Site hosted by Angelfire.com: Build your free website today!

A DESCIDA DE NINLIL

como Ninlil conquistou o poderoso deus do Ar


Mito sumério, original de Nipur. O texto foi reconstruído a partir de tábuas de argila que datam de 2500-2000 Antes da Nossa Era (4500 anos atrás) (Leick, Gwendolyn, A Dictionary of Ancient Near Eastern Mythology, Routledge, 1991). A trama trata do amadurecimento de dois adolescentes, sendo uma fábula moral sobre a responsabilidade com relação ao filhos que virão a nascer. O que faz de ‘A Descida de Ninlil’ uma das jornadas mais completas pela conquista do amado na mitologia mundial, apesar de muito pouco conhecida, é o fato de que os dois personagens principais enfrentam juntos (se bem que um deles em disfarce) passo a passo os desafios da descida ao Mundo Subterrâneo, transformando-se um no limiar de crescimento do outro. Somente depois de todos os testes, os dois puderam atingir uma compreensão maior do que poderiam se transformar como parceiros, iguais e um verdadeiro casal. Esta mensagem, apesar dos milênios, é tão valida para os jovens de hoje, como o foi para os antigos mesopotâmios.

 Foi há muitos milênios e alguns séculos atrás, antes do alvorecer, logo após a chegada de Ninlil a Nipur, a cidade de Enlil, o poderoso deus do Ar, que a jovem donzela da Casa dos Anunaki sentiu o sangue sagrado correr pela primeira vez de dentro de si. Ninlil olhou para seus dedos vermelhos e molhados com um misto de surpresa, orgulho e timidez. Ela era uma verdadeira mulher agora. Seu útero podia conceber tanto quanto suas mãos e seu cérebro podiam criar. Ela também estava pronta para encontrar um parceiro, amigo e companheiro, não estava?

De imediato, Ninlil saltou da cama para dar as boas novas à sua mãe, a deusa da Cevada Numbarshegunu, que já estava se aprontando para dar as bênçãos da manhã aos campos que estavam sendo trabalhados. O pai de Ninlil, Haia, o deus dos Armazéns, já havia saído àquela hora:

" Mal posso esperar para contar as novidades a papai também!" Pensou Ninlil. " Tomara que ele volte logo ao Kiur, o templo que o jovem deus Enlil nos deu por morada enquanto estivermos em Nipur,"

A família havia vindo para ajudar Enlil, que estava construindo a cidade e fazendo a terra fértil para as pessoas.

Numbarshegunu regozijou-se frente às boas-novas. - Eu sabia que este dia ia chegar! Que você tenha sempre orgulho de ser mulher, que seu corpo conheça e dê prazer em todos os mundos! E principalmente, que você conceba do seu útero tanto quanto você sinta vontade de criar com suas próprias mãos e com as idéias de seu cérebro! Exclamou ela, abraçando Ninlil com afeto. Bem, agora seu pai e eu temos também de achar um pretendente digno de você. Tão radiosa quanto a manhã na qual que os Anunaki, os grandes deuses e deusas, saíram do Duranki, a montanha sagrada da criação, você merece apenas o melhor jovem deus que pudermos encontrar!

Ningal corou, um pouco sem jeito, mas perguntou interessada: - Quem será ele, mamãe?

- Veremos... e você saberá com certeza quando ele chegar em sua vida. Mas agora, arrume-se logo e vá até os canais da cidade e aos campos em flor para abençoá-los com o poder da tua primeira menstruação, o sangue que se não for derramado a cada mês, irá nutrir uma nova vida em toda mulher, pois todos viemos da Grande Mãe Primordial, Namu, as águas do oceano Original. Apenas toma cuidado por onde Anda, pois ouvi dizer que o jovem deus Enlil, o patrono de Nipur, Anda pelas margens do canal, para beijar as terras férteis com o poder da sua respiração que faz tudo crescer, principalmente na primavera. Enlil é jovem, e como todo jovem deus, impaciente e impetuoso. Ele bem que poderia ser a escolha ideal para você, minha querida. Mas não Antes que ele peça a sua mão a seu pai e a mim.

- Mãe, se Enlil é tão especial, fale-me então um pouco mais dele.

