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ENKI E ERESHKIGAL


 A relação dos gêmeos Enki e Ereshkigal é muito profunda. Por isso, quando ela desapareceu do Mundo Físico, resgatá-la, trazê-la de volta torna-se uma questão de honra para Enki. Este é um mito que trata da lealdade, a força dos laços que unem irmão e irmão, e da necessidade de liberação destes laços para buscar e assumir destinos diferentes, sem deixar, porém, de amar.

 Nos primeiros dias depois que Ereshkigal, a filha de Namu, as águas do mar que deram origem à vida, e de Anu, o deus do Firmamento, desapareceu do Mundo Físico (levada por Kur ou por sua própria escolha?), Enki, seu irmão gêmeo, mal podia suportar a dor da separação de sua mais querida companheira de todas as horas e melhor amiga.

- Vamos, Enki, anime-se! Repetiu Enlil, o deus do Ar, pela centésima vez aquele dia. Você não pode se deixar abater tanto assim pela falta de Ereshkigal. Quem sabe, mais dia, menos dia, ela há de voltar para nós...

Faltava, porém, convicção às palavras de Enlil. O desaparecimento da irmã mais nova, sempre tão curiosa e alegre, também era um grande peso no coração do jovem e poderoso deus do Ar. Mas o que fazer, se Ereshkigal tinha-se aventurado para muito além dos limites conhecidos?

Desta vez, Enki olhou para Enlil, com a face pesada de tristeza:

- Você não pode fazer algo para trazer Ereshkigal de volta?

- Mas fazer o que, irmão?

- Seja o que for que tiver de ser feito para trazer Ereshkigal de volta! Você pôde separar mãe Ninhursag-Ki de nosso pai, Anu, o deus do Firmamento? Por favor, irmão, crie o que for preciso para resgatar Ereshkigal!

Enlil considerou a questão por um longo momento, para depois levantar olhos conturbados na direção da linha além do horizonte, para onde Ereshkigal tinha desaparecido:

- Não posso. Para onde Ereshkigal foi, fica além dos limites que posso trilhar. Sou o guardião da terra, Enki, por promessa feita à Mãe Ki, portanto não posso deixar o Mundo Físico por outros mundos ou reinos. Este é o meu dever, a responsabilidade que assumi depois de ter separado Mãe Ki de nosso pai Anu. Mas você pode ir onde quiser, Enki, onde for preciso para resgatar Ereshkigal. Além do mais, o laço que existe entre gêmeos perfeitos é muito forte. Você e Ereshkigal são gêmeos perfeitos, em tudo semelhantes, apesar das diferenças no exterior. Se alguém pode resgatar Ereshkigal, esta pessoa é você com certeza, irmão menor. Não importa onde ela tiver ido.

- Mas como poderei trazê-la de volta?

- Na hora certa, você saberá como, respondeu Enlil.

O mundo era tão jovem, Enki mais jovem ainda. Pelo menos Enlil esperava com sinceridade que Enki achasse uma forma de trazer Ereshkigal de volta.

- Então devo aprender o que for preciso para trazer minha irmã de volta para todos nós. Como eu queria ter uma pista do que devo saber, porém!

Enlil suprimiu um suspiro de profundo alivio. Ele temera perder Enki também para as profundezas do desespero e da desesperança. Mas seus receios pareciam não ter mais fundamento. A curiosidade sem limites de Enki tinha sido despertada, ele estava entrando em contato com o mundo novamente!

- Enquanto você vai aprendendo o que deve para resgatar Ereshkigal, eu bem que poderia contar com a ajuda do meu irmão menor favorito, continuou Enlil, torcendo para estar usando as palavras certas para incentivar Enki, sem forçá-lo demais.

Enlil continuou:

- É verdade que a minha Palavra é lei, que delas fiz uso para atribuir nomes aos Anunaki, os deuses e deusas nossos irmãos e irmãs, quando eles deixaram a montanha sagrada da Criação, o Duranki, como sabes, Enki. Mas atribuir nomes a tudo o que existe não é o suficiente. Há muito mais coisas dentro do que chamamos de vida e seres vivos do que o simples e auspicioso fato de Existir. Eu realmente preciso de ajuda para organizar este Mundo Físico tão novo, para que ele seja seguro para todos nós.

- O que você quer dizer com isto, Enlil? Perguntou Enki, a sua antiga curiosidade por sempre saber e aprender de novo estimulada.

Enlil sorriu por dentro:

- O que e como, irmão, creio que nos dois devemos e podemos descobrir. Juntos.

Enki ergueu-se do chão, considerando o pedido de Enlil, a confiança que o jovem e poderoso deus do Ar estava demonstrando para com ele. Uma onda de sentimentos conflitantes, assombro e alegria, tomou conta de Enki. Se Enlil o considerava capaz de fazer estas coisas tão importantes, como trazer Ereshkigal de volta e ajudá-lo a organizar os poderes do Mundo Físico que estavam-se formando, então Enki não poderia se furtar de tentar satisfazer às expectativas de Enlil. E às suas próprias também.

- Todos viemos de Mãe Namu, as Águas profundas do Oceano, Enki falou, pensativo. Água, a essência de minha natureza, e de Ereshkigal também, pode ser moldada em formas infindáveis, dependendo do receptáculo, sem, entretanto, jamais perder a sua essência. Talvez a vida devesse ser vista como uma eterna modelagem, sempre se formando, evoluindo e mudando para permitir incontáveis possibilidades. Não como um plano pré-concebido, mas como um processo e meta à medida em que a existência se desenvolve.

