|
A
pior coisa que poderia ter me acontecido foi aquela herança. Cinco herdeiros
engalfinharam-se pela posse de três fazendas. Meu advogado, excelente
espírita, fez o que pode. Mas foi insuficiente, e tive de apelar ao Ministério
da Justiça. Isto num tempo que não volta mais e o Ministério da Justiça
tinha um piano que ninguém tocava, posteriormente dezenas de sacos de
pedras semi preciosas que o ministro guardava. Hoje, o ministério é comandado
pôr um democrata, para mostrar a evolução do piano intocado, na epopéia
da Ditadura.
Mas afinal, pôr invios caminhos recebi uma fazenda. Foi demais para um
poeta. Não sabia o que fazer com produção de laranjas, sequer sabia quantas
laranjas produzia um pé. Sei la. Como ia la saber? Me apareceu uma empregada
na hora certa, pois o casarão estava um pandemônio. Ela colocou cada coisa
no seu lugar. Tinha brios de decoradora. Berenice era seu nome. Alta,
forte,descendente de italianos e bugres, não temia trabalho. Cozinhava
muito bem. Fazia uma combinação de comida italiana com pratos caipiras
inesquecíveis. Mais, tinha a qualidade de não tocar no meu escritório,
que chamava de santuário. Respeitava minhas letras, poucas, com reverencia,
pois o seu pai fora artista também. E que mulher, não guarda boa lembrança
do pai? Assim falava Freud.
Berê não tinha defeitos. Católica fervorosa, não faltava a missa, e no
seu quartinho, pendurava as paredes um belo retrato de Nossa Senhora das
Graças, e no criado mudo uma imagem de Santo Antonio. Sua devoção. Tinha
uma falha, apenas. Não escovava os dentes de jeito nenhum. Parecia sempre
que tinha acabado de comer meia dúzia de ovos. Os dentes eram amarelados...
emplastados. O hálito cavernoso. Berenice vendo a minha aflição diante
das laranjas que despencavam e do mato que crescia, teve uma idéia.
-Don Antônio, conheço um ótimo capataz. Irmão do marido de minha irmã.
Veio da Argentina e entende de agricultura.
Era a solução. No dia seguinte Juan começou a trabalhar e a comandar os
dois caboclos que puxavam enxada. Pós o velho trator a funcionar, atrelou
a roçadeira, depois a grade, e, aos poucos , a fazenda foi tomando jeito.
Mais, conseguiu aos poucos colocar na Ceagesp a produção de laranja, de
forma que se eu não lucrava - pelo menos não perdia. Mas a fazenda foi
crescendo. Ele tinha jeito. Viveiro de galinhas caipiras. Viveiro de plantas
medicinais. E pôr fim, alegria das alegrias, uma parreiral que me dava
ótimas uvas, e uma vez ao ano um tonel de vinho tinto. Era o céu puro.
Um dia vi Berenice triste. Chamei-a a biblioteca, oramos juntos, e pedi
a ela que me contasse o motivo de sua tristeza.
- E' amor demais, para o meu coração.
- Você ama.?
- Mas ele não me quer. Sofro.
- Ele quem?
- Juan.Amo demais Juan.
Oramos juntos novamente e fiquei a meditar.
Dias depois foi Juan que veio me procurar.
- Don Antônio, me desculpe, mas preciso ir a Piracicaba, à Escola agrícola
uma vez pôr semana. Estou estudando sobre bananas.
- Para plantar aqui?
- Não. Só para fazer o curso.
- Esta bom. Use a Rural.
- Obrigado
- E Bere?
-Como?
- Não a quer ? - perguntei.
- Querer eu quero. Mas aquele mau hálito... Tenho o estômago fraco. No
resto gosto dela.
- Vou dar um jeito nisto. Conheço o remédio. - prometi
E fiquei com a promessa . Sem saber o que fazer.
No outro dia algum anjo passante , me sussurrou no ouvido uma solução.
Fui a Igreja dos Frades Franciscanos e procurei um frade alquimista, muito
amigo. Contei o caso. E disse que precisava que ele somente me benzesse
uma garrafa de agua, na frente de Bere.
-
Fácil. Só um litro?
- Acho que da.
No outro dia procurei Bere.
- Berê, um frade me ensinou uma simpatia para você conseguir o amor de
Juan.
- Oh! meu Deus!
- Simples. Você vai a igreja comigo, e ele vai benzer um litro de água.
Você usa meio copo pôr dia, e escova os dentes com aquela água. Depois
de algum tempo esta casada.
