Site hosted by Angelfire.com: Build your free website today!

Autor: – Destaque In - Revista Cultural de Sacramento e Região


Virmondes Martins Borges

A história da pecuária brasileira é uma seqüência do pioneirismo realizado por heróis capazes de sonhar tão grande quanto o país merece e transformar sonhos em realidade. Virmondes Martins Borges é um deles e o artigo que assina, uma de suas últimas mensagens, antes de morrer.



Estou velho já e teria pena de não deixar escrito para meus filhos, netos, parentes e amigos, o que foi a odisséia de minha viagem à Índia. Foram dois anos por demais ricos em acontecimentos que não se apagam da minha memória e que merecem ser contados. Não só pelo que passei, pelas duras situações que vivi, mas também para que se sinta o que era a vida naquele tempo, tão diferente da vida de hoje. É incrível que no espaço de duas gerações o mundo tenha mudado tanto.
    
Era o ano de 1917. A Europa estava em guerra, a Grande Guerra, que durou de 1914 a 1918. Mas desde 1917 já se falava em paz e já se esperava pela paz. Foi quando planejamos ir à Índia – João (meu irmão) e eu – para comprar gado Zebu. A nossa viagem deveria ser pela Europa, isto é, atravessando o Mediterrâneo, onde apanharíamos outro navio que fosse pelo Canal de Suez, o mar Vermelho e o Oceano Índico, até Bombay. Esse era o nosso plano. Sabíamos que seria difícil, por causa da guerra. Mas haveria de ser possível. Nossos pais tentaram dissuadir-nos. Nossa mãe, sobretudo, excessivamente amorosa, temia por aquela viagem. Mas éramos muito moços, muito cheios de entusiasmo, e não desistimos. Iria conosco um primo, quase tão irmão – Otaviano Martins Borges Júnior – o Tavico.
    
João, traquejado em viagens, pois já havia estado na Europa, especialmente na Itália, donde trouxera jumentos de raça para vender aqui, e à Índia tinha ido duas vezes, a negócios de gado, sendo que a última viagem se frustou por causa da guerra, era o planejador de tudo. Em Uberaba fez um contrato com o Sr. José Caetano Borges, para trazer-lhe uma partida de rezes indianas. Além disso compraríamos um outro gado para nós e para nossos pais.
    
Assim, embarcamos de navio, supondo que a guerra terminasse logo e a viagem decorresse sem maiores tropeços. Tal não aconteceu porém. Atravessamos bem o Atlântico, apesar dos submarinos que infestavam os mares e de sempre viajarmos às escuras. Ao chegarmos às costas de Gibraltar por causa das minas. A entrada do Mediterrâneo estava fechada. Nosso navio rumou então para o sul da África, onde desembarcamos na Cidade do Cabo.
    
Apenas a metade da viagem estava cumprida. Que fazer agora? Como chegar à Índia se não havia navegação daí para lá? Voltar era solução que não aceitávamos, porque não admitíamos o fracasso. Resolvemos então atravessar o sul da África por terra, a fim de alcançar o oceano Índico, do outro lado. Lá encontraríamos por certo algum navio que nos levasse ao nosso destino. Essa viagem foi feita por estrada de ferro e até por camelos. Ao fim de muita luta e muito cansaço chegamos ao porto de Durban, onde embarcamos no vapor inglês City of Manchester, que finalmente portou em Calcutá, na Índia. Levamos três meses nessa viagem! Pasme a geração de hoje, que dispõe de possantes aviões a jato e pode dar a volta ao mundo, não mais de oitenta dias, como sonhou Júlio Verne, mas em algumas horas.
    
Na Índia começamos logo o nosso trabalho. Agíamos separadamente, cada um fazendo o que podia. Nosso ponto mais comum era a cidade de Ahmedabad, capital da província de Guzzerai, onde fazíamos as compras. Daí levávamos o gado para Bombay. Era nesse porto que pretendíamos embarcá-lo para o Brasil.

Mas devido à guerra, não havia mais navios de carga tocando Bombay. Depois de esperar e perder muito tempo, a alto preço, concluímos que teríamos que transportar o gado para Calcutá, do outro lado do país. Assim fizemos, de trem, com a primeira partida, atravessando a Índia de lado a lado. E assim também com todas as outras.
    
Calcutá, uma grande cidade situada no delta do Ganges, o rio sagrado – é, por diversas razões, digna de interesse e curiosidade. Possuía aquele tempo, uma população de 1.500.000 habitantes, divididos em mais de 150 castas e religiões, falando, por isso mesmo, 1.500 dialetos diferentes.
    
João falava e escrevia corretamente o inglês. Eu saí do Brasil com conhecimento apenas rudimentares desse idioma. Na viagem treinei bastante. O resto aprenderia depois, com a necessidade premente de me fazer entender. Aprenderia também o Guzzerat e uma infinidade de expressões das centenas de patuás que se falavam lá. Para uma simples informação que se quisesse, em Calcutá, por exemplo, era necessário que a pessoa se dirigisse sempre a mais de um transeunte. O primeiro quase nunca entendia o que lhe era perguntado. Apontava a mão pra um outro, que pelos trajes, deveria pertencer a uma outra casta que falava aquela língua. Ficamos dois anos na Índia, isolados do mundo. As cartas que iam e vinham, quando chegavam, levavam meses, porque passava pela Europa em guerra. Por isso satisfaziam nossos prementes problemas de comunicação. Hoje faz-se uma ligação telefônica internacional e tudo fica resolvido em horas. Mas naquele tempo...