¨Assim como eu mesmo devo aprender, evoluir e crescer para um dia (logo, espero!), resgatar Ereshkigal,’" raciocinou também Enki, mas calou a respeito destes seus últimos pensamentos.

- A vida e o ato de existir como Processo e Meta! Sim, Enki, você pode ter muita razão nesta sua forma de ver as coisas! exclamou Enlil, surpreso, intrigado e feliz. Como sempre, ele não cessava de admirar a grande capacidade de Enki para entender todas as realidades e visualizar todas as possibilidades.

E assim foi feito. Ao que Enlil conferia Nome pelo poder de sua Palavra, a habilidade de Enki conferia Forma, Significado e Identidade. Enki, o filho de Namu, as Águas do Oceano, e de Anu, o deus do Firmamento, transformou-se em Nudimud,, o Criador de Imagens, Senhor das Formas Arquetipicas, o Patrono de Todas as Artes e Profissões. E a ele, foram dadas também todas as águas doces que fertilizam o solo e que vêm de dentro da terra, chamadas Apsu.

 

Quando muitas das artes da civilização haviam sido criadas, quando os Anunaki estavam aprendendo e ensinando a arte de tirar das águas doces e salgadas alimentos e produtos de que precisavam para sobreviver, Enki retirou-se para a região sudoeste da Terra Entre os Rios, onde havia encontrado uma lagoa de águas profundas do mais puro azul cercada de palmeiras. Perto, uma povoação chamada por Enki de Eridu estava sendo construída. Mas Enki passava mais tempo na lagoa do que na vila, achando tempo mesmo apesar de estar administrando o trabalho laborioso de construção dos primeiros templos e habitações feitos de juncos trançados e tijolos de barro.

Enki buscava a silenciosa companhia da lagoa e dos pântanos para pensar sobre como poderia finalmente cumprir a promessa que tinha feito a si mesmo para resgatar Ereshkigal de onde quer que ela tivesse ido.

"Ereshkigal era uma eximia nadadora, tanto é que foi até os confins do mundo e além," conjeturava Enki durante seus longos passeios. "Se quero resgatá-la, devo encontrar uma forma de cruzar os mares, ir além de todos os oceanos. Nadando ou não."

Durante seus longos passeios, ele apenas parava perto dos Grandes Juncos para ver o trabalho diligente e incansável de uma jovem deusa Anunaki, chamada Ningikuga. Esta donzela quieta e habilidosa tinha ensinado à humanidade a arte de trançar juncos para fazer cabanas para morar e adorar aos deuses. De junco trançado e argila, foram criados os primeiros templos e moradias, concebidos pela arte de Ningikuga. E ao olhar a forma com que Ningikuga trançava os longos juncos, com perfeita paciência, técnica e diligência, Enki sentiu que tinha finalmente encontrado o que precisava para ir atrás de Ereshkigal.

- Irmã Ningikuga, Deusa dos Juncos Sagrados, eu peço a tua permissão para cortar alguns de teus juncos mais resistentes e sob a tua proteção tentar construir uma estrutura que possa me carregar sobre as águas mais perigosas e os mares mais bravios. Somente com uma estrutura deste tipo, creio, poderei partir para resgatar Ereshkigal, disse Enki um dia à Ningikuga.

Ningikuga olhou para os Grandes Juncos ao longe, nas margens da lagoa e além, contemplou com orgulho o resultado de longas horas de trabalho e dedicação, as casas e templos da pequena aldeia de Eridu. Ela voltou-se então para Enki. Como artesã, ela entendia Enki melhor do que ninguém. Ela sorriu para o deus das Águas Doces, das Artes e da Mágica:

- Então meu irmão ainda não desistiu de resgatar Ereshkigal de volta para todos nós? Tudo o que estiver ao meu alcance, todos os juncos que quiseres, Enki, eu colocarei ã tua disposição para esta grande tarefa. Corta os juncos mais longos e resistentes, trança-os e faz com eles uma estrutura que flutue na superfície de tudo o que fluir, águas, córregos, rios e mares. Procura também madeira de cedro, resistente e forte, para juntá-la aos juncos sagrados. Com tal estrutura, tenho certeza, forte e resistente, irás a todos os lugares, singrarás os mais bravios rios, oceanos e mares!

- Ah, irmã, já posso ver de antemão a forma que esta nova e revolucionária estrutura irá tomar! a voz de Enki vibrava, cheia de entusiasmo, inflamada pelo fogo da criação. Sim, já consigo ver claro em minha mente a estrutura à qual te referes: algo que flutue nas águas, leve, mas resistente, capaz de carregar um homem e tudo o que ele precisar para uma longa jornada! A esta construção, darei o nome de barco, e que ele se desloque sobre as superfícies das águas, desde as mansas às mais bravas! Movido por longas bastões aos quais chamarei remos, esta estrutura especial, o primeiro barco da criação singrará todas os lagos, rios e mares, retornando, se quiser, ao ponto de partida, ou seguindo para outros rios e mares d’antes não navegados. Que o primeiro barco feito por mim se chame Magur, de linhas longas, de proa e popa em forma de curva, tal qual o pescoço de um cisne. Ah, Ningikuga, creio que encontrei o que preciso para finalmente poder com toda segurança ir resgatar Ereshkigal!

Ningikuga riu, contagiada pelo entusiasmo de Enki:

- E quando tiveres construído o que chamaste de barco, quando estiveres pronto para partir, eu chamarei nossos irmãos e irmãs, os Anunaki desta área, para abençoarem a tua jornada!

