A SACERDOTISA E ENKIDU
Mito que trata do amadurecimento emocional de Enkidu, o selvagem criado pela Deusa Mãe Ninhursag-Ki para ser o companheiro de Gilgamesh, o arrogante rei de Uruk, por uma iniciada do templo de Inana. Este relato faz parte daquela que é a obra literária mais longa e importante da Antiga Mesopotâmia, chamada o "Épico de Gilgamesh", uma jornada de transformação interior que inspirou inúmeros trabalhos da Antigüidade Clássica. Aqui, a história é contada sob o ponto de vista de Shamhat, a iniciada do templo de Inana, a Deusa do Amor e da Guerra, que é mandada por Gilgamesh para transformar Enkidu num homem e ensinar-lhe as artes da civilização, A escolha deste ponto de vista visa tentar esclarecer pontos a respeito de um dos aspectos mais complexos e menos entendidos da religião mesopotâmica, que é o serviço do corpo ao Sagrado Masculino (e Feminino) que era parte do culto de Inana/Ishtar.
Foi há alguns milênios e muitos séculos atrás, mas nos primeiros dias quando Gilgamesh, o orgulhoso filho do rei Lugalbanda e da deusa Ninsun, ascendeu ao trono de Uruk, que uma donzela, acompanhada de seus pais, foi até o Eana, a Morada dos Céus, o templo sagrado de An, o deus do firmamento e de Inana, a grande deusa do Amor e da Guerra, para buscar iniciação e serviço `a deusa Inana
Shamhat era o nome da donzela, de corpo esguio, longos cabelos negros, olhos escuros e jeito brejeiro. De temperamento forte, ela era uma princesa da Casa Real de Uruk, e tal qual o jovem monarca, também nascida do Leito Sacro, uma filha do Casamento Sagrado.
Desde tempos que se perdiam na memória, o Rito do Casamento Sagrado ou hieros gamos era celebrado com alegria e os maiores festejos em toda Mesopotâmia. Pois quando as estrelas certas brilhavam nos céus anunciando a chegada da primavera, na primeira Lua Nova a brilhar no firmamento, era o dever sagrado do rei casar-se com a Alta Sacerdotisa de Inana, a Grande Deusa do Amor e da Guerra, para assegurar a fertilidade da terra e das pessoas, em todos os níveis e esferas. Sete vezes mais abençoadas eram as crianças concebidas nove meses após esta noite sagrada, pois um destino especial normalmente a estas esperava. Não o mais fácil deles, com certeza, mas um Caminho que poderia ser-lhes aberto, levando-os por atos e valor pessoal a uma grandeza de alma, corpo, coração e espirito mais interior do que exterior, para a glória dos deuses e de toda natureza.
Shamhat tinha onze anos de idade, e considerava-se pronta para fazer seus votos `a Alta Sacerdotisa, iniciando assim a jornada de postulante à iniciação e serviço aos deuses, à Inana em especial. A data escolhida para a apresentação formal ao templo tinha sido cuidadosamente traçada nas estrelas, como era devido a uma donzela da Casa Real de Uruk. De fato, Shamhat tinha esperado ansiosamente por este dia, pois há muito ela desejava trilhar o mesmo caminho da longa linhagem de sacerdotisas rainhas e princesas escribas que eram suas antepassadas (1).
Dia após dia, passo a passo, Shamhat começou a viver entre o templo e o palácio de seus pais, como o esperado de uma futura iniciada e princesa real. De seus aposentos ao templo, Shamhat atravessava jardins, canais e ruas movimentadas até os longos corredores que levavam às salas de aula. Muito tinha de ser aprendido de lição a lição: gramática, a arte dos escribas, poesia sagrada, dança, musica, canto, astrologia, interpretação dos sonhos, matemática, contabilidade e, naturalmente, todos os hinos, ritos, observâncias religiosas, ensinamentos e historias de Inana. O treinamento era longo, a quantidade de trabalho prático e interior `as vezes parecia pesada demais. Shamhat tinha de passar longas horas na biblioteca copiando das tábuas seculares e sagradas, memorizar longas listas de correspondências que haviam preservado a memória da terra antes do nome de homens e mulheres ter sido fixado, estudar contabilidade e compilar uma vez por semana as doações feitas ao templo, uma das primeiras atribuições de jovens iniciados. Esta era uma tarefa um tanto aborrecida, ela tinha admitir com franqueza.
Contabilidade e a ciência dos números (2) eram muito importantes. Uma sacerdotisa e sacerdote deviam ter um cérebro tão bom para os números quanto para os versos sagrados. Era assim, porque a vida das grandes cidades da Mesopotâmia Antiga girava ao redor do templo, a morada dos deuses colocada a serviço da comunidade. As doações feitas aos deuses e ao templo tinham de ser cuidadosamente anotadas, pois eram usadas para também alimentar os peregrinos, os doentes, pobres e necessitados que buscavam o Eana. Mas mesmo apesar da carga de trabalho, Shamhat tinha bastante liberdade, desde que entregasse os trabalhos práticos e demonstrasse amadurecimento espiritual para seus tutores do templo e do palácio.
Outros cinco anos se passaram. Shamhat tinha agora dezesseis anos, e desejava com todo fervor estar quase pronta para ouvir o Chamado da Deusa e resolver o Teste enviado por Ela, não importando a natureza e a qualidade deste. Esta era a tradição seguida desde tempos perdidos na memória pelo templo de Inana. Aquele que almejava o posto de futuro sacerdote ou sacerdotisa tinha de provar seu valor por atos, pensamentos, disponibilidade para servir, integridade e força de caráter. Quando Inana, a grande deusa do amor e da guerra tivesse considerado o futuro sacerdote ou sacerdotisa apto na teoria dos Mistérios, Ela enviava ao escolhido ou escolhida um Chamado sob a forma de uma tarefa. Se o iniciado ou iniciada aceitasse o Teste, o resultado deste é que iria estabelecer ou não a validade e autoridade para o almejado Rito de Ordenação. Shamhat sabia que muito em breve chegaria sua vez de enfrentar o Teste da Deusa.
Se era o resultado do Teste que decidia a função que a futura sacerdotisa ou sacerdote iria ter no templo, havia muitos postos a serem preenchidos. Era grande a demanda por uma escriba habilidosa, uma contadora, dançarinos e conselheiros, e assim por diante. Aconselhamento era algo muito procurado pelos fiéis da deusa. A vida na Mesopotâmia costumava ser dura e curta. As cidades-templo, os únicos blocos de civilização espalhados pelo Oriente Próximo, procuravam manter a paz, mas havia muita competição entre elas. Além disso, tribos nômades, que não hesitariam em destruir tudo e todos que encontravam nos seus caminhos, eram uma constante ameaça para todas as grandes cidades como Uruk, Ur, Lagash, Kish, Nippur, e tantas outras. Era muito provável que as pessoas experimentassem perdas de pessoas amadas, e que o templo se esforçasse por auxiliar a comunidade no que pudesse. Uma das mais importantes funções do templo de Inana e de suas sacerdotisas e sacerdotes era fornecer um porto seguro, um espaço sagrado onde todos pudessem ir e receber conforto, incentivo, cura, beleza e amor para seguir vivendo, principalmente nos tempos de grandes dificuldades.
O cargo de mais prestígio era o de Alta Sacerdotisa de Uruk. Tornar-se uma Alta Sacerdotisa, a escolhida do Coração e da Alma da Deusa, era o que toda jovem iniciada aspirava, mas muito poucas chegavam a atingir meta tão elevada. A Alta Sacerdotisa era a imagem viva de Inana na Terra, e como tal devia ser a mais bem dotada e estudiosa de todas as iniciadas, com um cérebro para preces e administração (pois o templo também devia ser gerido para o bem de todos), ter o coração cheio de severidade e compaixão, um físico resistente e em forma para dar sustentação e amor às pessoas, bem como procurar manter o equilíbrio entre incentivo e critica construtiva para aqueles que vinham até ela em busca de ajuda. A Alta Sacerdotisa também deveria, mais do que qualquer outra religiosa dedicada a outro deus ou deusa, ser exímia na arte de fazer amor, que no culto de Inana significava o serviço do corpo ao Divino Inspirador Masculino (e Feminino), representado pelo homem ou mulher que procuravam tal mediação no templo de Inana.
