ELEGIA Ganhei (perdi) meu dia. E baixa a coisa fria também chamada noite, e o frio ao frio em bruma se entrelaçam, num suspiro. E me pergunto e me respiro na fuga deste dia que era mil para mim que esperava, os grandes sóis violentos, me sentia tão rico deste dia e lá se foi secreto, ao serro frio. Perdi minha alma à flor do dia ou já perdera bem antes sua vaga pedraria ? Mas quando me perdi, se estou perdido antes de haver nascido e me nasci votado à perda de frutos que não tenho nem colhia ? Gastei meu dia. Nele me perdi. De tantas perdas uma clara via por certo se abriria de mim a mim, estrela fria. As arvores lá fora se meditam. O inverno é quente em mim, que o estou berçando e em mim vai derretendo este torrão de sal que está chorando. Ah, chega de lamento e versos ditos ao ouvido de alguém sem rosto e sem justiça, ao ouvido do muro, ao liso ouvido gotejante de uma piscina que não sabe o tempo, e fia seu tapete de água, distraída. E vou me recolher ao cofre de fantasmas, que a notícia de perdidos lá não chegue nem açule os olhos policiais do amor-vigia. Não me procurem que me perdi eu mesmo como os homens se matam, e as enguias à loca se recolhem, na água fria. Dia, espelho de projeto não vivido, e contudo viver era tão flamas na promessa dos deuses; e é tão ríspido em meio aos oratórios já vazios em que a alma barroca tenta confortar-se mas só vislumbra o frio noutro frio. Meu Deus, essência estranha ao vaso que me sinto, ou forma vã, pois que, eu essência, não habito vossa arquitetura imerecida; meu Deus e meu conflito, nem vos dou conta de mim nem desafio as garras inefáveis: eis que assisto a meu desmonte palmo a palmo e não me aflijo de me tornar planície em que já pisam servos e bois e militares em serviço da sombra, e uma criança que o tempo novo me anuncia e nega. Terra a que me inclino sob o frio de minha testa que se alonga, e sinto mais presente quando aspiro em ti o fumo antigo dos parentes, minha terra, me tens; e teu cativo passeias brandamente como ao que vai morrer se estende a vista de espaços luminosos, intocáveis: em mim o que resiste são teus poros. E sou meu próprio frio que me fecho Corto o frio da folha. Sou teu frio. E sou meu próprio frio que me fecho longe do amor desabitado e líquido, amor em que me amaram, me feriram sete vezes por dia em sete dias de sete vidas de ouro, amor, fonte de eterno frio, minha pena deserta, ao fim de março, amor, quem contaria ? E já não sei se é jogo, ou se poesia. Carlos Drummond de Andrade
ELEGIA 1938 Trabalhas sem alegria para um mundo caduco, onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo. Praticas laboriosamente os gestos universais, sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual. Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas, e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção. A noite, se neblina, abre guarda-chuvas de bronze ou recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas. Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer. Mas o terrível despertar prova a existëncia da Grande Máquina e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras. Caminhas entre mortos e com eles conversas sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito. A literatura estragou tuas melhores horas de amor. Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear. Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota e adiar para outro século a felicidade coletiva. Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan. Carlos Drummond de Andrade
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