Ingratidão

 

Cilas Emílio de Oliveira

Vivíamos nas alturas desfrutando da imensa gloria, cercados por criaturas angelicais, as quais dedicavam-nos todas as honras em forma de louvores e adoração. Nosso Pai, o Soberano, concebia maravilhosos projetos com sua tremenda sabedoria e mos entregava para que fossem executados. Lembramo-nos de quando nada havia, somente nosso Espírito pairando sobre a imensidão. Foi quando tivemos que começar do nada para fazer tudo. O magnífico Poder que dominava sobre tudo que criávamos, dispunha os corpos celestes, os elementos fluídos, a terra, os seres viventes e os inanimados, cada um no seu devido lugar. Tivemos muito trabalho mas valeu à pena. À medida em que íamos criando tudo que existe, dotávamos nossa criação de vida e leis que iriam reger seus movimentos eternamente pela mão de meu Pai. Tudo era esplendor. Em nossa habitação havia a mais perfeita harmonia e a mais expressiva unidade, a ponto de formarmos um único "Todo". Nós, nosso Pai, e nosso Espírito, sempre fomos e seremos o Mesmo pelos séculos dos séculos.

Numa época determinada por nosso Pai, num passado bem remoto, quis a Vontade Soberana criar um ser que tivesse muito de nós. Assim foi criado alguém com nossas características, recebendo essa espécie a denominação de homem. Providenciamos um verdadeiro paraíso para que essa criatura pudesse ter atividades, através delas glorificar nosso nome. Querendo quebrar a harmonia, um de nossos adoradores rebelou-se em nosso meio tomando atitudes orgulhosas. Com ele insuflaram-se outros, provocando uma guerra renhida. Não tivemos outra alternativa senão lança-los de nossa presença. Infelizmente caíram sobre a terra provocando grande confusão. Talvez por vingança, o maioral dessa turba rebelde incutiu na mente de nossa criatura para que desobedecesse as determinações divinas. Esse gesto de transgressão fez com que o ser humano perdesse sua paternidade espiritual e sua condição de filho que era, continuando apenas criatura, desprovido das benesses inerente à nossa condição.

Nosso Pai, depositário do profundo amor, amava muito essa criatura a ponto de providenciar um recurso bastante extremo para recupera-la. Seria um gesto que aplacasse Sua ira e indignação pelo terrível acontecimento. Resolveu enviar seu Representante para desempenhar a difícil tarefa de adotar o pródigo, reconduzindo-o a ser novamente um dos nossos. Fomos escolhidos por sermos da mesma essência de nosso Pai. Outro certamente não poderia desempenhar essa função.

Deixamos nosso lugar de gloria. O convívio de nosso Pai, os anjos que glorificavam nosso nome e uma esfera deliciosamente espiritual. Nosso Espírito transportou-nos a um ambiente extremamente diferente de nossa casa paterna. Metamorfoseou-nos, transmudando-nos em criatura humana, tudo para relacionar-nos com ela. De Espírito vivente passamos a ter um corpo, corpo de homem sujeito a uma série de fatores estranhos à nossa condição primeira. Esvaziamo-nos de nossas qualidades para adquirir forma e substâncias alheias ao nosso ser espiritual. Recebendo um invólucro que envolveu nosso ser, fomos colocados em choque com forças antagônicas que fizeram o nosso dia-a-dia. Desde os momentos em que começamos a nos sentir participante da esfera terrestre, quando ainda criança, a incompreensão por parte de nossos "iguais" era a tônica do antagonismo, situação esta que perdurou ao longo de nossa missão. No cumprimento de nossas tarefas, sentíamos quase como um intruso em um ambiente levedado pelos fermentos das mazelas humanas. Elementos de vida irregular estiveram conosco, seguindo-nos ao longo de nossa jornada. Vezes sem conta os mandatários censuravam-nos por identificar-nos com essa gente, a ponto de sermos considerados beberrões, comilões, imundos e até asseclas de demônios. Na proporção em que nosso trabalho se desenvolvia, crescia as aversões em torno de nossa pessoa. Também aumentava nossa ansiedade por não sermos compreendidos. Como éramos esperados na condição de um monarca, foi grande a decepção de nosso povo ao ver-nos cavalgando uma cria de jumenta. Durante o curto tempo de nosso ministério, passamos por toda sorte de humilhação, sendo contraditados em relação à nossa origem. Jamais fomos aceitos como unigênito filho de nosso Pai. As situações criadas em decorrência de nossa postura ocasionou uma série de fatores contraditórios que nos levaram às barras dos tribunais. Os governantes consideravam-nos usurpadores e que nosso carisma com o povo poria em risco seus domínios. Era grande o contingente de interessados que se faziam em nossos passos. Demos pão a essa gente. Curamos a todos de suas enfermidades. Expelimos castas de demônios, no entanto a maioria não quis nada com nossa mensagem. Não entendiam. Só laboravam pelo pão que perece.