No culto de Inana, o desejo e a resposta de natureza sexual eram experimentadas como força regeneradora, reconhecida como um presente do Divino, da Deusa. Todas as sacerdotisas e sacerdotes de Inana honravam a vida e o ato sexual como uma experiência religiosa, um tributo à Inana, quando Amada e Amante se encontravam para se tornar um. Para Inana, não havia separação entre sexualidade e espiritualidade. Portanto, na época certa, em geral durante os grandes festivais da Roda do Ano, na privacidade do mais sagrado de todos os altares, o templo no alto da torre sagrada, o zigurate, a Alta Sacerdotisa colocava-se ritualmente no lugar da Deusa do Amor e da Guerra, para se unir ao amante mortal, que encarnava o homem elevado ao status de divindade, o consorte da deusa. Este serviço, que poderia também ser prestado por sacerdotes e sacerdotisas do templo, visava celebrar a fertilidade da terra, do útero, das mãos e dos cérebros, bem como atender às mais profundas necessidades emocionais da pessoa, e não poderia jamais ser usado para ganho pessoal do sacerdote ou sacerdotisa em questão. O ritual amoroso era para a deusa, vista na pessoa necessitada que vinha até o templo. A sacerdotisa ou sacerdote estavam proibidos de usar o oficio sagrado para obter admiração, dependência ou devoção dos fiéis. Para tanto, eles freqüentemente permaneciam anônimos como pessoa, protegidos pelo ofício que tinham no templo. Desta forma, sacerdotes e sacerdotisas eram preservados do perigo de qualquer laço de dependência que poderia se desenvolver naquela ou naquele que procuravam seus serviços. Este era o código de conduta, a Ética não escrita da devoção à Inana. Não havia qualquer incentivo à vaidade pessoal ou promiscuidade. Todos os sacerdotes e sacerdotisas de Inana assumiam este código de honra para com a deusa, mas as exigências eram maiores para a Alta Sacerdotisa de Uruk.
Era também sabido que a futura Alta Sacerdotisa recebia infalivelmente um sinal interior, uma revelação da própria deusa ao final do Teste. Sem o Beijo de Inana, como o Sinal Interior era conhecido, não havia o reconhecimento da experiência espiritual que conferia validade e autoridade ao posto. Seja qual fosse este sinal, Shamhat desejava com todo fervor que tivesse o discernimento de reconhecê-lo e compartilhá-lo depois, quando o momento certo chegasse. A regra não escrita é que não se dava o sacerdócio de Inana a ninguém: os iniciados da deusa e’ que se transformavam por seus atos em Trajes Dela, pela identificação e mediação das qualidades da deusa em suas vidas.
Todas as sacerdotisas ordenadas eram protegidas pela mesma lei que garantia direitos a mulheres casadas que não participavam ativamente da vida religiosa. Sacerdotisas podiam herdar e dispor de propriedades, conforme o quisessem. Sacerdotisas, porém, não podiam abrir e possuir tavernas, pois detinham o conhecimento de bebidas sacras e poções que podiam alterar níveis de consciência, e este conhecimento não podiam revelar. Havia também sacerdotisas que, depois de receberem treinamento no templo, queriam voltar `a vida secular, ter marido e filhos, bem como havia aquelas que escolhiam viver no templo, lá desempenhando as mais variadas atribuições. Que tipo de sacerdotisa, que função Shamhat iria desempenhar dependia de como ela se saísse no Teste enviado pela Deusa.
`A medida em que Shamhat crescia, também crescia infelizmente a reputação de Gilgamesh o rei. Dele era a solidão dos fortes, a beleza daqueles de físico perfeito, que podem tão facilmente transformar-se em orgulho e arrogância. Não havia ninguém que igualasse ou chegasse perto das proezas físicas de Gilgamesh, de sua ousadia e intrepidez. Portanto, nas casas, os homens e mulheres de Uruk, os jovens, os velhos, as crianças murmuravam, não abertamente porém, temendo a ira de seu monarca:
- Ruidoso Gilgamesh, arrogante Gilgamesh! Os jovens ele derrota em combate, as donzelas de Uruk ele quer fazê-las suas, não deixando uma virgem sequer para seu amado, nem mesmo poupando a filha de um guerreiro ou a esposa de um nobre. Mas ele é nosso rei, o que podemos fazer? Quando Gilgamesh irá se portar como o pastor dedicado de seu povo, o guia desta terra, o guardião da cidade? Que os Deuses ouçam as nossas preces pelo amadurecimento do nosso rei Gilgamesh!
Pois nas esferas mais altas, os grandes deuses ouviram o lamento das pessoas, eles prestaram atenção às preces diárias que os sacerdotes e sacerdotisas de Uruk erguiam a Eles pela domesticação do jovem rei. No templo de Inana, a morada dos céus, NInana, a Alta Sacerdotisa, uma mulher de grande conhecimento e sabedoria, já bastante entrada nos anos, sabia que muito em breve um sinal especial seria enviado pelos deuses. Na noite anterior, ela tinha recebido uma Visão. Nela, a Grande Deusa Mãe Ninhursag-Ki, também chamada Aruru, Mãe Terra e Senhora de Toda Criação, tinha-lhe aparecido em toda majestade, e falado em tom alto e claro:
‘ Eu escutei os lamentos do meu povo, atenção especial dediquei `as preces de minhas sacerdotisas e sacerdotes! Em verdade, em verdade eu afirmo que criei Gilgamesh, o Rei, pois Meu e’ o poder de fazer a vida se manifestar em todos os mundos e esferas. Agora então criarei alguém para ser seu igual! Darei um segundo eu, mas diferente a Gilgamesh, para que vento ruidoso encontre vento ruidoso. Eles terão um ao outro para brigar, fazer as pazes e crescer em compreensão e amizade. Criarei este ser de uma imagem de meu cérebro que concebeu tudo o que existe. Eu o farei da essência do firmamento de meu adorado Anu (a Grande Deusa Mãe atirou um beijo para os céus e deixou An, o deus do firmamento, beijar de volta a mão que graciosamente lhe estendia). E da substância das profundas águas de mãe Namu (Ninhursag mergulhou suas mãos nas águas do mar) e de uma pitada de argila, parte de mim mesma. Com estes elementos sagrados, eu dou `a luz a um homem especial, a uma Estrela dos Céus que desce `a terra, no meio da selva, em plena natureza! Enkidu, este e’ o nome pelo qual ele será chamado! ‘
Na mesma Visão, a Alta Sacerdotisa viu um menino que logo se fez homem ser criado pela Grande Deusa Mãe. Ele era uma beleza de se ver, deitado na relva como um recém-nascido, protegido pelo abraço de Ninhursag. A Grande Deusa sorriu, erguendo-se e estendeu a mão para seu filho. Ele aceitou a mão que lhe era estendida, levantando-se com um pouco de insegurança, ficando pela primeira vez em pé, ereto sob duas pernas. Alto, esbelto, dotado de corpo musculoso e forte, cabelos longos, face de grande beleza e olhos claros de maravilha. A um gesto de Ninhursag, um traje de couro cru entremeado de pele o cobriu. Tão parecido com Gilgamesh ele era, mas ainda totalmente intocado pela arrogância e pelo orgulho. Ele, Enkidu, ergueu seus olhos para a Grande Deusa, sendo que toda adoração e amor estavam presentes no seu lindo olhar. Ninhursag-Aruru-Ki declarou então o seu destino:
‘ Enkidu, nascido de mim com a força de Ninurta, o Lutador, forte de corpo, de cabelos ondulados como espiga de trigo, tens a inocência daqueles que jamais tiveram contato com outros seres humanos, e a sabedoria da selva, da terra, das águas dos lagos e da relva dos campos. Bem-vindo à vida, filho do meu corpo gerado pelo meu espírito, novo enlevo da minha alma!’
