas Durito ... bom, vamos negociar: eu te ajudo a arrumar a lata de sardi ..., perdão, a
galera e você me diz onde estão as Pancrema.
Durito pensa nisso por um momento. Depois pergunta: -
Isso inclui que você lave a coberta e tire a água durante as tormentas? -
Inclui -
digo eu vendo que agora no céu não tem lugar para as nuvens, por isso não tenho que me
preocupar com nenhuma tormenta. -
Siga-me - diz
Durito que, descendo da mesa, começa a marchar
montanha adentro.
Peguei a lâmpada, ainda que a lua a tornasse desnecessária. Não caminhamos
muito. Durito parou diante de um huapac e apontou para um dos ramos. Aí - disse. Olhei para onde apontava e vi uma
pequena sacola pendurada. Devia seu uma velha caixa do correio deixada há
tempo por uma de nossas unidades. Durito sentou-se ao pé da árvore, tirou o seu cachimbo
e começou a fumar. Interpretei o seu silêncio e subi na árvore, soltei a sacola e desci
com ela. Ao abri-la, vi que, de fato, havia um velho pacote de bolachas
Pancrema, um par de pilhas AA, uma lâmpada já enferrujada, um
livro velho e estragado de Lewis Carrol (Do outro lado do espelho), um
cancioneiro zapatista ... e um livro de teoria política cujo autor é o Subcomandante
Insurgente Marcos!
Não lembro de ter escrito nenhum livro de teoria política. E mais, não lembro de
ter escrito nenhum livro mesmo. Claro que a idéia de um longo escrito expondo o que nós
zapatistas pensamos da política andou rondando pela cabeça, mas nada disso foi
concretizado. Me pus a folhear o livro enquanto Durito dava conta das bolachas. Quando me
virei já não sobravam nem as migalhas das Pancrema. -
Acabou com todas? -
digo-lhe em tom de reprovação. -
Devia me agradecer por isso. Estavam mais rançosas do que o novo PRI. Durito
me olha e acrescenta: - Vejo que algo te preocupa.
Pode desabafar comigo, meu querido nariz desconcertado. -
É que encontrei este livro na caixa do correio. Como é possível que encontre numa velha
caixa do correio de montanha um livro que ainda não foi escrito? -
O seu problema tem solução no outro livro. -
Qual? O de Lewis Carrol? -
Claro! Dá uma olhada no capítulo V.
Fiz
isso. Não tenho certeza, mas acredito que a resposta devia estar neste diálogo entre
Alice e a Rainha Branca: -
É este o resultado de viver para trás - disse
a Rainha bondosamente. No começo, isso deixa sempre
as pessoas um pouco atordoadas. -
Viver para trás
- repetiu Alice, muito surpresa. Nunca ouvi isso! -
Mas nisso tem uma grande vantagem: que nossa memória trabalha em ambos os sentidos. -
Tenho certeza de que a minha só trabalha num único sentido
- observou Alice. Não posso lembrar das coisas
antes que elas aconteçam. -
É uma memória triste esta que só pode trabalhar para trás -
respondeu a Rainha. -
Que tipo de coisas você lembra melhor? Alice
se atreveu a perguntar. -
Oh! As coisas que aconteceram nas duas semanas
- respondeu a Rainha negligentemente ... Lewis
Carrol. Do outro lado do espelho. Cap. V -
É por isso que tenho em mãos um livro que ainda não foi escrito? Disse. -
É isso. Estamos numa dessas zonas chamadas janelas. Eu
olho para ele com estranheza. Sim, - diz Durito
- Janelas. Ou seja, nestes lugares
você pode olhar para o outro lado, seja para o que passou, como pelo que vai acontecer.
Aqui, por exemplo, aqui você pode ver o que tem sido o mandato de seis anos de Zedillo, e
ver também o caos para o qual se dirige. Agora, a única coisa estável é a
instabilidade. Terão todo tipo de problemas. -
Pois, parece que caminham por aí mesmo. Você já vê que a bolsa de valores está nas
nuvens e, não entendo muito disso, os índices econômicos garantem que não haverá o
erro de dezembro. -
Deve ser porque acontecerá em outro mês. Durito
parece prevenir minha perplexidade porque quase imediatamente acrescenta: - Você tem que entender - Durito olha dubitativo e
corrige - bom, você deve tratar de entender que ...
olha, é melhor ler isso aqui que estou escrevendo. Durito me passa umas folhas
escritas onde se lê: ANOTAÇÕES
QUE TRATAM DE EXPLICAR AQUILO QUE VAI ACONTECER QUANDO
JÁ TIVER ACONTECIDO.