- Enlil é o deus do Ar, o Senhor dos Ventos, Brisas e Tempestades. Ele é o filho primogênito de Anu, o deus do Firmamento, e de Ninhursag-Ki, a grande Terra Mãe. De todos os jovens deuses, ele é sem duvida o mais poderoso, pois como poderíamos viver sem o ar que respiramos e que nos rodeia? È na Antecâmara de seu templo sagrado, o E-kur, onde se reúne a Assembléia dos Anunaki, da qual fazem parte os grandes deuses e deusas de nossa terra, e que julga os casos que afetam o destino de todos nós. Foi de Enlil a inspiração para criar a picareta e a enxada para que a humanidade aprendesse a trabalhar o solo. De Enlil é o poder dos ventos da primavera, que afastam o inverno e trazem vida nova ao Mundo Físico, assim como dele são também as grandes tempestades para destruir o que não deve mais existir. Ele também é jovem, minha querida: de fato, vocês dois regulam em idade. Sei com certeza que ele ainda não encontrou a escolhida de seu coração, a eleita que o fará liberar a sua semente, o seu sêmen, e dar-lhe filhos e filhas, para alegria de todos nós. Espero que esta donzela de sorte seja você, Ninlil.

- Mas, mãe, se Enlil é tão importante e poderoso, será que ele irá me notar?

- Quem não repararia em você, filha querida? Retrucou Numbarshegunu gentilmente, estendendo a Ninlil um espelho delicado que estava sobre a mesa de cabeceira.

- Mire-se neste espelho, Ninlil: o que você vê? Não, não precisa me responder neste momento. Pensa na imagem que o espelho reflete: ela não lhe faz feliz? Pois deve, e muito! Esta imagem é você, única e muito especial. Aliás, todos somos únicos e especais, apesar de muitos não se darem conta deste fato tão evidente! E jamais se esqueça do mais importante.....

- O que é mais importante, mamãe?

- Que você é minha filha! E agora, gentil donzela, cumpra o seu primeiro dever como jovem deusa da Casa Sagrada ao se tornar mulher de fato e direito: vá e abençoe as águas e os campos com o poder de dar a vida, de ser realmente uma mulher que você conquistou hoje!

Rindo, Ninlil ganhou as ruas de Nipur, vazias àquela hora da manhã. `A medida em que cruzava a cidade, ela sentiu uma leve brisa seguí-la, vinda não se sabe de onde, brincando com seus cabelos soltos e a barra do seu traje matinal. Ninlil virou-se na direção da brisa com alegria. Ela estava seguindo a Brisa ou era a Brisa quem a estava seguindo? Difícil dizer! Logo, Ninlil estava se movendo ao sabor da Brisa, numa coreografia espontânea. O mundo estava cheio de cheiros de primavera e o friozinho matinal era tão estimulante quanto a dança na qual estava engajada com o Ar em Movimento.

De repente, Ninlil deixou de sentir a Brisa. Ao invés, ela estava realmente dançando com um estranho. Surpresa fez Ninlil parar e examinar o desconhecido abertamente. Ele era alto, esbelto, de olhos claros e brilhantes na luz da alvorada. Havia algo de muito especial nele, pois de tez clara, parecia quase não ter cor, mas ser também o oposto das trevas. Ele era Força, Energia Volátil, Poder vibrante. Ninlil parou na frente do jovem estranho muito quieta, mas, de fato, uma tempestade estava acontecendo dentro dela. Difícil explicar, mas o estranho tinha um efeito bastante devastador. Derepente, Ninlil sentiu como se cada célula do seu corpo se voltasse para ele, ela o queria bem perto, mas não sabia como ou por quê. Seria isto então desejo?

Foi o desconhecido quem rompeu o silêncio de avaliação recíproca depois de alguns instantes que pareceram séculos para Ninlil:

- Quem é você? Eu ainda não a conheço, e conheço todos que vivem na minha cidade.

‘Minha cidade? Então este é Enlil em pessoa, o jovem deus do Ar!’ concluiu Ninlil. Para esconder a alegria e repentina timidez, Ninlil refugiou-se nas boas maneiras de uma donzela da Casa Sagrada. De imediato, ela fez uma gentil reverência e se apresentou a Enlil:

- É uma honra conhecer-vos, meu deus e senhor. Chamo-me Ninlil, uma recém-chegada a vossos domínios, filha de Haia, o deus dos Armazéns e da deusa Numbarshegunu, a soberana das Cevadas. Estamos aqui a vosso convite, para ajudar-vos a construir vossa grande cidade e assegurar com nosso trabalho a fertilidade do solo. Como posso melhor servir-vos?

- Eu gostaria muito de provar os seus lábios, jovem donzela! Você quer me dar um beijo, Ninlil? Como brisa, eu toquei seus lábios, brinquei com seu traje bonito. Como homem, desejo agora provar a sua boca, tocar a sua língua e sentir a doçura do de seu corpo. Vem para os meus braços, Ninlil, pois quero experimentar com você delicias com as quais sonhei, mas até agora jamais na realidade provei.