Antes da Visão se esvair em poeira de estrela, a Alta Sacerdotisa por um breve momento viu Shamhat e o selvagem juntos. Naquela mesma noite, Shamhat sonhou que estava cantando para o luar, banhada pelo brilho de Nana, e a musica que saía de seus lábios era para alguém muito importante em sua vida. Mas quem? No sonho, ela sabia que era ou tinha sido importante para o Desconhecido. A sensação era a um só tempo maravilhosa e pungente, seu rosto extremamente comovido, com um toque agridoce de tristeza e alegria que ela não sabia como definir.
O Chamado da Deusa havia sido ouvido. Agora, chegava finalmente a vez de Shamhat se provar digna da confiança de Inana. Por ora, era esperar e ver como os fatos iriam se desenrolar.
Na floresta, pelos campos e bosques em flor, longe de qualquer contato humano, Enkidu abraçou a beleza da vida pela primeira vez. Um mundo de cores, sons, ruídos, sensações para ele se abriu, e com espontaneidade, alegria, curiosidade, muito prazer e alguns sustos, ele começou a tudo experimentar ao seu redor. A sede de aprender estava em Enkidu, e todo momento era uma oportunidade de algo novo descobrir. Que interessante seguir os animais da selva, ouvir os ruídos da floresta ou provar os mais diversos frutos da terra!
- Estrela caída dos céus, eu percorro esta terra, em harmonia com tudo o que existe nos lagos, na selva, em todas as superfícies! Ninguém me supera em força e destreza, mas minha força está à serviço de toda natureza. Todos os animais são meus irmãos e irmãs, é meu dever portanto salvá-los, e de armadilhas retirá-los sempre que for necessário. Que maravilha vida que me foi dada, quero aproveitá-la e muito amá-la.
Enkidu nada sabia de pessoas, cidades ou países. Ódios, inveja, o amor e a amizade eram-lhe ainda desconhecidos. Vestido de couro cru, tendo como lar a floresta, por teto, o céu, as estrelas e todos os planetas, ele se alimentava de plantas como as gazelas. Beber, ele bebia de onde os animais selvagens a sede satisfaziam. De fato, Enkidu nada sabia das artes da civilização, mas Conhecedor como ninguém dos Mistérios e Caminhos da Floresta, espontâneo, audaz e habilidoso, amigo dos animais grandes e pequenos que povoavam a selva. Amizade tão grande era esta, que ele sempre libertava qualquer ser de quatro patas que numa armadilha de caça caísse, ou que estivesse em perigo de vida, doente ou ferido. Instintivamente Enkidu não podia aceitar como os animais, seus irmãos, podiam ser tomados como alimento ou inimigos.
Um dia, um caçador, ao ver Enkidu, assustou-se, e de um local escondido, no alto de uma arvore, ele viu o Animal Divino libertar as feras das armadilhas que por ele e outros caçadores tinham sido preparadas.
- Toda minha caça liberada, minhas armadilhas vazias ou completamente estragadas? O que isto quer dizer? Por que os deuses estão me presenteando com destino tão cruel? Será que não poderei mais caçar para minha mesa, ter pele para meu uso ou para venda? Raciocinou ele desesperado.
Perplexo e cheio de preocupação, o caçador procurou os conselhos de seu pai, o qual imediatamente urgiu para que fosse a Uruk e buscasse uma audiência com Gilgamesh, o rei. O monarca de Uruk tinha de tomar conhecimento a respeito do homem selvagem. Como o sagrado pastor da terra e do povo de Uruk, Gilgamesh saberia o que fazer,
Gilgamesh ouviu com atenção as palavras do caçador, o pedido desesperado por qualquer tipo de ajuda. O jovem rei considerou cuidadosamente o caso que lhe fora apresentado, e veio com uma solução tão peculiar quanto inusitada:
- Um selvagem, uma estrela caída dos céus, forte e livre? Mas totalmente ignorante do que são donzelas e lindas mulheres, eu aposto que ele é! Vou então pedir à nossa grande Ninana, a sábia e querida Alta Sacerdotisa de Uruk, por uma Donzela do Eana, o templo sagrado de Inana. Que seja esta donzela versada nas Artes da Grande Deusa do Amor e da Guerra, para abraçar o selvagem e fazer dele um homem verdadeiro nascer. Imediatamente esta mensagem irei ao templo enviar, com o pedido de que encontre uma donzela de nobre nascimento e que tenha seguido à risca todos os sagrados ensinamentos. Na mensagem também deixarei claro e explicito, que a iniciada escolhida deverá trazer o selvagem à minha presença ao final de sua jornada. Alguém tão estranho e diferente vou querer certamente encontrar!
Logo que NInana, a Alta Sacerdotisa de Uruk, recebeu a mensagem de Gilgamesh, o rei, ela imediatamente chamou Shamhat à sua câmara de audiências reservadas, situada junto aos seus aposentos no templo. Era neste local, com toda privacidade, que a sábia e experiente Ninana concedia audiências para assuntos da maior relevância para o templo e os desígnios da cidade sagrada de Uruk. A Alta Sacerdotisa mais poderosa (e por alguns, temida!) dentre todas ora ordenadas na Mesopotâmia tinha tomado assento na cadeira alta ao lado de seu altar particular. Shamhat aproximou-se e fez uma profunda reverência em frente `a sua mãe espiritual.
- Recebemos uma mensagem do rei, disse a Grande Senhora, sem mais demoras, e creio que tal mensagem traz a Confirmação dos Deuses dos sonhos que tivemos. Antes de mais nada, porém, devo fazer-te, Shamhat, uma pergunta muito importante. Deves respondê-la com toda franqueza e verdade teu coração, tua mente, teu corpo e tua alma o indicarem.
Ninana fez uma pausa. O coração de Shamhat começou a bater mais forte, mas a jovem se apegou à disciplina que lhe tinha sido inculcada desde o inicio de seu treinamento, quando da sua chegada ao Eana há anos atrás.
- Minha Senhora, aqui estou em vossa presença para servir aos deuses, ao templo e às pessoas que vierem ao templo, respondeu Shamhat, usando as palavras rituais. Por favor, dizei-me como melhor poderei servi-la.
A Alta Sacerdotisa sorriu por dentro. Shamhat estava ansiosa, era evidente, talvez tão ansiosa quanto ela, Ninana, havia estado quando fora chamada a estes mesmos aposentos, pelo mesmo motivo: a decisão de aceitar ou não o Teste. Por um breve momento, Ninana parecer ver não apenas o rosto de Shamhat, mas uma sucessão de jovens faces que deste tempos perdidos na memória tinham refletido o desejo de seguir o Chamado de Inana.
- Estás disposta e preparada para seguir o Chamado da Deusa, onde ele te levar, não importando o resultado que te trouxer ao final? Ninana perguntou.
A voz da Alta Sacerdotisa soou serena e profunda, com a determinação e o carisma daqueles que muito viveram e o máximo aprenderam ao longo de suas vidas em todos os mundos e esferas. Shamhat respirou fundo, fechou os olhos e olhou para dentro de si mesma, para o Centro, onde todas as verdades e porquês se encontram. Só então ela respondeu:
- Longa foi a minha jornada até este dia, e agora que o momento pelo qual tanto esperei é chegado, em verdade, em verdade eu vos digo, nobre senhora, a mais sabia, de todas a mais preparada e amada: seja qual for o resultado do meu Teste, fracasso ou sucesso, eu aceito o Chamado da Deusa com a mesma certeza com que para as fileiras do templo um dia entrei, com a mesma dedicação com que os meus votos de iniciada jurei. Que tudo seja feito segundo a vontade de Inana, pois esta e’ a Vontade e Desejo Maior em mim, fruto de minhas Escolhas e Atos, agora e sempre, em todos os mundos em que eu trilhar.
A mão de Ninana traçou um símbolo e uma benção no ar, deixando um facho de luz se manifestar.
- Respondeste bem, Filha da Minha Alma, disse ela, e logo prosseguiu, tomando da mesa cúbica em frente ao altar uma pequena tábua de argila toda inscrita com caracteres cuneiformes, ostentando o selo cilíndrico real de Gilgamesh para dá-la a Shamhat.