Usando toda sua habilidade, Enki construiu o barco Magur, todo feito de juncos e madeira de cedro. Com suas formas curvadas e elegantes e mastro imponente, este foi o primeiro barco construído em todos os mundos. Enquanto Enki trabalhava com diligência e empenho, muitos dos irmãos e irmãs Anunaki vieram vê-lo. Enki ouvia os conselhos e comentários, agradecia-os, mas não se afastava de sua concepção inicial para o barco magur.

" Porque não é apenas o barco que está sendo aprontado ao longo de todo este processo" , pensava Enki. "Ao longo deste tempo, também estou juntando forças, preparando-me para enfrentar Kur e o Mundo Subterrâneo por amor a Ereshkigal."

Finalmente, um dia o barco ficou pronto para zarpar. Pronto também estava Enki. Fiel à sua promessa, Ningikuga chamou todos os Anunaki da região de Eridu para abençoarem ao barco e a Enki na jornada até os confins do Mundo Físico e Além. Com carinho, Enki beijou Ningikuga, e prometeu voltar para ela, um destes dias.

O barco, entretanto, não tinha tripulação, apenas Enki aos remos. Nenhum outro Anunaki ousara acompanhar o deus das águas doces, das artes e da mágica. O barco magur partiu, apenas com Enki. Estranha era a sensação de singrar as águas da lagoa, como ninguém antes o havia feito em todos os mundos. E à medida em que remava na direção do oceano, deixando as várzeas da Terra Entre os Rios, Enki sentiu a ansiedade crescer, mas no fundo também cresceu o desejo de vencer, não importa o que preço que tivesse de pagar.

"Mesmo se não conseguir o meu objetivo, irei tentar mesmo assim, "pensava Enki. "Estar aqui já é uma vitoria. Não importa o quanto viver, este dia, este momento sempre serão meus."

Remando sempre em frente, Enki passou pelas costas estéreis do deserto, que ainda esperavam o beijo do sol. Ele passou por praias ladeadas de palmeiras e coqueiros dos mares do sul, seguindo na direção do mar aberto. Enfrentando as mais altas ondas, velejando por águas congeladas, sempre em frente, seguia remando o deus das Águas Doces.

" Não importa a direção que eu tomar", raciocinou Enki, " pois o Mundo Físico deve acabar em algum lugar, e onde for este lugar, mais cedo ou mais tarde eu irei com certeza encontrar!"

. Como se tivesse convocado os poderes do desconhecido com a sua vontade de achar a entrada para as Grandes Profundezas, imediatamente um vento forte começou a soprar, seguido por uma chuva de pedras. Os céus pareciam ter-se convertido em cascalhos finos e pontiagudos, tal a intensidade da saraivada de granizo que atingiu Enki em cheio. Ele teve de agarrar-se à proa, na tentativa desesperada de proteger a cabeça entre os braços para resistir ao ataque dos céus. Ao mesmo tempo, como lobos famintos, ondas enormes ergueram-se para devorar a quilha e a proa do barco magur, seguidas de outras ondas ainda maiores, que se chocaram contra a popa da embarcação como se fossem leões furiosos. Entretanto, não foram suficientes para virar de cabeça para baixo a embarcação de Enki.

Durante todo ataque dos elementos, Enki comandou a sua mente, seu coração, corpo e espirito a manter a calma e o equilíbrio. O desconforto físico e o medo que ameaçavam paralisar Enki por completo tinham de ser dominados.

"Onde há medo, há poder, e não posso deixar este poder me dominar", repetia Enki para si mesmo sem cessar, como um mantra.

Com determinação, Enki tentou esquecer as emoções em conflito, a dormência nos braços, a dor dos filetes celestes sobre o seu corpo. Quando ele estava quase para se render `a força dos elementos, um estranho silêncio e trevas profundas se manifestaram de repente. O barco magur também parou.

Enki finalmente pôde erguer a cabeça e pôr-se de pé. O que viu, fê-lo piscar uma, duas vezes. As águas eram tão escuras e calmas, como se a noite estivesse no mar e não mais nos céus. Mas novamente este foi só um breve momento, pois em seguida uma coluna de fogo ergue-se no ar, aproximando-se do ponto onde estavam Enki e o barco magur.

Um poderoso desafio tinha-se anunciado. Fogo era o poder contrario à essência de Enki, o poder das Águas. Uma muralha de fogo poderia impedi-lo de seguir em frente. De fato, água podia extinguir o fogo e vice-versa, mas qual era a vantagem de lutar contra algo que em força equivalia à própria essência elementar de Enki? .

" O que água e fogo têm em comum dentro de mim? Como o contrário pode se tornar complemento e cooperação, para que eu possa passar pela coluna de fogo em igualdade de condições?" raciocinou freneticamente Enki.

O jovem deus das águas doces, das artes e da mágica mergulhou então firme na essência de seu próprio ser para encontrar o ponto onde a água podia-se encontrar com o fogo, sem que nenhum deles consumisse um ao outro. Ele então impeliu o barco para frente, entoando um verso que veio de dentro da sua mente, corpo, coração e alma:

- Eu sou o poço da verdade que traz iluminação, sou aquele que dispersa as trevas do espirito. Sou agora e sempre a forma que tudo transforma, pelo fogo da mente criativa em ação, sou a luz interior do fogo interior que dá brilho e substância a tudo o que existe!

Deu certo! Quase a contragosto no inicio, o barco magur começou a se mover, e Enki viu-se atravessando a coluna de fogo sem se queimar. Entretanto, ele não teve tempo de se regozijar pelo sucesso, pois de imediato uma voz trovejou à sua frente:

- Bem-vindo aos Portais das Grandes Profundezas, filho de Namu!

