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Reportagem


Nas mãos de Deus...
...há 120 anos
Nada mudou na seca do Nordeste desde que José do Patrocínio chocou o Império com seus relatos sobre a fome




1998 - Saques para matar a fome, briga pol&iacte;tica e falta de iniciativa do governo federal

LUIZA VILLAMÉA E ANDRÉ DUSEK (FOTOS), DE IRAUÇUBA (CE)

"A tragedia da vergonha nacional, representada no Ceará, tem por scenário todo o vasto territorio da desventurada provincia."

 

Com pelo menos um quarto de sua população no limite da miséria, desde que a seca destruiu as culturas de subsistência, o Ceará parece ter entrado no túnel do tempo. Está cada vez mais parecido com a descrição acima, feita por José do Patrocínio, em agosto de 1878, no auge da pior seca da história do Estado. Cento e vinte anos atrás, o escritor e jornalista carioca estremeceu o Império com uma série de artigos despachados de Fortaleza, para onde fora enviado, em um navio, pelo jornal Gazeta de Notícias. Seus relatos sobre a tragédia provocada pelo clima e pelo descaso governamental (trechos dos artigos de José do Patrocínio estão reproduzidos em destaque nesta reportagem) ganharam ainda mais impacto depois que a revista O Besouro estampou imagens registradas pelo fotógrafo J.A. Corrêa, cujas cópias foram encontradas em 1993 e preservadas pela Divisão de Iconografia da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.


Foto: J.A.CORRÊA

1878 - Na pior seca da história, metade da população do Ceará morre sem comida

Desde a grande seca do século passado, o cearense enfrenta ciclicamente a falta de chuvas. O que varia é a dimensão do drama. Aos 106 anos, Manoel Carlos Vasconcelos sobreviveu há muitas delas, sem arredar o pé do vilarejo onde nasceu – Bueno, no município de Irauçuba, uma das regiões mais áridas do Estado. Neste século, ele considerou como mais avassaladoras as de 1915, 1919 e 1932. Alquebrado pela idade, hoje Manoel Carlos praticamente não se comunica, mas sua filha Maria, 65 anos, lembra bem dos comentários feitos pelo pai. "Ele dizia que o povo não tinha costume com a seca, se desesperava logo e ganhava o mundo", diz Maria.

Nascido 14 anos depois da seca de 1878, Manoel Carlos também recontou para a filha as histórias que ouvia do pai. "Naquele tempo, o dinheiro perdeu o valor porque não tinha nada para comprar. Antes de pegar a estrada, o pessoal enterrava botijas com moedas de ouro, prata e cobre." Muitos não voltaram. Em Bueno, corre a lenda de que pessoas abençoadas pela sorte foram avisadas em sonhos da localização de algumas botijas. De concreto, sabe-se que um morador já falecido, Domingos Mota, encontrou uma botija de ouro nos anos 30 e melhorou de vida. Um ferreiro aposentado, Francisco Rodrigues, 80 anos, garante ter encontrado cinco moedas de prata numa escavação feita por outro morador. "O dono deve ter morrido", deduz. Estima-se que a metade da população do Estado tenha sucumbido à seca de 1878, quando Fortaleza se tornou a meca dos flagelados.

"Expulsos das suas moradas pelo latego entraçado pela natureza com os raios do sol, o destino dos desgraçados é a perigrinação pela terra natal até encontrarem uma cidade, em que vão adiando miseravelmente o desapparecimento no tumulo."

Hoje não há peregrinos em massa pelas estradas, mas casas continuam sendo abandonadas. Pai de sete filhos, Antônio Mesquita Lopes, 43 anos, está prestes a deixar a casa onde mora há quase duas décadas, em um trecho do Maciço do Uruburetama conhecido como Serrote Seco. Enquanto constrói sozinho uma habitação de pau-a-pique em um "terreno do santo" – cedido pela Igreja – na vila Missí, a 18 quilômetros de Irauçuba, os filhos mais velhos cuidam da sobrevivência da família. "O olho-d’água fica dois quilômetros serra acima e, para comer, os meninos têm que se virar no mato", conta. "O peixe é muito pouco, o jeito é pegar preá e comer com uma mão de farinha."


Foto: J.A.CORRÊA

1878 - "É convicção geral que o cearense apenas põe a mão no que é alheio, quando já não lhe é possível

José do Patrocínio

na Gazeta de Notícias

Seguindo a mesma trilha já percorrida por 15 das 65 famílias que vivem naquele pedaço do Maciço do Uruburetama, Antônio pretende descer a mulher, Maria Irene, e os filhos assim que a casa nova ficar pronta. "Se o poço de Missí não fracassar, a vida melhora", explica. "Aqui também tem muita gente passando necessidade, mas pode aparecer uma frente de serviço." Foi justamente para se alistar para o trabalho emergencial de construção de barragens e outras benfeitorias, a troco de um salário mínimo por mês, que cerca de 300 trabalhadores rurais acamparam diante da prefeitura da cidade Miraíma, no norte do Estado. Este tipo de ação, que já culminou em 12 saques em menos de 20 dias, está pipocando por todo o Estado.