- Eis a mensagem, continuou Ninana. Um homem, um selvagem foi visto nas florestas desta terra por um caçador. Este homem, o caçador contou, parece ser totalmente ignorante das artes da civilização, de como agem os homens e mulheres em sociedade, quer seja no campo ou nas grandes cidades. Eu testemunhei o nascimento deste homem tão silvestre num sonho, quando nossa Grande Mãe Terra, a deusa Ninhursag-Ki, a Rainha e Mentora de Toda Criação, deu à luz a ele em resposta às nossas preces pelo amadurecimento de nosso rei Gilgamesh. Mas voltemos à mensagem. Nosso rei pediu por uma donzela treinada no Eana, nosso templo, versada nas Artes da nossa amada Inana, para abraçar o selvagem e fazer dentro e fora dele um Homem Verdadeiro nascer. Uma vez que esta iniciada mais do que preparada tenha domesticado o selvagem, ela deverá trazer o selvagem transformado à presença do rei. Eu creio que esta donzela especial és tu, Shamhat, a mais preparada e escolhida pela deusa para atender ao pedido de Gilgamesh.
Shamhat sentiu-se ao mesmo tempo encantada e alarmada pelas palavras da Alta Sacerdotisa, pelo pedido do rei. Encantada pela natureza maravilhosa do desafio, alarmada pela responsabilidade que ele trazia consigo. Transformar um selvagem num homem civilizado, e trazê-lo para encontrar o rei de Uruk, que teste maravilhoso e difícil! Será que ela conseguiria levá-lo a bom termo? Shamhat não podia ter certeza, mas sabia que tinha de pelo menos tentar fazê-lo.
O treinamento e a disciplina do templo venceram ao final de alguns minutos carregados de eletricidade. Shamhat fez uma graciosa reverencia `a imagem de Inana, que estava no centro do pequeno altar privado de Ninana, e respondeu:
- Eu sirvo Inana, a mais amada de todas as deusas desta terra, eu sirvo `Àquela que por Sua vontade faz a natureza dar frutos para nossas mesas e traz as maiores alegrias para todos os apaixonados. Eu sirvo à poderosa deusa dos prazeres da vida, a senhora dos desejos mais profundos. `A Primogênita da Lua, eu adoro com grande humildade e devoção, pois Sua Verdade é a luz que norteia com alegria a estrada de minha vida. Por meus votos, pela minha fé, pelo meu Juramento, irei `a floresta mais densa, onde quer que ela estiver , para cumprir o mandato de Inana, e fazer nascer no coração do selvagem a essência mais humana.
Desta vez, o sinal traçado no ar pela Alta Sacerdotisa foi a estrela de oito pontas, a roseta, no reconhecimento ritual da aceitação do Teste por Shamhat. Então Ninana prosseguiu:
- Agora devo dizer-te o Grande Mistério desta jornada. Mais do que um ser humano, do que um homem educado estás sendo chamada a fazer do selvagem que nossas florestas percorre. Em verdade, em verdade te digo, que tudo o que deste momento em diante te falo, num sonho maravilhoso a mim foi revelado. Eu testemunhei o nascimento deste Divino Animal, cujo nome é Enkidu, quando de sua concepção pela nossa Grande Deusa Mãe, Ninhursag-Ki. Ele foi concebido para ser igual em todos os níveis com nosso rei Gilgamesh, como a Resposta dos Deuses `as nossas preces pelo amadurecimento de nosso rei, mas somente se transcender ao seus modos de selvagem, a fera que ruge dentro dele, tanto em atos quanto em pensamentos. Antes disso, ele não será capaz de curar nosso rei. Este foi o significado interior que em Sonho me foi mostrado, mas os dados dos eventos que formam o futuro ainda não foram lançados. O que os Grandes Deuses projetam em resposta às preces da humanidade é Processo e Meta ao mesmo tempo, trabalho e transformação a ser atingida através do engajamento na Realidade da Vida, por atos, pensamentos, força de vontade e paixão. Enkidu poderá ser a resposta de nossas preces pelo amadurecimento do rei enfurecido que temos em Uruk, mas apenas se antes ele tiver aprendido a domar a fera que ruge, o cão que late dentro de si. Shamhat, chegaste ao fim de um ciclo de treinamento completo, com o conhecimento e a experiência dos ritos sagrados. Inicie o selvagem Enkidu na visão do Homem Natural, espontâneo e educado, domestique a fera interior para encontrar o homem civilizado dentro e fora. Esta é a essência de um ser humano completo, alguém que se aproxima do divino por ter transcendido aos seus pequenos e grandes defeitos. Somente quando Enkidu crescer desta forma maravilhosa, ele poderá então se tornar no melhor amigo e companheiro que Gilgamesh, o rei, quer tanto, sem o saber, encontrar.
Por um breve momento, Shamhat sentiu como se o Teste estivesse além de suas forças. Ela engoliu em seco e perguntou:
- Oh, minha senhora, será que serei capaz de fazer tudo isto? Ou que mereça um desafio tão importante e bonito?
Ninana levou alguns minutos para responder, e quando o fez, sua voz era ao mesmo tempo séria e doce:
- Shamhat, filha da minha alma, o que me perguntaste, nem mesmo os Grandes Deuses e Deusas podem responder neste momento, porque cabe a ti descobrir a reposta. Eu posso apenas te dizer que Inana, a deusa a quem servimos com toda devoção e amor, acredita que estas à altura do Teste, pois de outra forma não teríamos tido os sonhos e as visões que tivemos. Portanto, segura na mão de Inana, na fé que tens na Grande Deusa e segue adiante, sem olhares para trás, confiando no teu treinamento, na integridade do teu propósito e no que o Destino que esta’ a se manifestar, sabendo que tudo podes por teus atos alterar. Vai com calma e confia em ti mesma, e mais do que tudo, tenta aproveitar ao máximo esta Grande Jornada, fazendo o normal extraordinário e o extraordinário cotidiano onde o teu coração, a tua mente, teu corpo e espirito te levarem.
- Ireis fazer uma prece à Deusa por mim? Pelo sucesso no teste? Perguntou Shamhat, muito comovida, ao beijar a mão de Ninana.
A Alta Sacerdotisa balançou a cabeça e deixou escapar um suspiro impaciente:
- Filha, depois de todos estes anos de treinamento, pensei que tinhas pelo menos aprendido a nunca perguntar pelo óbvio e evidente! Não sabes por acaso a resposta para esta pergunta?
Shamhat riu, sentindo-se um pouco mais relaxada.
- Eu tenho de admitir que estou um pouco receosa, ela disse, com toda honestidade. Mas também estou morrendo de vontade de enfrentar este Desafio até o fim
Os olhos de Ninana estavam risonhos, mas a voz tinha de novo o tom levemente impaciente e bem-humorado, que eram as marcas de Ninana:
- Deixe agora esta velha aos seus inúmeros afazeres e vá o quanto antes preparar-se para a jornada. Leve tudo o que for preciso, mas não tanto que não possa com facilidade carregar. E o mais importante, Shamhat.....
- Sim, minha senhora?
- Complete o Teste e VOLTE para nós o mais BREVE QUE PUDER!
Shamhat riu, despediu-se e pôs-se imediatamente a caminho para obedecer `a Ninana. Somente a Mais Sabia Senhora para dizer exatamente o que Shamhat precisava para aprontar-se sem maiores emoções, pressa demasiada ou infindável demora
Shamhat e o caçador viajaram juntos, ate’ chegarem a floresta, nas proximidades do local onde Enkidu tinha sido visto pela primeira vez, onde era sabido que ele se confraternizava com os animais silvestres. Lá chegando, à beira de um lago no meio da floresta, Shamhat despediu-se do caçador, ordenando-lhe que retornasse `a sua casa, pois queria encontrar-se sozinha com Enkidu, e dar cumprimento sem interferências aos desígnios que lhe tinham sido dados pela deusa. Naquela noite, a lua cheia brilhava nos céus, e junto à tenda, sob o mais alto carvalho, perto da fogueira, Shamhat cantou para Nana, o Deus da Lua e pai de Inana, e para o estranho Enkidu, a quem ainda não conhecia, tal qual numa outra noite, quando de um Sonho muito especial.