Os índices macroeconômicos: a macro maquiagem.
Em
ano eleitoral, além dos candidatos abundam as mentiras. Uma das maiores é a que canta as
maravilhas de um auge econômico que não se vê em nenhum lugar. Cegos diante do que faz
sofrer o povo simples, os funcionários governamentais exibem números que dizem mais
naquilo que calam. Os altos índices macroeconômicos nada mais são a não ser uma macro
maquiagem para ocultar a realidade: o crescimento da pobreza e do número de pobres em
nosso país. Enfrentando a evidência de que ninguém acredita neles, o governo põe na
boca dos grandes centros financeiros os ganhos e os aplausos na rápida e tumultuosa venda
do México. Enquanto nas reuniões empresariais e governamentais (o clube mais poderoso
dos criminosos nacionais) se felicitam mutuamente pelos aumentos dos lucros, nas ruas e
nos campos do México a sobrevivência se transforma em luta quotidiana e os aumentos dos
preços dos produtos básicos e dos serviços se refletem nas mesas (menos alimentos e em
quantidade menor), nas ruas (aumentam os desempregados e os subempregados), nos pequenos
comércios (agonia e fechamento) e no campo (aumenta a migração para as cidades e para a
União Americana).
Mesmo assim, a macro maquiagem apresenta sérias deficiências. No XIII Congresso
da associação Nacional dos Economistas, o secretário zedillista do Comércio (Herminio
Blanco) enfrentou a crítica à sua campanha publicitária. Enrique Dussel, pesquisador da
UNAM, lhe disse As 3 mil e 100 maquilladoras e
as 300 grandes empresas nacionais e estrangeiras representam o 0,12% das empresas do país
e criam somente 5,6% dos empregos... (El Universal, 09 de fevereiro
de 2000, caderno de Finanças, reportagem de Lilia González e Alberto Bello). Ao apontar
que as grandes corporações não têm criado uma cadeia produtiva com as pequenas e
médias empresas (que, no México, são a principal fonte de emprego), o pesquisador teve
o humor de apontar ao senhor Blanco: Estes
são dados, não globalifobia (Ibid.).
A grande fraude chamada Tratado de Livre Comércio da América do Norte
(produto da grande mentira salinista) se projeta agora para o futuro através da
assinatura de um tratado de livre comércio com a União Européia. Apreciadores das
modernas maquiagens, os governos europeus apertam a mão de Zedillo sem importar-se com o
fato deste tê-la manchado com o sangue indígena, sem ligar para o fato de que o seu
governo é o que tem mais ligações com o narcotráfico, e fechando os olhos à falta de
democracia em nosso país. Dá pra entender a flexibilidade da União Européia; o que
está em jogo é um pedaço do bolo chamado, ainda, México. Pelas maravilhas
da globalização, um país se mede pelos seus índices macroeconômicos. O povo? Não
existe, só tem compradores e vendedores. E, no meio destes, existem classificações: os
pequenos, os grandes e os macro. Estes últimos compram ou vendem países. Um tempo atrás
foram os governos dos Estados Nacionais, hoje são só mercadores em busca de bons preços
e lucros suculentos.