Assim fizemos. Fomos a Igreja de São Francisco, o bom Frade, benzeu o
litro, e Berê passou a escovar os dentes todos os dias.
Dentro de três meses estava casada. Perdi a empregada, o capataz e vendi
a fazenda, que já estava enchendo o saco. Pensei que tudo tinha terminado
ai. Estava na minha poesia - pois o resto é prosa. Mas a prosa da vida
demonstrou quanto é surpreendente. Soube que Berê e Juan compraram uma
pequena fazenda em Registro. E ele passara a plantar bananas.
Me
contaram que não vendeu sequer uma penca. Importara da Suíça um desidratador.
A banana depois de uma semana de estufa, era processada na maquina de
desidratar. Quando todo o caldo escorria da banana, e ela ficava uma cenoura
seca, passava por um moedor industrial Assim inventou JuanPó - a banana
em pó, que imediatamente foi acolhido como suplemente alimentar dos escolares,
dos esportistas e das famílias inteligentes.Ele acrescentou uma enzima
natural que tornou seu alimento famoso. Reconhecido pôr todos os órgãos
de saúde e vendido no mundo inteiro.
A fazenda aumentou. Ele construiu uma mansão. E como Berê não lhe deu
filhos, passava o tempo a mima-la de presentes e viagens. Conheceram Paris,e
outros lugares da Europa. Mas Bere, me disseram, atribuía a falta de filhos
a fraqueza de JuanPó. Para se enamorar do capataz da Fazenda, foi um passo.
Ficar gravida dois passos. Fugir com ele o passo seguinte. Um dia JuanPó
me procurou. Nunca, vi um homem chorar tanto. Indiferente ao choro das
mulheres, pois não passam de armadilha, o choro convulsivo, em cataratas
de lagrimas, de JuanPó, partia da alma e transbordava face abaixo. Pingava
e pingava.
E
ele soluçava... e chamava por Berê - e eu pensava que ela devia estar
invadindo alguma fazenda.
Que poderia fazer.?
Oramos juntos apenas. Rogando a Misericórdia de Deus.
Vim saber, dias depois, que Berê teve um filho com o capataz. Que foi
oficialmente batizado na Igreja de S. Francisco, com todos os rituais
comunistas da Teologia da Libertação.
Parece que este ritual libertou definitivamente o casal. Berê e o capataz.
Meteram o pé na estrada. Foram se homiziar num Sindicato. Receberam doutrinação
marxista. Foram a Cuba, onde o próprio Fidel abraçou-os publicamente,
como "libertadores do povo brasileiro oprimido". Depois de visitarem a
praia da Cura de Vetiligo cubana, ficaram no melhor hotel e foram semanas
e semanas insones de doutrinação.
Quando voltaram meteram o pé na estrada. Se juntaram a outros do movimento
dos Sem Terra. Ficaram quinze dias em frente da fazenda do presidente
- para treinamento. Depois passaram a invasão de verdade.
De repente Berê se tornou uma líder. Era carismática. Sabia tudo - já
que no comunismo a verdade é mero detalhe capitalista. Fazia tudo. Dirigia
caminhões, armava barracas, e chutava o pau de muitas barracas.
Virou
capa da mídia. Dai foi visitar o Maluf e pediu dois caminhões de compensados,
para fazer casas de invasores Tinham de invadir a fazenda do Klabin. Maluf
cedeu de imediato. Mal os caminhões saíram, fez um seguro da carga e telefonou
ao Klabin, no Paraná. Na fronteira a polícia estava a espera. A ordem
do comando era, MST aqui não. Os movimentários entraram no pau ali mesmo,
e não se sabe quem, ateou fogo nos compensados.
Assim queimou o sonho da invasão das terras do Klabin.
Um dia, saindo do mosteiro de São bento, encontrei a Berê, que vinha de
um encontro com a Marta Suplici. Veio me abraçando logo e convidando a
entrar no movimento.
-Só se for no movimento dos sem-poemas.
- Não brinque, Don Antônio, o Brasil é grande.
-Não gosto de terras. Se tivesse um movimento dos sem Rolls Royce entrava.
Adoro este carro.
-
Beleza,roube um ! - me aconselhou ao ouvido.
Dai senti as entranhas do inferno. Olhei os dentes dela. Como dantes.
Empastelados, sujos, verdes, e o mau hálito eram tanto que parecia vermelho.
- Berê,. se você quiser arrumo outra garrafa de água benta... - sugeri.
- Nunca - disse resoluta - A religião é ópio do povo.
Don Antônio Maragno Lacerda
Prêmio UNESCO/literatura
|