Um movimento, tão leve como brisa de verão, disse a Shamhat que Enkidu estava nas proximidades. Antecipação, confiança e ousadia encheram a jovem iniciada. Será que Enkidu iria aceitá-la? Shamhat não sabia, mas confiava nos desígnios de Inana, no brilho de prata de Nana e no seu papel na trama a se desenrolar. Sem medo ou preconceito, Shamhat abriu seu coração, sua mente, seu corpo e alma para o estranho que a observava por entre a vegetação espessa da floresta, protegido pela noite em festa. Ela começou a se despir, peça por peça.
O luar envolveu o corpo de Shamhat como um traje de glória e ela então foi-se banhar para Enkidu. Espontânea, depois de alguns mergulhos, saltos e reviravoltas, Shamhat nadou para a beira d’água. Neste momento de encanto e magia, a Estrela Matutina veio anunciar um novo dia, trazendo promessas e alegria. Shamhat prendeu a respiração por um segundo, feliz pelo sinal dos céus, o toque de Inana, manifesto no firmamento, mandado por certo para ela ver. Já de pé, a jovem sacerdotisa-em-treinamento ergueu os braços para saudar à Deusa que brilhava nos céus do antes da aurora, e numa prece silenciosa pediu à Inana para que o Homem em Enkidu viesse até’ ela, aceitando-a tal qual como era..
Ele, que em silêncio, surpreso e encantado, havia adorado a Visão de Shamhat, Enkidu, o selvagem, aproximou-se da jovem iniciada. Não sabendo exatamente o que fazer, Enkidu fez um circulo completo em volta dela, considerando a donzela que, em silêncio, também com alegre expectativa o fitava.
- Pequena, mas perfeita, ele disse mais para si mesmo do que para Shamhat, a voz grave cheia de maravilha e surpresa, definitivamente diferente, mas também tão familiar quanto um anseio que até agora eu não sabia ter dento de mim. O que será que tens que fazes meu coração bater, minha cabeça voar e meu sangue cantar?
Shamhat não disse uma palavra, apenas sorriu, e colocou as duas mãos sob seus pequenos e perfeitos seios, na posição ritual da Deusa como o Santo Graal, a Taça Transbordante do Amor, Delícias Incontáveis e Força de Vida, a todos, sem exceção, generosamente oferecida. Neste momento, num mais que de repente, Enkidu tudo compreendeu: como o tigre seguia apenas a sua tigresa escolhida, como o falcão apenas voava com a sua falenas querida, finalmente Enkidu tinha encontrado uma amante, uma grande amiga! E quão especial era esta estranha maravilhosa e já tão querida, em tudo semelhante à Grande Deusa Mãe que ao mundo o havia trazido. Ele tomou mais alguns passos na direção de Shamhat, parando então muito próximo a ela.
Shamhat riu, deliciada, esquecidas suas preocupações de iniciada e donzela sobre como agir para pela primeira vez o prazer do Casamento Sagrado totalmente usufruir. Era chegada a hora de colocar em prática toda a teoria do amor que havia aprendido no templo, a difícil e maravilhosa função de dar o serviço do corpo em honra do Divino Masculino, agora encarnado em Enkidu. Cheia de uma expectativa feliz, Shamhat abriu os braços para Enkidu, mostrando-lhe o quão bem-vindo ele era, convidando-o para cobri-la de beijos, satisfazer seus desejos e mostrar todo o poder de querer. Tal como Inana e Dumuzi sempre se encontravam num ciclo eterno para se amar, agora eram Shamhat e Enkidu que tomavam da Deusa e seu consorte o lugar.
Por sete dias e seis noites (3), à medida em que os sete planetas sagrados viajavam pelos céus, Enkidu e Shamhat compartilharam todas as delicias do corpo, mente, coração e espirito. Um mundo de toques, gostos, sensações e experiências explodiu ao redor deles ao dividirem todos os prazeres, realizarem um do outro os mais ousados desejos. Tantas coisas eles aprenderam um com o outro, tanta coisa eles ensinaram um ao outro.
Shamhat mostrou a Enkidu como fazer alimentos preparados para a mesa com temperos preciosos, ela ensinou-o a beber de outras fontes, diferentes de poços e lagos. Roupas, eles dividiram, uma peça para ele, outra peça para ela. Shamhat contou a Enkidu sobre as estrelas e a memória da terra, os grandes épicos e mitos de antes e depois dos primeiros tempos. Por seu lado, Enkidu mostrou a ela a música dos ventos fustigantes, o rugir das tempestades, o acariciar dos ventos e a mágica da selva, desde os animais mais ferozes ate’ os insetos mais pequenos. Juntos, Shamhat e Enkidu correram pelas trilhas escondidas da floresta, provaram dos mais diferentes frutos, nadaram nos rios e lagos mais profundos, juntos escalaram as mais altas árvores. Quem ensinava, quem aprendia? Difícil dizer. Os dois a realidades antes não exploradas se abriram. Desde o momento em que Shamhat e Enkidu se encontraram, tão maravilhosamente humanos eles se tornaram, e mais: uma mulher e um homem, Amada e Amante, unidos em Liberdade pela aventura de amar e sentir o divino um no outro, dentro e fora, se manifestar.
Ao amanhecer do sétimo dia, Enkidu, segurando Shamhat adormecida em seus braços, sentiu todo o impacto de ter-se rendido `a maravilhosa desconhecida, que se recusava mesmo a dizer-lhe qual era seu nome. Gentilmente, ele se desvencilhou dos braços enroscados no seu pescoço, levantou-se e dirigiu-se para a floresta. Vontade de voltar para onde ele sempre tinha se sentido totalmente `a vontade, ele mesmo e muito querido, era o que Enkidu queria.
‘ Ela é algo maravilhoso,’ ele pensou, correndo por entre as arvores, ‘ um coração indomável dentro da mais educada superfície, ela amplia meus horizontes para limites desconhecidos, os quais, sinto, devo explorar. Com toda liberdade ela veio ate’ mim, com tanta alegria e encanto ela chegou para satisfazer todas as minhas fantasias. Mas antes que eu me renda aos desígnios que sei, no fundo, ela tem para mim, uma vez mais `a floresta eu irei, para ver meus amigos animais selvagens, regozijar-me na sua ruidosa e livre companhia!’
Mas pela primeira vez as gazelas fugiram ao ver Enkidu, o mesmo se dando com todos os outros animais da floresta, que anteriormente o recebiam apenas com ruídos de festa. Desconcertado, mas não totalmente desapontado, Enkidu deu-se conta que tinha pensamentos e sensações mais profundas dentro de si, que queriam se manifestar de alguma forma. Mas qual? Derepente, a floresta, os animais selvagens não mais bastavam para fazer a vida girar. Com surpresa e alegria, Enkidu percebeu que ele realmente precisava mais do que comer e beber, sentir o calor do sol e a grama no corpo depois de uma caçada, ou simplesmente dormir nos bosques em flor.
Pensativo, Enkidu voltou para junto de Shamhat, que, tendo acordado, estava agora sentada numa raiz de arvore que fazia as vezes de banco, penteando seus cabelos e cantarolando uma canção. Enkidu sentou-se aos pés dela na grama, começou a brincar com um pedaço de madeira, ainda pensativo, sem olhar para ela. Após algum tempo, ele pareceu decidir-se. Levantou então os olhos para Shamhat e perguntou:
- O que será que vejo em ti, que me faz esquecer o tempo, mas também me enche de desejo por uma vida diferente, por outras coisas saber e descobrir? As montanhas, os animais selvagens, a floresta perderam um pouco do seu encanto para mim. Sinto, entretanto, um tipo de força diferente. Pensamentos na cabeça e no meu coração, estou mais próximo de seres como tu, e não tanto agora dos animais. O que há em ti que me faz feliz ao ponto de me alegrar apenas por me sentar aos teus pés?’