A voz clara e trovejante só poderia pertencer a alguém: Kur. Enki encheu-se de coragem e perguntou:

- Se me conheces, se sabes quem sou, só podes ser Kur. Responda-me então: onde está minha irmã? Para onde a levaste? Eu vim para levá-la de volta às Esferas Superiores, seu verdadeiro lar.

- Veio mesmo? Foi a resposta irônica de Kur. Veremos... ou melhor, você, meu deus, verá... na hora certa que talvez as coisas tenham mudado um pouco desde a ultima vez que viu Ereshkigal.

Kur continuou depois de alguns segundos, para dar maior efeito às palavras:

- É meu dever, porém, como Guardião do Portal de Entrada do Mundo Subterrâneo neste momento, perguntar-lhe: é seu desejo prosseguir, mesmo não sabendo do desfecho de sua jornada? Ainda há tempo para a voltar às Esferas Superiores.

- Fui longe demais agora para voltar sem pelo menos ver Ereshkigal, respondeu Enki. Leve-me até ela!

Mas havia algo na atitude de Kur que fez Enki pensar pela primeira vez no inconcebível para ele. Porque talvez o tempo tivesse passado, e Ereshkigal estivesse perdida para as Esferas Superiores. Com um vigoroso sacudir de cabeça, o jovem deus afastou esta possibilidade. Mas no fundo, Enki estava começando a se dar conta de que talvez nem tudo pudesse ser mudado.

‘ Se é verdade que tenho o poder de dar forma e significado a tudo o que existe, pode haver casos em que eu não possa desfazer o que já foi feito ou existe. ‘ pensou Enki, alarmado pela direção que estavam seguindo seus pensamentos. ‘Seja como for, não posso voltar mais atras. Pelo menos, sem encontrar Ereshkigal e saber o que realmente ela quer, ficar aqui ou partir comigo.’

Uma coisa, porém, era certa: Kur era também seu meio-irmão, que além do mais, sabia onde estava Ereshkigal. Ele tinha-se apresentado como Guardião de Ereshkigal. Talvez Kur pudesse levá-lo até ela.

- Ainda não mudei de idéia. Quero ver Ereshkigal, disse ele.

- Todos os que vêm às Grandes Profundezas encontram nossa Grande Rainha. Quando... aí depende.

Ato continuo, o barco magur começou a se mover na direção da costa, como se tivesse vontade própria. Enki manteve-se ereto e digno na proa, pois sabia que estava sendo minuciosamente observado.

- Para entrar, porém, no Mundo Subterrâneo, todos devem deixar qualquer arma ou escudo para trás. Todos devem entrar aqui da mesma forma com que nasceram nas Esferas Superiores: não carregando arma alguma, mas com a vontade de crescer e fazer algo novo, mesmo que não saibam ainda o quê.

Enki tentou prosseguir, mas uma espécie de paralisia tomou conta do seu corpo, apesar dele tentar se mover.

- Estas são as regras, meu deus. Sem aceitá-las, os portais do Mundo Subterrâneo jamais se abrirão para si. Decida agora ou volte para onde veio.

Nas Esferas Superiores, a primeira respiração, a primeira noção do mundo e da vida ao redor, Enki havia compartilhado com Ereshkigal. Por ela ele tinha construído o barco magur, por ela ele havia descido aos confins da existência. Mais uma vez, por Ereshkigal, Enki despiu-se para chegar ao Mundo Subterrâneo tal qual havia um dia nascido no Mundo Físico. Se esta fosse a lei do Mundo Subterrâneo, que Enki a cumprisse da melhor forma possível.

Portanto, nu como um recém-nascido, deixando de lado qualquer sinal de status divino, Enki colocou os pés na costa do Mundo Subterrâneo. Assim que seus pés tocaram a areia escura e grossa, uma poderosa sensação de desorientação tomou conta dele, como se cada aspecto e fragmento do seu ser estivesse minuciosamente sendo revertido, revisado e examinado sob intenso escrutínio. Ele se sentiu muito vulnerável, pois tudo o que havia pensado ou considerado verdade absoluta foi desafiado, analisado de todas as formas, de dentro para fora, de baixo para cima. A sensação era totalmente avassaladora, como se novos limiares de conhecimento e experiência tivessem se aberto para ele. Enki segurou a cabeça com firmeza, esperando apenas ser capaz de resistir à enorme pressão que vinha de dentro dele e do universo interior.

- Não lute contra a sensação, Enki ouviu uma voz grave e melodiosa soar estranhamente calma nas trevas. Você irá se adaptar à experiência do Mundo Subterrâneo logo, logo. Lembre-se, porém, da regra básica: se sua alma é pura, então os seus contatos aqui serão harmoniosos e irão faze-lo completo. Mas se você vem com medo, raiva e tudo o que for negativo ou desequilibrado, você terá então de enfrentar as sombras do seu coração, corpo, mente e alma antes de encontrar regeneração, cura e equilíbrio.

Alguns minutos ou talvez uma eternidade depois, Enki pôde levantar a cabeça sem senti-la rodar. Ele deixou seus olhos e sentidos absorverem a paisagem à sua frente. Sob seus pés, a areia escura e grossa brilhava aqui e ali. Em cima, o firmamento tinha o mistério do crepúsculo. Enki não sabia de onde vinha a fonte do brilho sutil que vinha daquele céu. Não havia estrelas no Mundo Subterrâneo, mas a luz parecia vir de dentro da própria terra. Em frente, ele podia ver o contorno de uma grande construção toda de lápis lázuli e cristal, provavelmente um templo ou palácio.