A classe política e seus convocados: clero,
exército, meios de comunicação, intelectuais, organismos internacionais. Se
antes dissemos que a classe política é cada vez menos política e cada vez mais
empresarial, em ano eleitoral o cinismo assume tons de boom publicitário. Os
que são importantes não são os governados, e sim aqueles que contribuem ou
dificultam o exercício do poder. Convocados pela classe política mexicana, o alto clero,
o exército, os meios de comunicação eletrônicos, os intelectuais e os organismos
internacionais se transformam em grandes eleitores. Suas respectivas parcelas
recebem os benefícios do regime e, de forma acentuada, durante o período eleitoral. Os
cidadãos permanecem à margem e suas demandas são reduzidas às pesquisas de
preferência eleitoral. As declarações, os desmentidos e os comentários a umas e
outras, dizem respeito aos chamados líderes de uma opinião cada vez mais
próxima a um acordo de camarilha e mais afastada do debate sério de idéias e projetos. O
alto clero avança, com suposto aval divino, nas intrigas terrenas. Formando uma equipe
com os governantes e/ou candidatos-a-governantes, a hierarquia católica vê com
satisfação que a sua palavra incide e marca as políticas do governo. Enquanto o Estado
leigo nada mais é a não ser uma data vergonhosa no calendário, nas reuniões públicas
e privadas os políticos e os clérigos partilham o pão, o sal, a cumplicidade e a falta
de vergonha. Não, não se trata de respeito mútuo entre âmbitos diferenciados, não. É
uma simbiose que permite a alguns bispos e cardeais estarem mais próximos do México do
Poder do que dos católicos (a grande maioria dos mexicanos) simples e comuns. As Leis da
Reforma? Perdoe-me, meu querido, não é nome de rua? Em
outro espaço, outros bispos e cardeais, mas da intelectualidade
da direita, lutam entre si para ocupar o espaço deixado pelo sumo pontífice, Octavio
Paz. Se tem uma maneira de medir a estatura de Paz como intelectual eficaz com e para o
poder, esta é medindo a dos anões que disputam o seu legado. Com Paz morre o último
grande intelectual da direita no México, os que o seguem podem ser de direita, mas estão
muito longe de serem intelectuais. Contudo, as hierarquias da intelectualidade de direita
no México têm seus acólitos e, em caso de necessidade, seus soldados. Nestes dias, a
frente intelectual de direita contra o movimento universitário sofreu um sério revés. O
golpe veio de um universitário, intelectual e de esquerda, chamado Pablo González
Casanova. O pesquisador da UNAM colocou em evidência algo fundamental: a legalidade não
pode suplantar a legitimidade, e, no caso do conflito da UNAM, a legalidade
(outros intelectuais de esquerda já têm demonstrado que a entrada da Polícia Federal
Preventiva na UNAM foi ilegal, como são ilegais os processos penais contra os estudantes
presos) se transformava num meio pelo qual a violência sem razão obtinha o doutorado Honoris Causa da maior universidade da América
Latina. Se
o ser de esquerda já era algo imperdoável em González Casanova, o fato de agir
coerentemente com suas idéias foi demais. Os cardeais da intelectualidade
mandaram seus peões (parece que alguns têm até nomes e sobrenomes) a jogar-se com
fúria contra Don Pablo. Ainda que tenham perdido a batalha, a intelectualidade da direita
não passa a noite em claro por esta escaramuça derrotada. Seus combates decisivos não
são no campo das idéias (perderiam com certeza) nem diante dos intelectuais
progressistas. Não, o terreno a ser conquistado, que desejam, que alguns já desfrutam,
está ao lado do príncipe, nas beiradas de sua mesa, sussurrando elogios ao
ouvido dos grandes senhores da política e do dinheiro. Sem dúvida, produzem suas
revistas e seus programas de televisão. As letras mortas que rabiscam, seus nexos
intelectuais e suas zonas abertas não têm como destinatário ninguém mais a não ser
eles mesmos. Nestes lugares se comentam entre eles mesmos, se lêem entre eles mesmos, se
criticam entre eles mesmos, se saúdam entre eles mesmos e, ao fazê-lo, se
dizem reciprocamente: somos a consciência do
novo poder, somos necessários porque nós dizemos que somos necessários, o Poder precisa
de alguém que coloque em prosa e em versos seus indicadores econômicos e suas faturas, o
que nos torna diferentes dos bufos é que nós não contamos piadas, as explicamos. Neste
mundo anão de anões, a superfície é um tabuleiro de xadrez no qual alferes, reis,