Ao ouvir as palavras de Enkidu, Shamhat sentiu uma imensa alegria. Ela chamava-o agora de Olhos de Luz, não apenas pelo brilho interior que os olhos de Enkidu refletiam, mas também porque ele havia aberto para ela horizontes que ela não havia sonhado existir. Algo de maravilha eram o carinho dele, sua habilidade no fazer amor. Agora, sabedoria também estava crescendo dentro de Enkidu, portanto talvez fosse a hora certa para lhe contar de Gilgamesh e todo o resto.
- Estamos juntos há sete dias e seis noites, Enkidu, portanto agora tu tens a Sabedoria despertando dentro de ti. Agora, pareces realmente com um deus! Mas há ainda outras grandes surpresas reservadas para ti. Por favor, venha comigo ate’ Uruk, a grande cidade das muralhas grandiosas, onde Inana, a Deusa do Amor e da Guerra e Anu, o deus do Firmamento, reinam soberanos. Lá também vive um rei jovem, orgulhoso e solitário, chamado Gilgamesh, que precisa tanto, embora não o saiba, de um grande amigo. Disso sei eu, mas guarda bem guardado este segredo! Gilgamesh, no fundo do seu coração, sonha um dia encontrar um amigo e igual, para juntos conquistarem grandes feitos, viver juntos felizes momentos. Eu creio que este amigo especial és tu, Enkidu. Por isso te peço: vem comigo até Uruk!
- Existe em Uruk um rei que precisa de um amigo? Um rei que também é parecido comigo? Alguém tão diferente e sozinho.... como eu? Perguntou Enkidu.
Shamhat sabia que tinha capturado o interesse de Enkidu, tocado um desejo que nem mesmo ele sabia ter no fundo do seu coração. Finalmente, Enkidu estava descobrindo a necessidade de se relacionar, de dar tanto quanto de receber. Ela tinha sido o primeiro ser humano que Enkidu havia encontrado desde seu nascimento. Agora ele estava despertando para a vontade de conhecer outras pessoas, explorar novos mundos. Enkidu, o animal divino, havia sido domesticado, sem perder sua deliciosa franqueza e sinceridade.
- Agora que estivemos juntos por este tempo, Enkidu, creio realmente que tu e Gilgamesh precisam um do outro. De fato, vocês dois são tão parecidos! A razão pela qual fui mandada ate’ ti foi um pedido especial feito por Gilgamesh ao templo de Inana, a Grande Deusa do Amor e da Guerra, à qual sou fielmente dedicada. Neste pedido, nosso monarca pediu para que uma serva da deusa fosse ao teu encontro, ficasse contigo e finalmente te levasse a Uruk para encontrar nosso rei. Mas só poderias encontrar Gilgamesh quando num homem natural, sábio e expontâneo te tivesses tornado. Creio com certeza que neste homem tu te transformaste, Enkidu. E eu tenho tanto orgulho de ti!
- Foste realmente mandada até mim? Para me encontrar, fazer feliz e me transformar nesta pessoa que pensa como um homem, mas que também guarda a sabedoria da floresta? Mandada pelo rei para então ser levado à presença dele? A surpresa e alegria de Enkidu eram evidentes
- Sim, Enkidu. Tua chegada foi anunciada em sonhos, e eu vim até ti para satisfazer um pedido muito especial de Gilgamesh. Portanto, o que me dizes? Gostarias de ir comigo a Uruk, conhecer o Eana, o templo sagrado de Anu e Inana, e Gilgamesh, nosso soberano e rei?
- Se é assim como dizes, leva-me para Uruk, onde vive Gilgamesh, cuja força, agilidade e destreza são perfeitas, concordou Enkidu. Mas veremos se o rei é na realidade tão forte assim. Para tanto, eu o desafiarei para um combate. Daí realmente veremos quem e’ o mais forte dentre nós. Vamos ver quem vai ser o melhor na luta, descobrir se podemos realmente ser grandes amigos
Shamhat pôs-se de pé e estendeu a mão para Enkidu:
- Se realmente assim o queres, Enkidu, eu te levarei a Gilgamesh. És tão parecido com ele, Enkidu! Quando olho para ti, tu te pareces com um deus. Como Gilgamesh, de quem vais gostar e amar como um grande amigo, um irmão de alma e companheiro. Mas antes de pôr-mo-nos a caminho, dá-me tua mão para irmos juntos ao local sagrado onde se reúnem os rebanhos (4). Lá, passaremos a noite, e sei que tal qual nosso rei, tu protegerás também os animais domésticos, dos quais homens, mulheres e crianças tiram alimento para seguir vivendo. Este é o rito sagrado ao qual todos os reis se submetem, pois não são os reis os Pastores Sagrados desta terra? Eu te ensinarei então a comer da mesa dos bens da terra trabalhados pelo homem, a beber dos sete cálices a cerveja que traz sabedoria e alegria. Roupas eu dividirei contigo, Enkidu, meu companheiro, adorável amante e amigo! Vem, Enkidu, eu te convido: para Uruk, vem junto comigo!
Dias mais tarde, Enkidu e Shamhat, de mãos dadas, deram entrada pelos portões de Uruk. Shamhat entrou de cabeça erguida, apesar da tempestade que sentia estar prestes a se desencadear dentro dela. De fato, desde o inicio da jornada algo importante estava para acontecer, mas o quê, Shamhat não tinha certeza, e mais ainda, não sabia como definir. Mas a pressão interior havia se tornado mais forte `a medida em que ela e Enkidu se aproximavam de Uruk, apesar de Shamhat ter tentado ignorá-la a maior parte do tempo.
Entretanto, Shamhat sabia que não poderia escapar da Verdade, e uma destas verdades era que Enkidu, desde que haviam deixado a floresta, somente pensava em encontrar Gilgamesh e em começar uma vida nova em Uruk. O entusiasmo de Enkidu pelas novas portas que estavam-se abrindo para ele era algo encantador, mas tinha o efeito de fazer Shamhat ficar mais e mais calada. Eles estavam agora dentro das muralhas de Uruk, em breve ela iria levar Enkidu ate’ Gilgamesh, a conclusão do Teste a que tinha sido submetida quase um assegurado sucesso. Por que então a tempestade interior, por que ela se sentia ao mesmo tempo contente e triste?]
Por onde Enkidu e Shamhat passavam, nas proximidades dos portões de Uruk, ao longo das docas, jardins e ruas da grande cidade, a visão de Enkidu deixava as pessoas boquiabertas:
- Vejam o recém-chegado! De corpo, tão parecido com o de Gilgamesh: menor em tamanho, ossos porém mais fortes! Agora Gilgamesh encontrou um oponente digno dele!
Multidões logo se aglomeraram ao redor de Shamhat e Enkidu. Parecia que toda a cidade tinha-se reunido ao redor deles. Os jovens e as donzelas, por motivos diferentes, admiravam Enkidu, as crianças chamavam-lhe a atenção, querendo-lhe beijar os pés. Todas estas deferência Enkidu recebia com sorrisos, encantado com os cumprimentos.
Tal foi o tumulto que chamou a atenção de Gilgamesh, o rei, que tinha saído `as ruas em companhia de seu fiel ministro. O jovem monarca tinha deixado o palácio para ir ao mais alto e sagrado altar do Eana, o zigurat de Inana, a Deusa do Amor e da Guerra e do deus do Firmamento, An, para com a grande deusa o Casamento Sagrado comemorar.
Enkidu viu Gilgamesh primeiro. Ele soltou a mão de Shamhat e avançou em passos largos por entre a multidão na direção do rei, somente parando em frente do monarca. Desarmado e com ousadia, Enkidu bloqueou a passagem de Gilgamesh, impedindo-o de prosseguir rumo ao templo.
