Site hosted by Angelfire.com: Build your free website today!

ANTES DE TODOS OS ANTES (1)

como a Terra se apaixonou pelo Céu

Antes de todos os Antes, só havia Namu, chamada de Águas do Mar e oceano original, Ela, a origem, eterno começo e prodigioso Inicio. Namu foi a primeira, a fonte, a Mãe do Universo, o útero auto-procriador da abundância, sozinha e Toda-Em-Uma, Namu era a matéria-prima original, as profundas e férteis águas do Mar.

Antes de todos os Antes (pois o Tempo ainda estava para ser criado), Namu revolveu-se e fluiu, esticou-se e toda se enrolou, tal qual uma espiral de hélice dupla. Amor então ela se fez pela primeira vez, e em grande alegria, nas trevas e no silêncio do começo de todos os mundos, um mistério e grande milagre ocorreu. As Águas de Namu se abriram, pois ela havia dado à luz a Ki e Anu, os primogênitos da criação. Ela, Ki, a deusa-criança e Montanha Cósmica, a futura Terra Mãe, e ele, o deus-menino, o Firmamento.

Antes de todos os antes, envolvidos pelo corpo líquido de mãe Namu, Ki, a Montanha Cósmica, e Anu, o Firmamento, estavam um nos braços do outro, na mais terna união. Assim, abraçados, ficaram Ki e Anu quando pequenos, antes de todos os antes, quando Anu ainda era um céu sem estrelas, sóis ou planetas, e Ki uma terra ainda menina, sem plantas, animais ou mil e um outros seres. Nada, entretanto, antes de todos os antes, a eles faltava, os dois nutridos e protegidos pelo corpo fluido e fecundo da deusa do oceano original, Mãe Namu.

`A medida, porém, em que o abraço de Ki em Anu se aprofundou, algo inusitado, maravilhoso e apaixonado se manifestou. Uma sensação vital e radiosa, tanto física quanto espiritual a Ki e Anu envolveu. Mais forte do que o abraço inicial, este algo mais os aproximou. A este laço intangível, físico, transcendente e grandioso, eles chamaram de Amor, a experiência máxima de união envolvendo o corpo e o espirito de dois seres diferentes, Polaridades no Exterior, que se fundem como Complementos no Espirito um do Outro, para formar algo maior. O Amor então se manifestou pela primeira vez no espaço como um suspiro de prazer, leve e ligeiro, a Respiração Original do Universo: Enlil, o deus menino dos Ares, futuros ventos e também tempestades.

Foi assim que a Vida começou, de pequenos e grandes atos de prazer sagrados, desde Namu, a Fonte e Mãe Original, e à medida em que Anu, mais tarde conhecido também como potente Touro do Céus, fez amor cinqüenta vezes (e mais!) com Ki, sua Amada e Consorte, a Toda Poderosa Vaca da Terra.

Ki respondeu ao entusiasmo e paixão de Anu em igual medida. Ela se fez resplandecente para seu esposo e irmão. Para seu prazer e deleite de Anu, Ki adornou seu corpo com os metais, combustíveis e pedras mais preciosas. Para Ki, sua adorada, Anu também se enfeitou com um manto do mais puro azul. Então, com imensa alegria e reverência Anu, que se chamou então de Céu, se aproximou de Ki, e ela, para ele somente, denominou-se Terra. Anu-Céu mergulhou na solidez de Ki-Terra, que deu ao amado as mais calorosas boas-vindas. O Céu derramou então no útero da amada seu sêmen, contendo a promessa de plantas, pastagens, seres vivos, como os animais e seres ideais, os heróis e heroinas civlizadoras, os grandes deuses e deusas. Aos que se transformariam nos filhos e filhas divinos, os deuses e deusas do futuro, o casal primordial deu o nome de Anunaki, o maior presente do amor compartilhado de Anu por Ki (e dela por ele também!). Lá dentro do útero da Terra, carinhosamente cuidados por Anu, formou-se portanto a segunda geração dos grandes deuses e deusas, projeto de grandes destinos, ainda sem forma e nome, apenas esperando para nascer. Só Enlil, o primeiro dos Anunaki, o deus menino do Ar, permanecia quietinho e protegido nos braços de Anu, no colo de Ki e no aconchego das profundezas de Namu, as águas do mar.