Vagarosamente a hora crítica aproximava-se. Com ela crescia nossa agonia a ponto de nosso suor transformar-se em gotas de sangue. Esse mesmo sangue que mais tarde iria ser derramado por todos os componentes da espécie humana. Sangue que seria o preço da desobediência da obra prima da criação de nosso Pai. Traição! Eis que deparamo-nos com esse tremendo golpe. Isso magoou-nos profundamente, mais que as bofetadas que receberíamos próximo à hora crucial. Quantas vezes esforçamo-nos para sermos amigo desse ignóbil ser, a quem perdoamos. Ensinamo-lhe o verdadeiro caminho, tendo inúmeras vezes "comido do nosso prato e no entanto virou o calcanhar contra nós". A maior ironia disso tudo foi o preço estipulado para o filho do carpinteiro: trinta moedas de prata!

O Gôlgota já se divisa ao longe. Nosso tormento aproxima-se rapidamente. Com ele todo o peso da mácula de milhões de seres humanos, estando a maioria distanciada das diretrizes que nosso Pai insistiu fossem anunciadas. Noites de tormento, momentos de solidão quando nossos assistentes deixam-nos a sós com os adoradores do deus fálico. Negação! Mais um gesto de exceção, de quem prometeu ir conosco até à morte. Só. Somente só. Ninguém dos nossos disposto a presenciar nossa coroação. O prêmio do escárnio, da zombaria, rematado com uma coroa espinhosa, símbolo de um monarca sem trono. Angustiamo-nos. Até na sede, uma de nossas companheiras, acharam motivo para nossa tortura. Pai. Ó aba Pai! Sentimo-nos desamparados. O zorrague do algoz a dilacerar nossas carnes.

Trilha sangrenta, vereda que percorremos, moídos a sentir o torpor da morte. Pesado madeiro, clemência distante. Açoites desnudam-nos a espinha arquejante, enfraquecida. A um bom "samaritano" no meio da turba, ordenam-lhe que nos ajude a suportar e a carregar o instrumento de nosso suplício. Choros, lamentos e indignações são as oferendas ao nosso epitáfio. Pelo menos nossa "via crucis" demonstrou que o pecado não conseguiu extirpar do ser humano alguns sentimentos doados por nosso Pai. Alguém ainda chora. Ainda não estão mortas as virtudes no âmago de nossos irmãos. Prenuncia nosso requiem.

Estamos no lugar das caveiras. Nosso último aposento enquanto nos resta um pouquinho das forças que se esvaem. Que fizemos para recebermos tantos contratempos? Já que não fomos nós, alguns ou muitos o fizeram. Vislumbramos da fatídica colina a velha Jerusalém. Sob a penumbra do dia que se esvai juntamente conosco, só podemos divisar os píncaros do templo onde, até ali, vimo-nos contrariados.

Estamos feridos, imprimidos pelos grampos contra o madeiro, tendo uma dor tão intensa, somada àquela que sentimos há muito pelos semelhantes que nos desprezam. Esta, porém, ultrapassa a estádios, ferindo nossa alma quase desfalecida. Tirantes são içados sustentando o "horizonte" com nossos braços cravados. Apontando para o solo, a haste vertical serve de guia ao nosso sangue que escorre. Sangue, pouco sangue, acham. Ferem-nos ao lado para que saia mais sangue.

Decepção! Não há mais carmesim. Fôra todo derramado em sacrifício, transformado no mistério que redime, que purifica e justifica a todos que o solvem. Nossos companheiros de suplício são as únicas sombras que divisamos a nossos flancos. Mesmo esvaindo-se nossas forças, dispensamos nossos últimos gestos de corpo vivente: "hoje estarás comigo no paraíso... Pai, em tuas mãos entregamos nosso espírito..."