Em Canindé, no sertão central, mais de duas mil pessoas conseguiram se cadastrar, depois de cercar a prefeitura por sete dias. O trabalho ainda não começou, mas os homens já voltaram para suas roças destruídas, com a garantia de, em breve, minimizar a penúria. As perspectivas em Miraíma, no entanto, não são animadoras. A prefeita, a tucana Mazé Braga, recusa-se a negociar com os trabalhadores. Em contrapartida, a maior parte dos comerciantes locais apóia a forma de pressão adotada pelos flagelados, que atuam em sintonia com o MST. "Conheço de perto todas aquelas pessoas", justifica Pedro Eunardes Fraga Lima, dono de um dos maiores armazéns da cidade. "Nos períodos normais, eles são nossos clientes. Não faz sentido dar as costas em um momento desesperador como este."

"É convicção geral que o cearense apenas põe a mão no que é alheio, quando já não lhe é possível disfarçar a fome. Antes, porém, de chegar a este extremo aviltante, a miseravel gente não recua diante dos maiores sacrificios. Sujeitam-se ao trabalho pelo salario de cento e vinte réis diarios, e até unicamente pela comida."

Como na pior seca do século passado, a estiagem de 1998 começou com um ano de antecedência. "No derradeiro inverno, quase não choveu e colhi só um pouquinho de milho e feijão", diz Francisco Bernardo Santos, 50 anos, referindo-se ao período das chuvas na região, de janeiro a maio. "Neste inverno, já plantei o milho duas vezes. O feijão também morreu e não tem como semear de novo." O agricultor, que vive com a mulher e três filhos, no assentamento Nova Conquista, nas imediações de Canindé, conta que já ficou sem alimentos em outros períodos de sua vida. "A fome quando é perversa faz a gente ver coisas", lembra. "De tanta fraqueza, já vi molequinhos saltando na minha frente. Não quero isso para os meus filhos."




Manoel Carlos e a filha Maria, um século de secas

Sobreviver às intempéries com o estômago vazio também não é novidade para Raimunda Lucimar Ferreira, 62 anos. Junto com oito pessoas de sua família, Raimunda resiste à seca em Açude, um povoado do semi-árido, que recebeu este nome por causa de uma obra construída na época do Império. "O problema é que agora o pote d’água está seco o tempo todo", reclama. "Queria mesmo era voltar para São Paulo, onde morei dois anos, mas deixei porque meu marido não se aclimatou." Na vila mais próxima, Feijão, vive Terezinha Marques, 34 anos, com o marido, Francisco, e dois filhos pequenos. Como todos os cearenses que dependem da agricultura de subsistência, ela viu a plantação deste ano amarelar e secar sem que a chuva caísse. Cada vez mais escassa, a água do açude local começou a provocar tanta diarréia nas crianças que ela precisou viajar de carona para buscar socorro médico. "Fazia soro com a água do açude, mas não adiantava nada", lembra. Sem direito a nenhuma cesta básica e com o marido chegado à cachaça, Terezinha ainda não recebeu nenhum tostão, mas passou 15 dias trabalhando na perfuração de um poço em uma vila próxima à sua. "Por esses dias, vou sair de novo atrás de algum recurso", planeja.

"Moças, a quem a fome converteu os traços nítidos da bellesa em repelentes caricaturas, esfolhada pela desgraça e fina flôr do recato, deixando ver o collo moxibendo, d’onde pendem os seios em pleno relaxamento muscular, caminham pelas ruas, pedindo com o olhar, porque não ousam fazê-lo com a voz, um pouco de piedade para tamanho infortunio."

Com a mesma aparente tranquilidade de Terezinha, Edmar Pereira Mota, 35 anos, que vive a dez quilômetros de Feijão, mostra como se fosse um troféu o tatupeba recém-caçado que pretende manter fora da panela como reserva estratégica. "Tá difícil e vai ficar pior", comenta. "As cacimbas estão ficando cada vez mais fundas e a água cada vez mais rara", completa, referindo-se às escavações feitas nas imediações dos açudes transformados em manchas pantanosas.




Edmar com o tatupeba para comer na hora do aperto

"A seca começou a pegar desde o último inverno, mas um homem sozinho não pode fazer nada", afirma Edmar. "Já que o governo não fez nada antes, não adianta trazer só cesta básica. O que a gente precisa é trabalho, para comprar com o próprio dinheiro a comida que a terra não deu", defende Francisco Custódio, 31 anos, um dos acampados de Miraíma. Batizada de seca verde, por preservar a vegetação nativa, mas destruir as plantações feitas pelo homem, a estiagem de 1998 estava na agenda dos institutos de meteorologia e era apontada como uma decorrência praticamente inevitável do fenômeno El Niño. Por mais que as autoridades federais, estaduais e municipais queiram negar, nenhuma ação preventiva foi adotada para amenizar a ação da natureza. Não por coincidência, foi assim também no século passado, conforme relatou José do Patrocínio no sábado 7 de setembro de 1878.

"Sabe-se que uma interpellação foi feita ao ministro do imperio e que este, segundo a praxe, prometteu dar providencias. Depois a propria deputação cearense concordou com o governo em que não eram desesperadoras as condicções da provincia, e que se não era dispensavel soccorre-la era racional esperar que as proprias variações meteorologicas se incumbissem de resolver o problema, visto como só em junho se poderia definitiva e certamente dizer se haveria ou não inverno."

Na quarta-feira 6 de maio de 1998, de black-tie, em uma recepção oferecida ao presidente da Índia, Kocheril Raman Narayanan, o presidente Fernando Henrique Cardoso disse: "O problema da seca depende de Deus, do tempo, da chuva."




Raimunda e o açude de água contaminada




Fonte:

Revista Istoé/13 de maio de 1998/SITE:www.zaz.com.br/istoe/politica/149326.htm