Namu, ao ver e sentir todas estas mudanças, deu-se conta de que precisava agora criar novos espaços. Então, sob Ki, ao redor de Enlil e acima de Anu, a Grande Mãe original começou a se mover, arqueando as suas Formas Fluidas e Aquosas para dirigi-las às profundezas. Pelo seu grande poder e inspiração, Namu definiu-se então como o Primeiro Oceano, o liquido amniótico e berço de todas as formas de vida da criação

- Minhas são as Profundezas que se levantam rumo à superfície, declara então Namu o Destino do Universo, e o dela própria também, meu é o processo de Transformação a partir do abraço do Nada. Meu é o Útero que tudo Nutre, o primeiro mistério da vida, meu é o Silêncio Criador da Matéria e do Espirito que a tudo infunde luz e fulgor.

Enlil, a inspiração divina de Anu e o suspiro de exaltação de Ki, o primeiro da segunda geração dos grandes deuses a nascer, começou a lutar para crescer. De súbito, um movimento enérgico e energético se manifestou: era Enlil buscando expansão.

- Pai, mãe, cresceu é o que quero, marcar minha presença no espaço, fazer o meu destino, mas fora deste grande abraço, afirmou Enlil, tentando de Anu e Ki se separar.

Enlil reúne todo seu poder emergente e se manifesta então como o Vento, Ar ruidoso e em franco movimento. Forte, penetrante, direcionada, a forca do vento e de Enlil atravessa o abraço apertado de Anu e Ki, avançando pelo corpo fluido de Mãe Namu . Um Grande Estrondo, um ruído sem precedentes se fez ouvir. Foi assim que o potente Touro dos Céus e a toda-poderosa Vaca da Terra foram, de uma vez por todas, para sempre, separados. O que antes deste momento havia sido a Unidade Original tornou-se Multiplicidade. Foi assim que se deu o inicio da Evolução, o Processo de ser que é também Meta, a grande aventura de ser e transcender, em busca da compleitude e União Original.

Namu viu as mudanças que tiveram lugar, e observou sabiamente que estas não só eram boas mudanças, como também deveriam ser ampliadas. Uma vez mais a Mãe Original e Toda Poderosa declarou os destinos de seus primogênitos:

- Anu, filho adorado, de agora em diante, habitarás os Céus, de onde protegerás as Esferas das Alturas! Que esta Esfera tenha, dentre muitos outros, o nome de Mundo Superior, onde as luzes do Espirito, a Realidade do Intangível irá se encontrar. Conhecimento, Inspiração, Visões e Imaginação serão os dons deste Mundo, sob tua guarda, filho adorado, para com todos compartilhar. Ki, filha mais amada, doravante habitarás a minha superfície, pois preciso sentir a tua presença, o teu abraço e doce palpitar. Que a tua esfera, filha predileta, seja chamada de Mundo Físico, o plano da Forma e Substância, realidade mundana e lar concreto de tudo o que viver, respirar e crescer. E para dar sustentação, brilho e equilíbrio a tudo o que estiver nas Esferas das Alturas e no Mundo Físico, que seja criado um outro mundo! Chamarei a esta nova esfera de Mundo Subterrâneo, as Grandes Profundezas, fonte de memória do que foi, é e será, mundo da Essência, reino que dará Substancia á Forma e ao Firmamento, indo além do mais profundo dos meus mares, e ao mesmo tempo se encontrar em todos os lugares. Quanto a Enlil, meu primeiro neto, que ele dance e se expanda por espaços sem fim, pois seu poder emergente e fluido é a Primeira Respiração do Universo. Desta forma, a minha semente, a minha força estará em tudo o que vier a Ser, pois a essência do que sou é o poder interior de manifestar a vida, para que esta cresça e se transforme em combinações de todas as sortes, todas igualmente abençoadas, pois sou a mãe que a tudo e todos originou!