Mas o que impressionou Enki foram as formas fantasmagóricas, de todos os tipos e jeitos que ele via ao seu redor, algumas muito ocupadas, sabendo o que faziam (seja lᒠo que fosse!), outras parecendo andar a esmo. Seres descarnados, amontoados de ossos que se movimentavam, e se Enki pudesse usar o termo, parecendo estar vivos. Finalmente, Enki voltou-se na direção da Voz que o havia saudado. Uma figura alta e silenciosa, toda vestida de preto, e com um grande capuz, estava à frente dele. A face da figura estava escondida. Mesmo sem poder ver seu rosto, a Figura fez Enki calar-se de imediato, assumir uma atitude de cautela e respeito que surpreendeu o carismático jovem deus. Nunca antes deste momento ele tinha encontrado uma aura tão grande de autoridade e seriedade. Enki engoliu em seco antes de falar:

- Talvez eu deva me apresentar à .... Presença que está me recepcionando nas Grandes Profundezas, disse Enki.

Presença era um termo ao mesmo tempo ambíguo e apropriado para endereçar à figura descarnada, ao conjunto de ossos vestido que estava na frente dele.

- Eu sei quem você é, e por que você veio ao Mundo Subterrâneo também. Você deixou bem claro que quer levar sua irmã Ereshkigal às Esferas Superiores, continuou a Voz. Mas como pode você ter certeza de que ela quer realmente retornar com você? Faz muito que vocês não se vêem. ɒ bem possível que ela considere as Grandes Profundezas o seu lar agora, e não mais o Mundo Físico.

A objetividade direta e firme da Presença tanto chocou quanto impressionou Enki..

- Eu conhecia Ereshkigal como a minha própria alma... replicou Enki, mas parou, antes de expressar o que realmente pensava e talvez ofender a Presença.

- E conhecendo a sua alma, você não quereria viver no Mundo Subterrâneo, não é verdade, deus Enki? Completou a Presença, como se tivesse lido os pensamentos que Enki não tinha ousado enunciar. Mas todos aqueles que vivem vêm ao Mundo Subterrâneo ao final de seu ciclo de vida no Mundo Físico. Todos, sem exceção (1).

Com um gesto amplo, a Presença apontou para as criaturas fantasmagóricas, os amontoados de ossos descarnados de todos os tipos e formas que Enki via andando pelo Mundo Subterrâneo.

- Todos os seres vivos vêm a esta esfera no final de suas vidas... repetiu Enki, pensativamente. Portanto, todas estas.... presenças estão mortas?

Ele sabia que tinha feito uma pergunta retórica no momento em que as palavras saíram de seus lábios. A Presença permaneceu em silêncio, mas de uma certa forma, Enki não achou a reserva dela assustadora.

- Não havia pensado muito na morte até este momento. Evidente que sei que a morte é algo que acontece aos vivos, às plantas e animais, mas não necessariamente aos Grandes Deuses (2).

- O que você experimentou ao chegar ao Mundo Subterrâneo? Perguntou a Presença, com calma.

- Desorientação, desafio, intenso escrutínio de tudo o que fui e sou, minhas crenças, valores e ideais... Mas espere! Você está dizendo que eu também morri ao colocar meus pés nesta terra?

Houve uma alteração na face da Presença. Seria este um sorriso?.

- Você também renasceu aqui. O Mundo Subterrâneo é a Realidade Interior que dá substância a tudo o que foi, é e será em todos os mundos. Ele é a esfera da essência, onde a vida e a morte se encontram e se fundem uma na outra. Aqui, a vida e a morte são ao mesmo tempo ritmo e transformação, mostrando a relação estreita entre a Energia de tudo o que foi um dia Forma, para que todas as Curas e Regenerações possam ocorrer. Você, meu deus, que pelo seu dom confere a tudo o que existe o Conhecimento Potencial daquilo no que todos os seres podem se transformar, se assim o quiserem, também deve saber que este Conhecimento é muito raramente concretizado no Mundo Físico, sendo a causa de ódios, problemas e frustrações. Portanto, ao final de seus ciclos de vida, todos os seres vivos vêm ao Mundo Subterrâneo para alcançar Equilíbrio e Justiça. Lembre-se, meu deus, que da vida sobrevêm a morte, e que a morte cede lugar à vida, assim como o jovem se torna velho, e o velho, se bem viver, jovem no espirito. Desta forma nós, nas Grandes Profundezas, estamos sempre ligados às Esferas Superiores como parte do fluxo de criação e dissolução que nunca termina.

- E como isto ocorre?

- O que era Forma torna-se a Energia do que Foi, enquanto que a Essência se reconstrui na força do que poderia ter sido, o tom de voz da Presença tornou-se extremamente gentil e positivo. Viver é bem mais do que satisfazer as necessidades básicas do corpo, pois deve também levar em conta a realidade do espirito. Se todos os seres vivos se dessem conta deste fato tão simples, então talvez ser-lhes-ia possível ver suas existências no Mundo Físico tanto como processo e meta, sempre evoluindo e transcendendo ao que um dia foram. Pois a vida não é um plano pré-estabelecido, mas uma semente de transformação, contendo dentro de si todas as possibilidades para se concretizar no Mundo Físico, sempre guiada pelo Espirito que a tudo dá significado e fulgor.

Fez-se então silêncio, e Enki foi tomado por profunda emoção. Uma lágrima quente e solitária correu pela face do deus das Águas Doces, das Artes e da Mágica. Então ele, num ato de vontade, alterou o seu estado de consciência, transformando a Energia do que e quem ele via à sua frente nas Formas do que estes tinham sido, eram e seriam em todos os mundos. O Mundo Subterrâneo então transformou-se na imagem do Paraíso Restaurado, o Mundo Físico Original, que também contém as estrelas.