Esses dois anos de Índia foram vividos intensamente. Foram cheios de acontecimentos, pitorescos uns, dramáticos outros. Fizemos muitas viagens, conhecemos muitos lugares, como o Himalaia, por exemplo. Vimos coisas maravilhosas ou esquisitas e até chocantes. Anotamos costumes estranhos e absurdos. Coisas de uma terra milenar, em tudo diferente da nossa.

O gado que tínhamos em Calcutá à espera de transporte, começou a preocupar-nos. A cidade é muito baixa e muito úmida. Falaram-me então de um aterro, não longe dali, onde se pretendera fazer uma estrada de ferro mas devido à falta de verbas ficou abandonado. Fui às autoridades competentes e consegui licença para transportar o gado para lá. Antes fiz construir nele fileiras de baias (onde as rezes ficam amarradas) e um corredor ao meio para facilitar a distribuição de forragem.

Tudo se tornava cada vez mais difícil, exigindo uma assistência constante e enérgica. A essa altura a forragem estava já racionada pelo governo inglês, por causa da guerra (a Índia era uma possessão inglesa nesse tempo). Para comprá-la eram necessários requerimentos, comprovantes e até empenhos.
Antes disso porém em maio de 1916, João adoeceu em Calcutá, intoxicado por uma injeção 914, tão em voga naquela época. Eu estava em Ahmedabad, a três dias de viagem. Avisado, rumei para a capital. Ele já havia morrido, cercado por alguns amigos e um padre jesuíta que estava casualmente no hotel e lhe ministrara os últimos sacramentos, depois de descobrir-lhe ao pescoço, um escapulário de N. S. do Carmo, sua madrinha. Esse padre escreveu a nossos pais uma longa carta testemunhando tudo isso, como um grande conforto espiritual. Foi sepultado num pequeno cemitério católico, no centro de Calcutá, onde fiz, construir um túmulo de mármore branco com uma grande pedra lascada e a efigie de uma mulher chorando. Quando voltei ao Brasil encarreguei a Ordem Jesuíta de zelar pela sua conservação. João tinha 27 anos.

Ficar sem ele naquela distância, sem a sua orientação, a sua ajuda, a sua companhia, era acima de minhas forças. Mas tive de aceitar a situação, inclusive assumindo as suas responsabilidades comerciais, o que dependia da legalização de papéis, difícil de fazer com a demora da correspondência do Brasil. Eu tinha 25 anos.

João, graças à sua cultura, ao seu tirocínio, ao seu bom inglês, era o nosso “relações públicas” na árdua missão de tratar com os representantes diplomáticos e com os próprios governos para conseguir as facilidades de que necessitávamos. Tive de substituí-lo também nesse mister.
    
O dinheiro que levávamos começou a escassear e acabou de todo. Receber reforço do Brasil tornava-se cada vez mais difícil, porque as remessas teriam de passar pela Europa e esta continuava em guerra. Com a facilidade que sempre tive de fazer relações e amizades conseguia levantar algum crédito aqui e ali. Assim fomos nos mantendo.
    
A essa altura, no porto de Calcutá, não aparecia mais nenhum navio que pudesse trazer o nosso gado. A guerra se estendera por todos os mares. Soube, porém, através de uma família armênica com que eu tinha relações e cujo chefe negociava, em juta, que havia sido formada uma frota de navios japoneses para transportar essa fibra para o Brasil. Esses navios, com destino ao porto de Santos, tocariam Calcutá. Pus-me então em diligência para ver se poderia mandar, por essa via o gado que tinha na capital. A resposta foi sempre negativa. A finalidade única era o transporte de juta. Não havia lugar e nem condições para uma carga de gado. Entretanto disse-me alguém que talvez eu pudesse alugar o deck do navio. Mas esse, por ser a “casa de manobras”, pertencia ao capitão. Só ele poderia decidir qualquer coisa a respeito. Fiquei, pois, atento à espera do capitão.
    
Mas ele não concordou. O deck precisava estar livre. O gado seria uma carga por demais pesada e volumosa. Não havia condições. Além disso, no caso de uma tempestade, como sempre acontece no sul da África, na junção do Índico com o Atlântico, uma única onde poderia levar tudo de roldão, já que o deck é descoberto. E o seu piso também não agüentaria o peso. Não havia, pois, ali, o mínimo de estabilidade. Ofereci dinheiro. A quantia era ínfima, mas valia muito para aquela gente. Ele então me perguntou? “O senhor corre o risco?” E eu respondi? “Corro”.
    