rainhas, peões, cavalos e torres conspiram cochichando. Todos sabem quem vai ganhar, não
é isso que importa, e sim que casa do tabuleiro ocupam e por quanto tempo. O barulho
ensurdece uns e outros, mas a máquina funciona, aí estão 7 décadas de um sistema
político que agora se chama novo PRI. O barulho da máquina não se parece
com o girar das engrenagens, se parece cada vez mais com um spot
publicitário. Os
problemas começam quando entram peças que não são desse xadrez, quando algum objeto
estranho entope as engrenagens, ou quando uma interferência obstrui a todo-poderosa
compra-venda... A
Agenda Nacional no caderno de Espetáculos? A
caixa de ressonância fundamental deste México dos poderosos está nos meios de
comunicação eletrônicos. Mas, longe de ser só um eco do que a classe política diz, a
televisão e o rádio adquirem voz própria e, sem que ninguém o questione, se
transformam na voz principal. A agenda nacional não é marcada pelos grandes problemas do
país e nem sequer pelos líderes políticos. Não, as campanhas eleitorais e as agendas
governamentais andam de acordo com as programações do rádio e da televisão. A
comunicação eletrônica não divulga notícias, as cria, alimenta, as faz crescer e as
aniquila. A diferença entre as opções partidárias em tempos de eleição não está
nos projetos de Nação que sustentam umas e outras, e sim no tempo que conseguem nos
meios de comunicação. O
rating que importa não é o dos telespectadores e sim o que se alcança na
classe política. A maior parte das declarações e dos pronunciamentos dos principais
atores políticos não é diante de situações reais, e sim das manchetes. Dessa forma,
os temas do momento cobertos pelos meios de comunicação são aqueles que
eles selecionaram para este fim. No grande teatro da política no México, os políticos
são, ao mesmo tempo, atores e espectadores; o rádio e a televisão cumprem as funções
de diretor, roteirista, produtor, encarregado da iluminação, da tramóia e da
bilheteria. Se
a cada dia é mais difícil falar de um único México, em tempos eleitorais é
impossível. É palpável a existência de dois países: o que vive nas manchetes e o que
passa off the record, fora dos noticiários e das exclusivas. Off
the record: a realidade. Enquanto
o rádio e a televisão se esforçam, inutilmente, em apresentar uma imagem de
normalidade na Universidade Nacional Autônoma do México, os entusiastas do
Estado de Direito exercido contra os lutadores sociais, se surpreendem com o
fato de que a entrada no C. U. dos paramilitares de Wilfredo Robledo e a detenção de
centenas de universitários não solucionaram o conflito na máxima casa de
estudos. Nem o movimento universitário está acabado, nem o farsante De La Fuente é o
reitor. A libertação seletiva e a conta-gotas dos estudantes presos (esforçando-se para
deixarem uns tantos presos) não desanimou a luta pela reivindicação de educação
gratuita e por um congresso democrático que seja verdadeiramente democrático e
resolutivo. Às vezes desconcertado, o movimento universitário se mantém firme em
reivindicar a liberdade dos presos políticos, a educação gratuita e o congresso.
Incomodados, o rádio e a televisão tratam de fazer com que as manchetes sejam unicamente
daqueles que têm horário pago na programação. O resto deve ficar como pé de página
ou para encher lingüiça. A quem interessam os pais de família que se
esfolam para exigir a liberdade de seus filhos, quando na equipe de Labastida estão
lutando Esteban (Guajardo) Moctezuma e Emilio Gamboa? Os mesmos meios de comunicação que
se apavoravam com o léxico do CGH, hoje se entusiasmam com o merda-peido-chis
das campanhas eleitorais e com a exagerada troca de sinais digitais entre os candidatos. Mas
se a realidade passa boa parte do tempo fora da programação, de vez em quando dá uma
mordida no México de cima e estraga os índices macroeconômicos, os noticiários e as
agendas dos candidatos. Num canto do outro México, uma comunidade decide dispensar as
telenovelas e os noticiários, enfrenta a polícia e defende uma escola normal rural. Em
El Mexe, Hidalgo, os protagonistas não são os estudantes normalistas e nem os policiais
que iam reprimi-los, é o povo. Gente que não tinha mais lugar a não ser nas notas de
pé de página, um ponto nos encontros do candidato, um número na quantidade de bolos e
refrescos a serem repartidos na viagem de proselitismo. Assim como aparece, desaparece.