O povo de Uruk prendeu a respiração. Quem se atrevia a bloquear o caminho do rei? Por eletrizantes minutos, Enkidu e Gilgamesh se defrontaram, frente a frente, pernas ligeiramente afastadas, olhos nos olhos, avaliando um ao outro. Por um lado, Enkidu, o Animal Divino transformado num homem de coragem, e por outro lado, Gilgamesh, o rei, o qual, agora furioso pela inusitada ousadia do estranho, rapidamente estava quase a mostrar para todos a Fera que tinha dentro de si. Um circulo completo os dois oponentes fizeram um ao redor do outro, como se fossem leões, tigres ou touros selvagens preparando-se para o combate final.
- Quem está bloqueando meu caminho para o templo? Quem se atreve impedir que me aproxime do Leito do Casamento Sagrado? Quem ousa enfrentar a ira do rei? Bradou Gilgamesh para todos ouvirem.
- Eu, Enkidu, desafio o rei, atrevo-me sim a opor-me ao monarca de Uruk! Pois aqui estou e quero ser visto como seu igual. Prove que estou errado, majestade, se puder!
- Ninguém, eu repito ninguém ousa me desafiar, sem ser logo, logo reduzido a pó logo em seguida! Insolente! Logo você vai ter o que merece! Respondeu Gilgamesh, vermelho de fúria e posicionando-se para a luta.
Enkidu e Gilgamesh se atracaram e lutaram como campeões. Vento bravio havia encontrado vento bravio, raio contra raio, fogo contra fogo. Eles lutaram como bravos nas ruas de Uruk, pelas tendas do mercado. Eles desafiaram um ao outro ao longo dos canais e rios da cidade, o combate avançou pelas avenidas, monumentos, jardins e alamedas de Uruk. O povo, claramente dividido, torcia pelos dois oponentes. De um lado o rei, por outro lado o estranho indomável, faziam da luta um evento sem sombra de duvida mais do que memorável.
Shamhat, junto com a multidão, acompanhava o desenrolar da luta. Por quanto tempo Gilgamesh e Enkidu seguiram lutando, ninguém poderia dizer. Mas, afinal, Gilgamesh levou Enkidu ao chão com um golpe bem calculado, próximo ao coração. Enkidu perdeu o equilíbrio e caiu.
- Ganhei! Exultou Gilgamesh, erguendo os braços num sinal de vitoria para o povo de sua cidade.
Desta vez, porém, sua vitória foi saudada pelo silêncio interessado da multidão, que também não queria ver o estranho derrotado.
Gilgamesh então olhou para o derrotado Enkidu, que estava tentando se erguer. O orgulhoso jovem monarca fitou o mais valoroso oponente que tivera em combate, corajoso e forte, derrotado, mas um grande herói.
‘ Vou poupar-lhe a vida, ‘ pensou Gilgamesh, ‘ Ele foi o mais corajoso guerreiro que tive o prazer de encontrar em minha vida, pois nunca antes tinha sido desafiado com tal audácia e galhardia. Ele e’ aquele que mais próximo chegou da minha força, agilidade e destreza. Definitivamente, não posso manchar minhas mãos com o sangue valoroso deste estranho.’
Shamhat sentiu que tinha chegado a hora para ela também intervir para que a luta não tivesse o mais duro e injusto desfecho. Com segurança e ligeireza, ela se pôs entre Gilgamesh e Enkidu:
- Meu rei e senhor, eu sou a iniciada do templo de Inana, a quem mandastes para a floresta com um mandato real, a fim de trazer este homem, com quem lutastes tão bravamente, `a vossa presença. O valoroso oponente que meu rei derrotou em combate leal é o selvagem primeiro visto nas florestas desta terra pelo caçador, convivendo com os animais das selvas e libertando-os das armadilhas mortais feitas pelos homens. Este e’ o homem a quem me foi solicitado ensinar as artes de mulher e da civilização para que ele então se tornasse num Ser Humano Polido e Educado antes de ser trazido a Uruk, à presença de meu monarca. O desejo de meu rei foi uma ordem à qual segui ate’ o fim. O nome do selvagem tornado ser civilizado e’ Enkidu. Agora que o levei a vossa presença, minha missão esta’ completa. Mas eu lhe peço, meu rei, do fundo da minha alma, corpo, coração e mente, poupai a vida de Enkidu! Na realidade, ele só quer achar em meu rei um grande amigo e companheiro, um irmão de alma, a quem vai amar e respeitar por inteiro!
Gilgamesh olhou para Enkidu e começou a entender tudo o que havia acontecido ate’ ali. Seus instintos estavam certos. Enkidu era realmente um homem especial, um solitário. Tão solitário como Gilgamesh, de fato. Pela vontade dos deuses Enkidu tinha aparecido em seu caminho. Gilgamesh sabia que queria conhecê-lo melhor. Ele daria, portanto, as boas-vindas ao estranho, e mais tarde, se fosse o caso, talvez decidisse sobre seu destino.
Gilgamesh sorriu para Shamhat, que soltou um profundo suspiro de alivio. A seguir, com grande cavalheirismo, o monarca estendeu a mão para ajudar Enkidu a por-se de pé.
- Eu venci, mas toda fúria que me impeliu a lutar não tem mais lugar dentro e fora de mim. Nunca antes tive um oponente tão valoroso, nunca foi uma vitoria tão doce e ao mesmo tempo tão difícil de conquistar. Na vitoria, digo-lhe agora o meu preço pela sua vida: eu quero a sua amizade e companhia, o seu apreço!
Enkidu viu a mão que se estendia para ajudá-lo a levantar-se, fitou o rei que estava pronto para aceitá-lo tal qual era. Como o jovem monarca e ele, Enkidu, se pareciam! Ele aceitou a mão estendida, e abraçou Gilgamesh selando assim uma nascente amizade.
- Quem sou eu para vós, meu rei? Enkidu atreveu-se a perguntar.
A resposta do jovem rei saiu do fundo do seu coração:
- O amigo por quem eu clamava sem saber na minha solidão, o companheiro e meu igual que sempre soube, no fundo, um dia haveria de encontrar. Portanto, desde já convido: vem ao grande palácio de Uruk, viver na corte, onde sou soberano. Um lugar ao meu lado, à minha esquerda, será doravante para ti reservado. Juntos, tenho perfeita confiança, grandes glórias e feitos conquistaremos!
Shamhat tinha testemunhado todos estes fatos. Estranho estar contente e infinitamente triste, mesmo sabendo que tinha agora com certeza sido bem-sucedida no Grande Teste. Enkidu havia sido aceito por Gilgamesh, e ela não tinha medido esforços para que isto acontecesse em todos os níveis, mundos e esferas.
"Porque Enkidu realmente merece alimentar-se de iguarias feitas para os deuses, beber dos melhores vinhos e licores, trajar-se como nobre, ter e fazer muitos amigos e ser por todos muito querido", constatou Shamhat com grande humildade. "E mais. Ele merece uma vida no palácio, ele tem direito a tudo o que Gilgamesh e Uruk possam lhe oferecer. Eu dei a ele algum polimento e maneiras de um nobre, algumas coisas, mas desde p início ele foi adorável com o seu jeito selvagem e espontâneo."
Enkidu deve ter capturado algo das profundas emoções e pensamentos da jovem iniciada de Inana, pois olhou para ela e, ato contínuo, dirigiu-se para Gilgamesh.
- Meu rei, antes de partir convosco, devo despedir-me da sacerdotisa que me trouxe ate’ vós.
Shamhat mal reparou no sinal de assentimento de Gilgamesh ou na breve reverência que o rei, com perfeita cortesia, fez em sua direção. Ela era toda olhos para Enkidu.
- Eu me provei digno da tua confiança? Enkidu perguntou, sua voz mal escondendo o regozijo. Não sou agora um com Gilgamesh, nosso rei? Como tu sempre desejaste que seriamos, desde o começo? .
- Sim, tu te tornaste realmente um com Gilgamesh, respondeu Shamhat com toda sinceridade. E doravante ambos assim o serão para sempre!
