elenafilatova.com

elenafilatova.com

Últimas Pessoas

Neste mundo, é apenas natural que as pessoas nasçam e que as pessoas morram. Todos o sabemos, mesmo que disso não gostemos. É como num hotel onde os hóspedes chegam, e de onde os hóspedes partem. Mas Chernobyl é diferente de qualquer outro lugar que já tenha visto. Em todas as viagens que lá fiz, nunca vi ninguém a chegar: só os vi a partir. E este tapete rolante de morte mexe-se muito depressa. Há alguns 15 ou 20 anos atrás conhecia muitas pessoas que viviam perto de Chernobyl, e outras que lá trabalhavam como guardas, guias, funcionários. Agora - de todos esses contactos - apenas resta um homem. Tem sido como ver uma máquina de morte em funcionamento.

last people 2018

Babooshkas numa qualquer aldeia da Bielorússia.

Em relação às minhas fotos dos anos 1990 não podia publicá-las sem autorização prévia das pessoas que nelas figuram. Tristemente, agora quase todos os que aparecem nestas fotos já partiram, portanto a permissão já não é um problema.

last people 2018

As pessoas raramente vivem separadamente perto de Chernobyl. Geralmente, duas ou três famílias juntam-se pela vizinhança. Esta idosa disse que os vizinhos tinham um problema de bebida, mas também que era melhor ter vizinhos bêbados que nenhuns.

last people 2018

Estes são os seus vizinhos. O nome desta mulher era Tamara. Era uma pessoa de elevada cultura e educação. Uma mulher pode dissipar a sua beleza em bebida, mas não a sua criação. Era difícil à Tamara deixar a vila onde o seu pai fora alguém. Ficou com o seu companheiro até ao fim das suas vidas, e recolhiam metal da sua vila natal para o trocar por vodka. Que queda andar a recolher metal da vila que o pai dela construiu!

Nas minhas idas a Chernobyl reparo frequentemente que muitos edifícios se tornam mais interessantes quando ficam em ruínas. O mesmo é verdade para algumas pessoas. A Tamara era uma ruína humana interessante. Nesta matéria verifica-se o apimentado paradoxo de a metade ser mais que o todo.

last people 2018

Algumas famílias conseguem manter-se juntas por muito tempo, mas quando as mágoas chegam, não chegam em ataques isolados, mas em batalhões... as pessoas partem uma depois da outra, como estas três mulheres. Faleceram todas num ano. O homem ainda vive sozinho numa qualquer vila fantasma.

last people 2018

Costumo ver essas pessoas como as que perderam o último comboio e agora têm que ficar para sempre na plataforma da estação.

last people 2018

Encontrei a maioria destas pessoas nas minhas viagens de mota. Seguia os cabos eléctricos que me levavam às suas casas. Mais tarde contaram-me que tiveram de arranjar esses cabos por si mesmos. O governo nunca os ajudou com nada. Nunca vieram Médicos vê-los. Se alguns parentes quisessem vir visitá-los, tinham frequentemente problemas a passar os postos de controlo. Vendo toda esta idiotice, decidi dar apoio a essas pessoas. Consegui recolher alguns fundos para lhes levar comida e as coisas de que mais precisavam. Não podia obter autorização oficial para fazer isso de uma maneira normal, portanto tive de viajar ilegalmente para lhes levar coisas. Andei a fazer isso durante 5 anos. Escondia-me nos arbustos como uma criminosa enquanto os contrabandistas de madeira e metal radioactivos recebiam acenos para atravessar os postos de controlo. Os seus camiões eram frequentemente escoltados pela polícia.

O autor do século 18 Chamfort escreveu numa ocasião - "em França é costumeiro deixar os incendiários em paz, mas acusar aqueles que fizeram soar o alarme." Em Chernobyl não só é costumeiro, como é regra estabelecida assim fazer. É porque o incendiário e o acusador pertencem ao mesmo corpo..

Essas experiências fizeram-me chegar ao entendimento de que uma das grandes desventuras do nosso mundo é que - mesmo quando queremos fazer algum bem - temos primeiro de procurar a permissão daqueles que somente produzem mal.

last people 2018

Poder-se-ão interrogar: o que mantém as pessoas em Chernobyl? Pelas minhas experiências ao visitá-las, acredito que é a esperança que as pessoas voltem a estes lugares abandonados. Ficaram todos à espera que tempos melhores voltassem. Em todas as línguas há esse ditado que diz que a esperança é a última a morrer. É verdade. Precisamos de esperança para viver tal como precisamos de oxigénio, mas em Chernobyl até a esperança se torna uma força tóxica e negativa..

last people 2018

Cada uma destas pessoas foi a última a viver no seu lugar, e nenhuma delas alguma vez acreditou que a sua vila iria morrer consigo. Todas me disseram que o governo lhes falhou. Pessoalmente penso que foram aldrabados pelo maior de todos os enganadores: a esperança. Foi a esperança que os seduziu para acreditarem no seu governo e esperar por tempos melhores.

last people 2018

Esta foto é do homem chamado Pavel e a mulher é a sua esposa chamada Nina. Encontrei-os numa vila fantasma. Por muitos anos a casa deles foi como uma base para mim: um lugar onde podia dormir, comer, tomar duche, fazer manutenção aos veículos e então continuar as minhas viagens através de Chernobyl. A porta da sua casa estava sempre aberta não importando quantas pessoas levava comigo, ou quanto tempo ficávamos.