...Voltamos à vida e ser a Vida. Não tentamos deter nossa Vida fluídica, o Pneuma englobado sob a Trindade Augusta. Estamos novamente na casa paterna, junto a nosso Pai. As lembranças nos ocorrem, não as podemos evitar. Junto às lembranças, as conjeturas envolvem nosso pensamento. Recordamos nosso crucial sofrimento e a razão de tudo isto ter se verificado conosco. Antes da fundação do mundo estávamos cientes de que tudo iria ocorrer num determinado tempo. Podemos enumerar numa ordem quase cronológica: Saímos de nossa esfera, passamos a um estágio diferente e longínquo, padecemos, vertemos nosso sangue em benefício dos habitantes desse lugar, morremos a exemplo de todos os mortais. Ressuscitamos. Esse gesto propicia, a qualquer tempo, condição a que nossos irmãos venham para onde estamos agora. Continuamos a interceder pelos que foram chamados e que passaram a ser nossos irmãos, "bebendo" espiritualmente nosso sangue através da fé. Ante tudo que passamos, resta-nos uma indignação contra uma grande parte da espécie humana. Não obstante havermos cumprido todas as determinações de nosso Pai; termos aberto o caminho da vida eterna, colocando-nos na condição de único Mediador entre nosso Pai e os homens – de fato fora de nós não há como se chegar ao Pai – para que todos viessem a se tornar novamente filhos de nosso Pai; continuamos a presenciar a grande parcela da humanidade substituindo-nos por outros seres, ou até mesmo por objetos. Colocam falsos mediadores, co-redentores, delegando nossas funções a eles. O que é pior, sem nossa autorização. Jamais demos margem a que adicionassem quaisquer elementos "usurpando" tarefas reservadas à nossa pessoa. Nessa empreitada somos o Único.

No patamar em que nos encontramos, onde tudo está envolvido por uma atmosfera de resplendor e glória, custa-nos aceitar o fato de que nosso sacrifício (parece) não tenha sido suficiente. Com as adições de pseudos senhores, procuram dar a entender que nosso sangue não tenha o substancial valor para purificar os que se chegam a nós. Até parece que todo o poder que o Pai nos deu tenha-se enfraquecido, a ponto de os humanos clamarem a alguém, e este nos passar o recado. Estaríamos porventura, surdos, necessitando de uma "sentinela avançada" para fazer chegar até nós os apelos da terra? Não somos, porventura, onipotentes?

Que ingratidão! A semeadura fizemos nós. Na colheita os "ceifeiros" são outros. Realmente estamos indignados! Quem padeceu? Quem verteu seu sangue inocente como de um tenro cordeiro? Antes disso, quem foi que deixou as alturas por amor dos insubordinados e recalcitrantes? Por ventura não fomos nós? Causa-nos profunda tristeza ao saber que fizemos tudo pelo povo ingrato, e no entanto outros seres, os quais nós os amamos e que até necessitaram de nossa salvação, estão recebendo louvores, honra e até adorações em nosso lugar. O pior de tudo é que até objetos ou coisas tomam o nosso lugar quando apelam para a fé. Tem sido mais fácil depositar fé numa relíquia, num punhado de ossos de alguns de nossos servos do passado, num copo d’água, numa rosa mística, num torrão por onde pisamos, que propriamente em nosso nome. Nossa cotação, a julgar pelas atitudes arbitrárias, anda muito baixa! Quem mudou? Podemos garantir que não fomos nós!

Desde remotas eras, desde quando o primeiro representante da raça humana pisou em falso, vimos nosso Pai lutando com esse povo de dura cerviz. Até hoje é visível substituírem nosso santo nome por deuses pagãos. Se não soubéssemos com antecedência que seria assim, poderíamos sentir-nos inúteis. Será que o filho unigênito do Criador continuará perdendo para seres ou coisas que nada têm a ver com as funções Dele? Não, ele não perde! Quem perde são os que O substituem.

Aqui de cima observamos as atitudes dos povos que se dizem nossos. Vemos que não valorizam o que fizemos por eles. A grande parcela não quer nada com a vida eterna que somente nós podemos dar. Muito menos crer em nós. Uma outra parte dispensa-nos e se apega aos elementos da natureza que tão sabiamente colocamos no universo para servir aos humanos. Que dizer daqueles que, por não terem fé, carecem de figuras materiais que nos representem, ou que representem algumas falsas divindades? Somente poucos têm-nos em conta, tal e qual somos e representamos para os pecadores. Temos suficiência para tratar de assuntos relacionados a eles e a nosso Pai. Somos o "Caminho, a Verdade e a Vida", o único Mediador. Somos Jesus Cristo, o Salvador.


Fonte:Cilas Emílio de Oliveira
E-mail: ceoscar@uol.com.br

By Diego & Priscila

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