Enki dirigiu-se `a Presença com profundo respeito e admiração, reconhecendo-a por quem ela realmente era:

- Irmã adorada, Ereshkigal, eu te saúdo, e te peço humildemente perdão por não ter-te reconhecido antes deste momento.

De fato, quem estava sorrindo para ele não era mais o amontoado de ossos descarnado e projeção dos piores medos que se pode ter a respeito da vida após-morte, mas sim uma jovem mulher de idade indefinida, de longos cabelos negros, toda vestida de preto e prata, a quem Enki conhecia tão bem quanto a sua própria alma. Os dois irmãos se abraçaram com grande carinho.

- Compreendes tudo agora, Enki? Falou Ereshkigal quando o abraço terminou. Por que meu lugar é aqui, por que não posso retornar contigo às Esferas Superiores? Eu me tornei numa das Grandes Guardiãs. Esta foi a minha escolha. Pai Anu é o Guardião do Firmamento, Ninhursag-Ki de tantos nomes é nossa Terra Mãe, Enlil zela por ela e pelo Ar que respiramos. Tu, Enki, guardas também as Águas Doces, as Artes e a Mágica. Eu escolhi o Mundo Subterrâneo. Havia uma grande necessidade de uma Presença aqui. Muitos vêm a esta Esfera com tanta dor e tristeza, sentindo tanta falta do que nunca experimentaram ou conseguiram atingir no Mundo Físico. Estes seres precisam aprender muito a respeito do equilíbrio e da cura. Eu estou aqui para assegurar que todos os que buscam pela essência além da aparência irão encontrá-las, se estiverem dispostos a desnudar e refazer suas almas para encontrar os tesouros que antes não tiveram capacidade de encontrar no Mundo Físico. Tantos não conseguem ver no Mundo Subterrâneo como a Esfera da Justiça e do Equilíbrio Restaurados. Como tu mesmo, Enki, que ao chegar, viu apenas figuras fantasmagóricas e feias, a vida aqui como trabalho duro e lágrimas.

- Ah, irmã, não é demais tentares equilibrar tanta dor pelas Esferas Superiores antes que a cura e a regeneração possam acontecer? Perguntou Enki, tomado de assombro pela responsabilidade que Ereshkigal tinha assumido de livre e espontânea vontade e colocado sobre seus delicados ombros.

- Tu enfrentaste a iniciação do Mundo Subterrâneo ao chegar aqui, irmão. Num nível mais profundo, tu mudaste e cresceste com a experiência. Foram-se a atitude arrogante, o desejo de me levar de volta, porque sentias a minha falta, sem me perguntar se também era meu desejo partir. E porque tu me conheces tão bem quanto a tua própria alma, creio que agora compreendes que, apesar de sentir falta das Esferas Superiores, dos meus irmãos deuses e deusas, de brincar e me divertir com eles, existem tesouros escondidos nas Grandes Profundezas, e que me tornei na Guardiã principal deles. Muitos jamais serão capazes de ver o que são e onde estão tais tesouros. Eu sim. Por este motivo sou necessária aqui. Assim como a tua mágica, irmão, é necessária nas Esferas Superiores.

Enki deixou as lágrimas rolarem livremente. Agora, ele sabia com certeza que Ereshkigal jamais retornaria ao Mundo Físico ou à Região do Firmamento. Ela não voltaria para Enlil ou para ele nunca mais.

- Posso te perguntar a respeito de Kur? Eu sempre quis saber por que tu nos deixaste, perguntou Enki.

Finalmente ele tinha feito a pergunta que devorara as suas entranhas desde que Ereshkigal havia deixado o Mundo Físico.

- Kur é um dos guardiões das Grandes Profundezas agora. Ele foi um amigo que me ajudou a entender muitas coisas de que precisava saber e aprender ao chegar aqui. Mas não é esta a pergunta que me queres realmente fazer, Enki. Faca a pergunta certa, meu irmão. Em voz alta e clara, para deixar o passado para trás, toda a culpa que sentiste por todo este tempo, uma culpa que na realidade, nunca deverias ter assumido.

Enki respirou fundo antes de desnudar finalmente a sua alma:

- Deixaste as Esferas Superiores por Kur? Nós... eu te falhei de alguma forma?

A voz de Ereshkigal tornou-se extremamente gentil, mas havia uma ternura feita de aço nela:

- Eu não deixei as Esferas Superiores por Kur. Eu desci às Grandes Profundezas, porque esta era a Vontade Maior em mim, a realização da minha missão de vida para ser compartilhada por todos os mundos. Kur foi um amigo, um companheiro ao longo desta jornada, assim como tu, Enki, também o foste durante os dias maravilhosos de nossa infância. Agora, Kur está ligado a mim por laços de liberdade, porque ele resolveu ficar e ser um de meus guardiões aqui no Mundo Subterrâneo. Nunca mais, irmão adorado, o melhor companheiro de folguedos dos meus primeiros anos, penses que me faltaste de alguma forma. Talvez eu tenha faltado a ti e a Enlil, quem sabe? Mas de alguma forma, não creio que falhamos uns aos outros. Nós fizemos as nossas escolhas, todos nos tornamos guardiões de pleno direito. Desta forma, aqui das Grandes Profundezas eu também sou uma com todos os Anunaki.

Outro silêncio carregado de emoção seguiu-se às palavras de Ereshkigal. Enki sentiu como se uma carga de imenso peso tivesse sido erguida de seus ombros, mente, coração e alma.