Uma avalanche de declarações enterra o fato fundamental (o Basta! praticado
com contundência) e uma outra coisa. Chiapas?
Poderá estar na agenda da ONU ou das organizações não-governamentais nacionais e
internacionais, mas não na agenda nacional. Para evitar isso, o bolachas pra cachorro
Albores não poupa recursos. Em um ano, o bolachas pra cachorro gastou 28 milhões de
Pesos para evitar que Chiapas fosse uma nota desafinada entre as notícias
(Proceso Sur, # 1, 04/março/00). O homem do dinheiro é o filho predileto da TV Azteca:
Manuel de la Torre que até ontem destruía escolas rurais com seu bat
helicóptero, e hoje pretende estimular os jornalistas como se fossem gado. Enquanto
o governo insiste em dizer que tem feito um grande investimento econômico em Chiapas,
esquece de dizer que o gasto maior é em propaganda, matérias pagas, mentiras
para calar notícias desagradáveis e para melhorar a maltratada imagem do
exército federal. Entre
os latidos de Albores e os zurros de Rabasa, o exército toma novas posições de ataque,
fortalece ostensivamente suas guarnições, os aviões e os helicópteros aumentam seus
sobrevôos e a guerra continua, mantendo agora uma prudente distância das manchetes da
imprensa. Os
indígenas zapatistas insistem no valor da palavra: as mulheres no dia 8 de março em San
Cristobal, as coordenações no dia 21 de março, os habitantes de Amador Hernández, os
de Amparo Agua Tinta, os tzoltziles de Los Altos, os tzeltales dos vales, os choles e
zoques do norte, os mames da serra, todos voltam a lembrar que tem uma palavra que o
governo não cumpriu, os Acordos de San Andrés, e que para os indígenas mexicanos não
há paz, nem justiça e nem dignidade. Longe
das oito colunas e dos noticiários eletrônicos, o México do povo se mantém em
resistência, numa espera paciente, na esperança ... O
que é que estão esperando? -
* -
Devolvo as folhas para Durito, dizendo-lhe: -
Este o que é que estão esperando?, é uma pergunta, uma reivindicação ou uma profecia? -
Vem pra janela
- me diz Durito. Faço isso, olho e não acredito. -
De maneira que ...? Quem diria! -
É assim. As janelas são como as bolachas: são gostosas e alimentam -
diz Durito enquanto empreende o caminho de volta ...
Don Pablo, com estas palavras Durito encerrou a sua fala nesta madrugada. Quando
voltei à choça reli a sua carta e comecei a escrever-lhe estas linhas. Eu devia tratar
de explicar-lhe que nós zapatistas não nos vemos só na janela da esquerda que você
aponta no seu texto. Nós achamos que temos aberto uma outra janela, uma janela dentro da
janela da esquerda, que a nossa proposta política é mais radical das que se reúnem na
sua janela e que é diferente, muito outra (atenção: não escrevi
melhor, só diferente). E se supõe que esta carta era para
explicar a você (e aos outros) em que consistia, para nós, esta outra janela que nós
zapatistas havíamos aberto.
Mas acontece que está tudo neste livro que ainda não foi escrito, mas que pode
ser lido numa das zonas Janelas que estão entre as montanhas do sudeste
mexicano. Por isso, terá que esperar que o mencionado livro seja escrito (o que não
deixa de ser otimista) e que seja publicado (o que beira a ingenuidade).
Por enquanto, Don Pablo, receba as saudações de todos nós e mande sua próxima
carta acompanhada, de preferência, de umas bolachas Pancrema (melhor se não
estiverem rançosas). Talvez, assim, posso convencer Durito a me levar novamente à dita
janela. Porque do livro que não escrevi (ma que, se supõe, irei escrever)
consegui ler só a dedicatória e não fui mais adiante porque uma úmida ternura me
impediu de fazê-lo.
Valeu, Don Pablo. Saúde e, olhando bem, uma janela nada mais é a não ser um
espelho quebrado. Das
montanhas do Sudeste Mexicano Subcomandante Insurgente Marcos México,
março de 2000. |