Ao ouvir as palavras de mãe Namu, Ki voltou-se para os céus, para Anu, seu amado esposo e irmão, sentindo tanta falta de seu aconchego e eterno beijo. Pedaços de Ki, partículas pesadas, tentaram para o firmamento se deslocar, procurando por Anu, dançando pelo espaço, mas sem o amado conseguir tocar. Com imenso amor e tristeza, Ki contemplou o mistério a se desenrolar, e a ele atribuiu sentido vindo do fundo de seu apaixonado coração:

- Anu, adorada alma do meu corpo, unidos como antes não podemos mais ficar, mas o intangível que nos uniu ainda existe. Por isso, de onde estiver, da realidade física que é minha essência, estarei sempre voltada para ti, meu grande amor. E pela União Original que uma vez fomos, seja por todos sabido o que agora com toda força do meu ser declaro: tudo o que está na Terra estará para sempre ligado ao que existir no mais alto dos Céus para revelar os mistérios do casal que foi um e se separou para formar dois mundos!

Das alturas, An olhou com paixão para sua adorada esposa-irmã Ki, pois tanta falta ele sentia do seu beijo, abraço e aconchego! Um brado saiu das profundezas do jovem deus do Firmamento:

- Amada Ki, adorado corpo de minh’alma, unidos como antes não podemos mais ficar, mas o intangível que nos uniu ainda existe. Por isso, de onde eu estiver, das alturas mais elevadas do firmamento eu velarei por ti, meu grande amor. Neste momento, eu faço pois minhas as Alturas Supremas, o Firmamento e o infinito dos Céus. E pela União Original que um dia fomos, seja por todos sabido o que agora com a força do meu ser declaro: tudo o que existir acima, nas Alturas Supremas e no Firmamento, estará para sempre ligado ao que existir em baixo no Mundo Físico de minha adorada Ki! Que assim seja, portanto, assim nos Céus como na Terra! E para que o Universo seja para sempre lembrado desta grande verdade, eu tomo a partir deste momento como meus símbolos sagrados a coroa de chifres do poderoso Touro dos Céus repousando sobre o altar da Terra, minha irmã e companheira mais amada! Que o Universo jamais se esqueça de que o Touro dos Céus e a Toda Poderosa Vaca da Terra são um em todos os lugares onde Anu, o Firmamento, estiver!

Enlil contemplou as mudanças acontecendo à sua volta. Fora do aconchego do abraço de Anu e Ki, sozinho, ele sentiu-se triste, nu e vazio. Uma lufada de vento, a primeira da criação, na forma de um soluço sentido saíram de dentro de Enlil. Que vontade de voltar para os braços de Anu e Ki, ficar lá mais um instante! Mas ele tinha crescido, isto já não era mais possível. Então, Enlil voltou os olhos para as Alturas, para onde Anu tinha-se dirigido. Será que ele poderia alcançar o pai, trazê-lo de volta para si e para mãe Ki?

Enlil esticou-se o mais que pôde.

- Ah , pai, estás longe demais! Não tenho forças para te trazer de volta te fazer voltar! concluiu o jovem deus do Ar, exausto pelo esforço dispendido

Ele dirigiu-se então à Ki, numa declaração de pesar e súplica:

- Ah, mãe, o que fui fazer, ao tentar crescer! O que consegui foi apenas uma solidão tão grande, um pesar maior, pois só não posso ficar, sozinho ainda não tenho condições de viver! Por isso eu te peço, mãe adorada, por favor, não me deixes, fica comigo! Teu contato, teu carinho, ah, como deles eu preciso! Mãe querida, universo em criação, pai sem igual que está no mais alto dos céus, escutai todos vós o que agora tenho a declarar: deste momento em diante, que a segurança e proteção de minha mãe adorada, Ki, e seu bem-estar venham antes das minhas próprias necessidades, antes de mim mesmo. Desta forma, tomo sob os meus cuidados minha mãe adorada, Ki, e juntos iremos construir o Mundo Físico para que ele seja o caminho e espelho da Eternidade. Mãe, eu serei o Ar a te envolver num eterno abraço, e tu serás Forma, a realidade que a tudo dá textura e consistência, solidez e vida. Vem comigo fazer o Mundo Físico, eu imploro, mãe adorada, mil vezes querida, Montanha Cósmica que me deu a vida!