- Não lamentes a tua escolha de ter descido por mim, Enki, continuou Ereshkigal. De fato, eu tinha certeza de que virias, e sempre te esperei aqui. Os laços que nos unem como gêmeos perfeitos são demasiado fortes, e sempre que quiseres, irás me encontrar, se souberes como e onde procurar. Mas antes que tu entendesses a função da minha vida, eu não poderia me apresentar ou dizer alguma coisa. Tanto quanto eu pertenço agora às Grandes Profundezas, tu também pertences em tua totalidade às Esferas Superiores. Mas ao vires até mim, eu espero que tenhas aprendido a ver tudo o que existe como Forma e Essência. Se as Esferas Superiores são o domínio da Forma, onde a Essência está no interior, o Mundo Subterrâneo é o domínio da Essência Perfeita, que está contida na Forma, e que será vista por todos aqueles cuja Visão Interior se projetar além das aparências. Desta forma, aqui das Grandes Profundezas estamos para sempre ligados às Esferas Superiores, pois o Mundo Subterrâneo é a Estrutura Interior que dᒠsustentação aos outros mundos. Tudo o que existir no exterior também é igual ao que existe no interior para revelar os segredos Daquele e Daquela que são Um/Uma e Muitos/Muitas.

Enki bebeu as palavras de Ereshkigal, a sabedoria calma e profunda da Guardiã das Grandes Profundezas. Ereshkigal, num movimento gracioso e rápido, ajoelhou-se no chão, suas mãos mergulhando na sólida fundação do Mundo Subterrâneo.

- Antes de partir, irmão, tome isto.

A mão de Ereshkigal retirou do solo uma forma oval e pálida, colocando-a na palma da mão de Enki. Uma semente! Enki ergueu um olhar intrigado para Ereshkigal.

- Plante esta semente, Enki, e espere para ver o que vai sair dela. Mas em verdade, em verdade eu afirmo, querido irmão, que se esta semente crescer e ficar madura, ela será o portal para muitos outros mundos de crescimento, equilíbrio e regeneração. E por Namu, a Mãe Original e muito amada que deu à luz a mim e a ti, bem como pelo deus do Firmamento Anu, nosso adorado pai, eu agora declaro um destino dos mais auspiciosos: aquele ou aquela que encontrar minha semente crescida e bem formada será quem irá descobrir a forma de manter a ponte de ligação entre o Mundo Subterrâneo e as Esferas Superiores sempre aberta para todos (3). E que seja feita a minha vontade, agora e para sempre!

Enki sabia que a semente era o presente de adeus de Ereshkigal:

- Eu a verei novamente, Ereshkigal? Ou perdemos você para sempre lᒠnas Esferas Superiores? Ele perguntou.

O riso cristalino de Ereshkigal fez-se ouvir :

- Eu não creio que as Esferas Superiores estão perdidas para mim, Enki. Você me perdeu para sempre, irmão?

O coração de Enki queria gritar "nunca! Jamais estarás perdida para mim, Ereshkigal!" mas as palavras que a sua alma formou não foram pronunciadas pela boca.

- Se me procurares, hás de me achar. Sempre! E agora, irmão querido, companheiro e grande amigo, eu te digo adeus!

Enki sentiu um beijo carinhoso na face, e logo viu-se completamente sozinho junto ao barco magur. Lágrimas quentes brotaram-lhe copiosas dos olhos. Ele fez uma profunda cortesia de amor e respeito à deusa do Mundo Subterrâneo. Por um breve momento, Enki teve inveja de Kur, que estava livre para ficar com Ereshkigal, enquanto que ele, Enki, não podia ficar nas Grandes Profundezas. Mas Enki sentiu-se forte como nunca, extremamente comovido, com uma visão maior e mais profunda que podia abraçar todo o universo.

A semente de Ereshkigal pareceu pulsar na palma da mão do deus das Águas Doces, das Artes e da Mágica. Ele se dirigiu ao barco magur, começando a remar de volta às Esferas Superiores. Quando o barco tinha-se afastado da costa a uma pequena distancia, Enki subiu `a proa e ergueu a mão num adeus silencioso e cheio de amor `a Ereshkigal:

- Que a luz do Mundo Subterrâneo, a terra da Regeneração, Equilíbrio e Crescimento, que um dia em mim brilhou jamais se apague e nem se afaste de mim o seu fulgor. Que ela cubra como uma Coroa de gloria todos os que descerem às Grandes Profundezas com suas almas, corpos, corações e mentes abertos a todos os mistérios! E que Ereshkigal seja para sempre lembrada pelos desafios que apresentar a todos que guiados pela verdade vierem ao Mundo Subterrâneo, para também dele retornar!

 

Alguns meses depois, Enki tomou novamente o barco magur. Seu objetivo neste dia era encontrar a semente de Ereshkigal, que ele havia plantado perto do rio. Serᒠque a semente das Grandes Profundezas poderia ter crescido nas Esferas Superiores, para renascer no Mundo Físico? Enki tinha algumas duvidas, mas tendo experimentado o poder de Ereshkigal, ele sabia que tudo era possível em se tratando da Grande Deusa do Mundo Subterrâneo.

Ao chegar próximo ao ponto onde ele havia plantado a semente, ansioso, Enki esticou o pescoço para poder ver mais à frente. Passaram-se alguns minutos, mas quando um pouco além ele viu as folhas verdes, o pequeno, mas robusto tronco se projetando para o Mundo Físico, o riso de Enki soou cristalino na luz da manhã radiosa de verão. Ele atracou o barco e se aproximou da viçosa arvorezinha, junto a qual o brejeiro e sensual deus se ajoelhou com alegria e reverência. Aqui estava o fruto da semente que havia recebido de presente de Ereshkigal!