Exposição à radiação, isolamento, e solidão nunca reduziram a sua bondade. Com os anos tornaram-se a minha família alargada..

last people 2018

Aqui está uma foto minha num daqueles momentos desconfortáveis em que a Nina nos tentava alimentar com um dos seus cozinhados. Para mim haviam dois problemas: primeiro, eu não como borsch; segundo, especialmente não quero comer borsch se for feito de vegetais radioactivos cultivados em Chernobyl. Para fazer a vontade à nossa anfitriã, todos tínhamos de agitar as colheres à volta do prato. O jardim deles estava medianamente contaminado com Plutónio mas havia muito Estrôncio e uma boa porção de Césio naquele borsch. Ingredientes especiais que estão presentes em toda a culinária de Chernobyl..

Infelizmente a bondade do Pavel e da Nina significava que a sua casa estava também aberta aos recolectores de metal, e esses fulanos desesperados traziam uma boa porção de radiação para o quintal de Pavel e Nina onde armazenavam metal recolhido. Por esses dias a recolha de metal em Chernobyl era uma grande indústria. Vejam o video da minha filha Um Cano de Escape Sobre Rossokha Mostra como esvaziaram o maior ferro-velho radioactivo de Chernobyl.

Os tipos da sucata de metal nunca tiveram contadores geiger. Bebiam, dormiam e recolhiam metal na mesma roupa. Os que desenterravam sucata de metal de ferro-velhos eram extremamente radioactivos. Tinham partículas quentes do núcleo do reactor na roupa e mãos. Se lhes emprestávamos o telefone ou o carro podíamos dizer-lhes adeus. Tudo em que tocavam ficava contaminado. A esperança de vida dos sucateiros era a mais baixa na zona. O Pavel contou-me que não conhecia ninguém que tivesse recolhido metal por mais que dois anos. Para eles o castigo vinha incluído no crime. A máquina de morte trabalhava em acelerado com estes tipos. Chamávamos-lhes os mortos andantes.

last people 2018

Nesta foto a Nina está a fazer panquecas. Quando estávamos sentados à noite na cozinha com chá, panquecas, e televisão, sentíamos que tudo estava bem. Os serões eram caracterizados por coisas habituais como conversa de aldeia, discussão sobre reparações na casa, e sempre planos para no ano seguinte criar um porco e galinhas... num ou outro ano construíam um novo barracão... constrói-se sempre a vida em fundações largas nas aldeias. Sentíamo-nos tão aconchegados e bem, e então lembrávamo-nos de que era a última casa na área e à nossa volta era um ermo. Era um sentimento irreal. Como estar num navio naufragado que está 90% submerso com o convés superior acima da água por apenas um pouco mais... e sentarmo-nos numa qualquer sala de pilotagem a ouvir os marinheiros sonharem estranhos sonhos de férias e falarem acerca de consertar coisas naquele navio.. queríamos dizer-lhes, acordem, gente! Vocês são as últimas pessoas aqui. Vocês não podem ter galinhas. Os lobos já aqui estão. O absinto cresce de todos os buracos. As árvores estão a reivindicar esta terra. Os ramos estão a enfiar-se pelas vossas janelas. A vida nunca regressará à vossa vila. Os barões nucleares enterraram o seu lixo aqui. Depois de vocês, só haverá aqui floresta radioactiva pelo resto do tempo... depois pensamos, para quê? Dizer estas coisas não mudará nada. Deixemos apenas todos agarrar este momento e comer as panquecas enquanto ainda estão quentes..

last people 2018

Esta foto mostra a motorizada do Pavel. A cada visita eu perguntava quando a íamos pôr a funcionar juntos. O Pavel costumava dizer que a punha a funcionar na próxima primavera. Isto continuou ano após ano porque faltava sempre uma coisa ou outra. Na primavera de 2015 vim visitar o velho casal mas não encontrei ninguém em casa. A Nina tinha morrido, e o Pavel tinha sido internado num hospital oncológico... e a sua motorizada tinha ido para um ferro-velho. Nunca a pusemos a funcionar juntos.

last people 2018

Na foto vemos o que foi feito da minha base. A casa de Pavel e Nina no inverno de 2018.

Clicar aqui para ir para "Piquenique à Beira-Estrada" foto/video reportagem Primavera de 2018..