Das Esferas mais altas, Anu, de saudades de Ki, muitas lágrimas sentidas verteu, e estas desceram das alturas até encontrar as Águas de Namu, a Grande Mãe e Oceano Original. Do alto dos Céus, Anu viu suas lágrimas serem recebidas pelas ondas do mar, numa caricia gentil, de ternura sem igual. O jovem deus do firmamento na doçura do abraço de Namu então se perdeu, buscando nela o consolo para a falta que sentia por Ki. Namu acolheu a imensa tristeza de Anu, e os dois, nos braços um do outro, se encontraram, num ato de amor. Deste momento sublime logo depois nasceram um menino e uma menina, gêmeos perfeitos, para serem grandes amigos e melhores companheiros.

- Enki e Ereshkigal, é assim que irei chamar os adoráveis gêmeos aos quais dei `a luz, exclamou a Grande Namu, acalentando com alegria os dois recém-nascidos nos seus seios. Que a Sabedoria das Profundezas e a Visão das Alturas pertençam a vocês! Tão alto quanto as maiores esferas habitadas por Anu, tão baixo quanto as minhas águas tocarem a superfície mais profunda, vocês dois também irão, pois o Exterior sempre deve refletir a Realidade Interior e a Realidade Interior Animar o Exterior. Aos meus gêmeos muito amados, um grande destino será reservado: onde quer que eles forem, em todo lugar, em todos os mundos, pois a busca da Beleza tanto exterior quanto interior será a marca de suas existências, revelada para todos que quiserem delas saber, aprender e viver!

Notas:

(1) O modelo mesopotâmico de criação do mundo apresentado neste capítulo é o modelo do Sul, originado da cidade de Eridu. Este é o modelo mais antigo, pois conforme a tradição suméria, "depois da realeza ter surgido a partir da descendência dos céus, Eridu passou a ser o primeiro trono da realeza". Dados arqueológicos mostram que em Eridu (atualmente conhecida como Abu Shahrein) a estrutura mais antiga da uma série de templos e altares data de seis mil anos antes da nossa era ( ou cerca de oito mil anos atrás) . O modelo de criação de Eridu dá primazia às águas. Um paralelo interessante pode ser feito com o mito da criação da cidade de Heliópolis, no Baixo Egito, uma vez que Heliópolis também está situada num delta pantanoso. Neste caso, é o deus criador Atum, que vive na sua ilha cercado de água, que se masturba e daí inicia uma linhagem heterossexual (Leick, Gwendolyn, Sex and Eroticism in Mesopotamian Literature, Routledlege, 1994)

O segundo modelo da criação do mundo vem do Norte, da cidade de Nipur, centro de culto do deus do ar, Enlil. Naquela região de planície, a vista é dominada pela céu e pela terra plana e que se expande até a linha do horizonte. Conseqüentemente, a dualidade céu e terra não existe neste modelo, sendo que céu e terra surgiram do nada, e dos dois, originou-se toda a vida:

" O Firmamento nasceu da sua própria vontade, a Terra nasceu da sua própria vontade [

O Firmamento era o abismo e a Terra era o abismo " .

Por este modelo, Enlil é filho de Enki e sua esposa Ninki.

O terceiro modelo, que é de fato o mais conhecido dos mitos de criação do Oriente Próximo, é chamado de Enuma Elish, o grande poema épico babilônico, e nele, o deus Marduk, o patrono da Babilônia, cria o universo e a ordem tanto nos céus quanto na Terra ao derrotar a serpente/dragão primordial Tiamat. Tiamat representa a força do caos, e Marduk a ordem, naquela que é uma das primeiras histórias de um herói lutando contra um dragão, e vencendo-o para garantir a paz e a estabilidade no mundo.

 

VOLTAR PARA BABILÔNIA - BRASIL