- Em verdade, em verdade eu afirmo que a vida realmente vem das Profundezas Interiores, disse ele. Semente que cresceu das entranhas da terra, seja bem-vinda ao Mundo Físico, você que carrega dentro os tesouros das Grandes Profundezas. Que suas raízes mantenham-se firmes em todos os Reinos, que o seu tronco cresça forte à luz da verdade, e seus galhos, folhas e frutos confiram conhecimentos a serem compartilhados por todos, mostrando outras formas de Ser em todos os Mundos e Esferas. Que todos que a encontrarem subam às alturas mais elevadas e desçam às maiores profundezas em busca de equilíbrio e crescimento. A você dou o nome da mais preciosa, mais querida e sagrada de todas as árvores, a árvore sagrada do conhecimento de todas as verdades, ponte entre todos os mundos, a Árvore de Hulupu (4).

Após proferir estas palavras, Enki retornou ao barco magur com um sorriso, um coração pleno e mais do que satisfeito. Hora de voltar para Eridu.

- E para Ningikuga. Desta vez para ser mais do que um bom amigo!

O barco magur zarpou com pressa de chegar. Eridu agora era casa, porto e lar.

 Notas:

(1) Apesar da maioria das referências sobre o Mundo Subterrâneo serem negativas, há também dados menos conhecidos mostram que as Grandes Profundezas também podiam trazer suas benesses: por exemplo, Utu/Shamash, o deus do Sol, viajava todas as noites para lá, para iluminar com sua luz o Mundo Subterrâneo, além de levar consigo bebidas rituais sagradas para as pessoas; Nana/Suen fazia o mesmo durante o dia (Leick, Gwendolyn, A Dictionary of Ancient Near Eastern Mythology, Routledge, 1991). Kramer (Kramer, Samuel Noah, History Begins at Sumer, 1981) cita que Stephen Langdon publicou em 1919 um poema no qual o rei sumério Ur-Namu morre, desce às Grandes Profundezas, e além de ser bem recebido, a ele é dado um palácio e a companhia de mortos, que o fazem se sentir em casa. É importante salientar que nos Mistérios, não existe ascenção às Esferas Superiores sem a descida ao Mundo Subterrâneo.

 (2) Os deuses podiam morrer na Mesopotâmia, pois embora a imortalidade fosse um de seus privilégios, nem todos os deuses eram imortais. Alguns deuses eram vistos como mortos, e nem mesmo heróis podiam-se escapar da morte. Ao contrário de homens e mulheres mortais, os deuses pareciam não morrer de doenças, nem, em geral, ter sua morte causada pela ação de espíritos do mal. Os deuses mortos eram geralmente aqueles que tinham sido assassinados. Talvez o mais famoso exemplo de uma deusa morta seja o de Mãe Tiamat, morta em combate por Marduk (Babilônia), Do corpo esquartejado da mãe original do universo, Marduk criou a civilização babilônica.

 (3) Aqui e especificamente neste ponto, é feita a ligação com um dos mais famosos mitos mesopotâmicos, chamado de "A Descida de Inana". Nele, que não foi escolhido para este trabalho por não se tratar de uma história de amor, é narrado o confronto entre Inana e Ereshkigal. Inana desce à mansão dos mortos, pois tinha ouvido o chamado das Grandes Profundezas, morre pela vontade de Ereshkigal e ressuscita ao terceiro dia por obra de enviados de Enki, nascendo também de Ereshkigal. No retorno de Inana às Esferas Superiores, dois de seus iniciados manterão posteriormente as portas entre os Mundos Físicos e Subterrâneo para sempre abertos. A justificativa para fazer esta ligação aqui encontra-se na primeira passagem do mito de Inana "A árvore de Huluppu" (Inana, Queen of Heaven and Earth, de Samuel Noah Kramer e Diane Wolkstein, 1983), que conta a) a escolha de Ereshkigal pelo Mundo Subterrâneo; b) a descida de Enki às Grandes Profundezas enfrentando uma viagem muito difícil, sendo que Kramer (History Begins at Sumer, Samuel Noah Kramer, 1981) fala de seu combate com Kur por Ereshkigal, e c) mostra que Inana encontrou uma árvore especial, a árvore de Huluppu, e a plantou no seu jardim para seu povo. Desta árvore, posteriormente, Inana tem esculpido o seu trono e o leito sagrado, bem como Gilgamesh, o rei e legendário herói de Uruk (a cidade de Inana) recebe da Mesma árvore os símbolos da realeza dados por Inana.

 (4) Árvore de Huluppu: árvore sagrada, plantada às margens do Eufrates, e transportada por Inana/Ishtar para o seu palácio, e ofertada para o povo da cidade de Uruk e fieis de Inana/Ishtar. É importante salientar que desde os primeiros tempos no Oriente Próximo árvores com significado mágico e ritual eram uma constante e muito reproduzidas em obras de arte. Basicamente, plantas, vegetais e árvores eram considerados sagrados por suas associações com a fertilidade e abundância. Na metade do segundo milênio antes de nossa era, a imagem de imagens híbridas de árvores com desenhos complexos começam a se tornar bastante comuns. Este tipo de árvore transformou-se na clássica árvore da vida neo-assíria, ou árvore sagrada, e pode muito bem ser a origem da árvore sagrada do sistema místico hebreu conhecido como a Cabala, bem como deve ter servido de inspiração para a árvore do conhecimento do bem e do mal encontrada no Jardim do Éden dos antigos hebreus e no Antigo Testamento da Bíblia.

 

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