Então ela prendeu a respiração, tomada por uma onda de emoção e pensamentos de grande clareza e revelação: o toque da Deusa na sua testa, ressoando na mente, no corpo, no coração e na alma de Shamhat, marcando a jovem sacerdotisa de forma indelével para sempre. O Beijo de Inana, finalmente, a Compreensão Única do Mistério da Deusa recebida por todas e cada futura Alta Sacerdotisa, desde o inicio dos tempos, entendimento este a ser revelado doravante numa vida de serviço a Ela e a todos que amassem a Deusa. Agora Shamhat podia compreender por que tinha sido mandada até Enkidu: se ela tinha iniciado Enkidu à civilização, ele havia sido o catalisador de uma grande mudança que estava se passando agora no interior e no exterior de Shamhat. Derepente ficou tão claro para Shamhat a postura profundamente seria e comovida de cada Alta Sacerdotisa e Sacerdote recém-ordenados. Anteriormente ela não saberia dizer por que era sempre assim. Mas agora ela sabia a verdadeira razão. Ou o motivo por que ela mesma tinha cantado com tanta ternura e tristeza no Sonho que havia anunciado a chegada de Enkidu na sua vida..
‘ Senhora da Paixão, do Amor e de Todas as Ousadias, agora compreendo um pouco mais a profundidade de Vossos Mistérios’ dirigiu-se Shamhat silenciosamente `a Inana.
A imensa capacidade de dar de Inana era tão grande quanto a capacidade da deusa para desistir de algo necessário, a fim de assegurar algo maior. Porque algumas vezes torna-se necessário desistir daquilo que é mais precioso em nome de um crescimento e uma regeneração ainda maiores. Todos os que amavam a Deusa sabem que Ela é a Soberana das Emoções Mais Profundas que definem a Dança do Amor e da Vida. Enkidu nunca tinha sido de Shamhat. Eles dois tinham, isto sim, sido os melhores amigos e amantes apaixonados. E mais, porque Enkidu havia também sido o melhor desafio e iniciador que uma sacerdotisa em treinamento poderia ter sonhado ou à Inana desejado. Com o coração pesado de agradecimento, Shamhat sabia agora com certeza que Enkidu, dentro do seu coração, seria visto como o Maravilhoso Enviado da Deusa para transformá-la numa verdadeira sacerdotisa de Inana.
Havia algo mais que Shamhat devia fazer, independente do fato de que seu coração ficaria em pedaços. Agora que Enkidu havia encontrado Gilgamesh, seu irmão de alma e complemento, Shamhat não era mais necessária. Chegara a hora dela desaparecer com elegância e graça, como seria de se esperar de uma iniciada do mais alto grau e princesa real. Desde o principio, Shamhat jamais havia querido Enkidu para si, como qualquer amante possessiva e imatura o faria. Muito pelo antes pelo contrário, ela havia preparado Enkidu para um mundo onde ele fosse capaz de descobrir por si mesmo, através de suas próprias escolhas e atos. Agora, o lugar de Enkidu era o palácio real, e o dela seria o templo, em tempo integral pelos próximos meses, não no palácio também, para se preparar para os ritos sagrados do alto sacerdócio.
" Primeiro, irei até Ninana, para relatar-lhe do sucesso no Teste. Depois, enviarei uma mensagem a meus pais no palácio. Logo, logo, eles irão ter comigo no templo. Mas meu lugar, por ora, não é o palácio real. Eu não estou em claustro no templo, mas devo me manter afastada de Enkidu, para que ele se acostume `a vida nova, sem depender de mim", raciocinou Shamhat.
Por um momento, ela sentiu uma tristeza ainda mais profunda: será que Enkidu sempre a veria da forma do que eles tinham realmente sido um para o outro, os melhores amigos e companheiros ao longo de uma jornada de descobertas reciprocas a nível interior e exterior? Talvez sim, talvez não. Shamhat balançou a cabeça para esquecer estes pensamentos ainda mais tristes.
‘ Inana, Senhora do meu coração, Companheira da minha alma, ‘ Shamhat orou em silencio. ‘ Espero ter sido bem sucedida neste grande teste e ter mantido o equilíbrio adequado entre o espiritual e o prático, combinado com o alegremente sensual.’ ‘
Em voz alta, ela disse com gentileza:
- Podes me deixar agora. Eu estarei segura no templo. Gilgamesh esta’ esperando por você para retornar ao palácio. Eu... eu não tenho palavras para descrever os dons que trouxeste para dar mais luz `a minha vida. Foste o melhor Companheiro, Amigo e Mais Lindo Desafio de uma Jornada muito especial da qual ambos participamos. Eu te agradeço do fundo do meu coração, Enkidu, Estrela que Caiu dos Céus, Irmão de Alma de nosso rei Gilgamesh. Que a Grande Deusa Inana, que o meu coração inflama e enche de esplendor, guie os teus passos em todos os mundos que resolveres trilhar, e que tua fé e confiança Nela te conduzam por todo sempre!
Enkidu quis dizer algo, mas não conseguiu articular palavra. De alguma forma, ele entendeu intuitivamente que muitas coisas haviam mudado agora que eles tinham finalmente chegado a Uruk e encontrado Gilgamesh. Seus olhos fitaram Shamhat por um longo último momento. Então, com perfeita cortesia, aquele que havia sido o Animal Divino agora em Homem Sábio Transformado tomou a mão da jovem sacerdotisa para depositar um beijo nela, não com o cavalheirismo de amigo especial ou amante antigo e apaixonado, mas com a humildade e respeito de um homem mortal fiel à deusa reconhecendo a substituta da sábia Ninana: Shamhat, a escolhida do coração de Inana para ser a futura Alta Sacerdotisa de Uruk.
Notas
:(1) Enheduana, a filha de Sargão, o Acádio, e Alta Sacerdotisa de Ur, mostra-nos que mulheres tinham acesso à educação secular e religiosa em igualdade com os homens. E´ graças a esta grande escriba que temos hoje à nossa disposição escritos em tábuas de argila alguns dos mais belos poemas e hinos dedicados aos deuses, como a série deles dedicados à Inana. Deve-se mencionar que hinos grafados por escribas podem muito bem pertencer a uma tradição oral bem mais antiga, pois muitos deles são fruto da tradição oral, e esta é tão antiga quanto a consciência, arte e emoção que lhe deram origem. Temos também evidências de que a nomeação da Alta Sacerdotisa de Ur (e possivelmente em Uruk também) era evento de importância nacional em toda Mesopotâmia. O mito de Inana e Enki, ou como Inana obteve as Medidas de Poder Temporal e Sagrado de Enki, o deus da Mágica e da Sabedoria, também atesta o fato de que mulheres possuíam autoridade secular e religiosa na Mesopotâmia. Este mito não foi escolhido para este trabalho, pois trata-se de uma jornada de obtenção de poder pessoal para ser partilhado, e não uma história de amor.
(2) Na matemática temos ainda algo de babilônico conosco. Eles tinham, por exemplo, um sistema numérico e uma matemática sexagesimal. Diretamente da Babilônia e de seus astrônomos é herdamos a divisão do círculo em 360 graus, a hora de 60 minutos, os minutos de 60 segundos, e assim por diante. Aos deuses e deusas também eram atribuídos números. Exemplo: Anu, o chefe dos Anunaki, tinha como número o 60, enquanto que Enki tinha o número equivalente a 2/2 de Anu, ou seja, 40. E´ possível que a tradição cabalística hebraica de atribuir valor sagrado aos números talvez tenha tido sua origem na Mesopotâmia.
Sabe-se também que o grego Pitágoras, que enunciou o famoso teorema que leva o seu nome, visitou a Babilônia, e que foi provavelmente lá que aprendeu a fórmula que lhe deu fama, ensinando-as após aos gregos (Ver " The Exact Sciences in Antiquity" por Otto Neugebauer, 1957).
(3) O número sete em geral refere-se aos sete planetas sagrados: a Lua (Nana/Suen), Marte (Nergal), Mercúrio (Nabu), Júpiter (Marduk), Vênus (Inana), Terra (Ninhursag-Kii), Saturno (Ninurta), Sol (Utu/Shamash).
( 4) A referência aos rebanhos, ou local dos rebanhos, provavelmente está relacionada aos ritos do pastor sagrado, ou seja, sagração dos reis como condutores, guias e reis da terra.