Tratei então de criar as tais condições que o deck não oferecia. Mandei assoalhá-lo e cobri-lo de lona impermeável. Construi também baias, onde cada res ficaria amarrada, para maior segurança. Tudo isso foi feito de bambu, porque na Índia não existe madeira.     Assim veio a primeira partida de gado, das quatro que mandei. Todas elas em decks de navios japoneses. Nesse primeiro voltou meu primo Tavico supervisionando o tratamento de gado a bordo.
    
Numa outra, também como responsável, mandei um português de Goa –Bento Xavier da Silva. Veio um rapaz brasileiro que um dia encontrei chorando apoiado a um muro de Calcutá, faminto e sem dinheiro e que tomei sob minha proteção. Vieram alguns hindus para o serviço do gado, tendo eu assumido o compromisso de repatriá-los depois.
    
Na primeira partida incluí cinco vacas de raça. Gir, até então desconhecidas no Brasil na expectativa de que tivessem aceitação aqui. Realmente tiveram e eu recebi encomenda de mais alguns exemplares. Vendi então o “fundo” do gado Guzzerat que possuía lá e com o dinheiro comprei mais reses Gir. Foi daí, do cruzamento que se fez do gado Guzzerat com o Gir que se criou a raça Indubrasil hoje conhecida e afamada em todo o país.
    
A um certo tempo os navios japoneses de juta deixaram de tocar o porto de Calcutá. Passariam então por Tuticurim, ao sul da Índia. Tive de mandar o gado para lá de trem. Na última partida incluí um casal de búfalos, algumas cabras orelhudas que encontrei nas montanhas do Himalaia e alguns pavões.
    
Em todas as remessas o gado foi transportado legalmente. Os despachos eram feitos com todos os documentos e o frete pago devidamente.
    
Agora é preciso que se saiba? tudo isso foi possível graças a um senhor judeu que conheci em Calcutá e cuja lembrança até hoje me comove. Chamava-se Ezra. Fomos apresentados. Ele me convidou para jantar em sua casa. Fui. Conversamos muito. Interado da minha situação naquele país distante, isolado e sem dinheiro, cheio de compromissos, ele pediu para ver o meu gado. Levei-o, ele gostou muito. O gado que conhecia em Calcutá era completamente diferente. Continuamos conversando e ele me disse que era muito rico e estava disposto a emprestar-me o dinheiro de que eu precisasse.
    
Atordoado com essa inesperada generosidade ponderei que ele não me conhecia e eu não lhe poderia dar garantia alguma. Ele me respondeu que um rapaz da minha idade, que continuava lutando apesar de tantos contratempos é porque tinha fibra. E ele confiava plenamente em mim. Foi com esse dinheiro que eu resolvi os meus problemas na Índia.
    
Voltei para o Brasil em 1919, passando ainda pelo sul da África e a bordo de um navio japonês. O gado já tinha todo vindo, em quatro partidas. Mas eu não pudera regressar ainda por causa dos inúmeros compromissos assumidos lá e que precisava resolver, como de fato resolvi. Tinha também de coletar a  documentação necessária, minha e do João, para instruir uma petição que fiz ao governo brasileiro, pleiteando uma ajuda que havia sido prometida a quem importasse gado indiano. Esse auxilio acabou vindo, mas tal foi a burocracia. Tais as exigências dos intermediários, que não sobrou nada. Minha volta ao Brasil devia ser motivo de vitoria e alegria. Foi mesclada de tristeza. Já a bordo eu pensava como haveria de chegar sem o João? Como iria ser recebido pelos meus pais, especialmente pela minha mãe? Foi muito penoso.

Aqui encontrei meu pai e meu tio Otaviano envolvidos em uma demanda de vulto proposta pelo doutor Gabriel Orlando Teixeira Junqueira, presidente da Bolsa de Café de Santos, velho conhecido, contraparente e vizinho nosso, pois possuía uma fazenda em Conquista. Era seu sócio o doutor Anésio Teixeira do Amaral, capitalista em S. Paulo. Homem riquíssimo, fez com que contratassem como advogado, o doutor Vilaboim, um dos maiores causídicos do país e de grande prestigio, por ser líder na Câmara Federal. Diante disso, apesar de todos os prejuízos com que já contávamos, tivemos de tomar também um advogado de nome o doutor Alfredo Pujol.
    
Pleiteavam uma indenização por prejuízos referentes ao frete do gado vindo da Índia. Uma das levas foi embargada no porto de Santos, acarretando muita despesa e trabalho para levantar o embargo. A contenda se arrastou por anos seguidos, trazendo prejuízos, aborrecimentos animosidade e rancores.
    
Em 1924 ou 25, graças a uma outra demanda, também pôr indenização de prejuízos, desta vez proposta pôr meu pai contra o doutor Gabriel e seu irmão Antônio, pela queima por displicência, de nossa fazenda em Conquista, foi proposto e realizado um acordo geral, compensando-se as mutuas pretensões e arquivando-se os processos.

De tudo isso, de toda essa odisséia que foi minha viagem a Índia, como maior cabedal alcançando, ficou uma grande experiência. Experiência e desilusão. Lucro material não houve. Nem poderia haver em tais circunstancias. Contudo, no cômputo geral, deve Ter valido a pena. “Viver é lutar”- disse o poeta.