Tomada de surpresa pela abordagem direta de Enlil, Ninlil deu um passo para trás. Ela certamente havia gostado de brincar com a brisa impetuosa, mas será que era sensato aceitar os avanços do jovem deus? Tudo o que ela sabia a respeito do que se passava entre um homem e uma mulher era só na teoria. As artes de dar e receber prazer em breve ser-lhe-iam ensinadas na prática, no templo, como parte do seu treinamento de jovem deusa, agora que o Sangue Sagrado tinha se manifestado. Mas por agora, será que ela, Ninlil, tão inexperiente, saberia satisfazer a Enlil? Ninlil nunca tinha sido beijada nos lábios, ela ainda não havia tocado o corpo de um homem no leito sagrado. Cautela e timidez venceram a curiosidade e o desejo.

- Sois importante demais para mim, meu senhor. Sou muito jovem, não conheço ainda intimamente homem algum. Minha vagina é por demais estreita, meus lábios ainda não aprenderam a beijar. Escolhei pois uma outra donzela!

Ninlil disse estas palavras e fugiu para as águas do canal, procurando os braços que levavam ao rio. Ela precisava ficar sozinha para Analisar seus sentimentos. Porque parte dela queria voltar e ficar com Enlil, mas a outra metade lhe comandava cautela.

" E se eu o perder?" considerou Ninlil. " Mas não, é melhor esperar, procurar entender o que está acontecendo comigo primeiro. Será que Enlil estava tão frustrado e confuso quanto eu?"

Ninlil nadou da forma mais silenciosa que pôde até os juncos altos perto das margens do rio. Daquele ponto de vantagem, ela podia observar Enlil sem ser vista. Ele parecia ter sido vitima de um tornado, de tão surpreso e zangado que estava.

- Espere! Volte aqui, agora mesmo! Por que você está fugindo de mim? Nusku! Em nome de todo firmamento e das estrelas, onde você se meteu?

" Ele está zangado comigo ou com ele mesmo? Ou com nós dois?" pensou Ninlil da segurança dos juncos altos.

Porque ela realmente se sentia atraída por Enlil, o mais poderoso da geração mais nova dos Anunaki, os grandes Deuses e Deusas da Mesopotâmia. Naturalmente, ela tinha conhecido outros jovens deuses, mas nenhum outro tinha feito seu sangue correr feito uma carruagem puxada pêlos mais bravos leões, e as suas entranhas se derreterem como manteiga fresca ao sol de verão.

" Antes, eu só imaginava o que era desejo. Agora eu sei", deu-se conta Ninlil, admitindo a verdade com sinceridade. " Que estranho este fogo que arde dentro do peito, uma vontade de querer maior, e não saber direito o que fazer. Por isso eu me escapei dele. Preciso de tempo para considerar meus sentimentos e pensar Antes de ir até ele. Porque com certeza irei até Enlil!"

Maravilha das maravilhas, Ninlil chegara à conclusão de que gostaria muito um dia de desposar Enlil e se tornar na sua escolhida deusa e senhora do Ar, rainha de Nipur.

Em resposta ao grito de Enlil, um homem um pouco mais velho apareceu. Nusku, o conselheiro e primeiro-ministro de Enlil, o mais fiel servo e ajudante do jovem deus do Ar:

- `As suas ordens, meu senhor. Algum problema?

- É uma garota nova, recém-chegada a Nipur. Ninlil é o seu nome, e ela ousou não só me ignorar, como escapar de mim. Rápido, Nusku, pegue a mais próxima jangada que achar, pois quero ir atras desta donzela. Nunca Antes alguém se atreveu a me recusar algo ou alguma coisa. Eu quero esta atrevida de um jeito ou de outro! - Eu ouço e obedeço, meu senhor. Vou até o cais para ver o que posso encontrar.

A zanga de Enlil era tão engraçada! Ninlil tive de fazer um grande esforço para não soltar uma risada. Então Enlil sempre tinha todos os seus desejos satisfeitos por todos, nunca nada havia-lhe sido recusado! Que arrogante! Ninlil só começou a se preocupar quando Nusku apareceu de volta numa velha jangada, provavelmente pega de empréstimo de um pobre pescador. Enlil pulou para dentro do barco primitivo e juntos, ele e Nusku, começaram a procurar por Ninlil.

- Ela não vai agüentar ficar debaixo d’água por muito tempo. Não sei porque, mas tenho de tê-la. Há algo nesta donzela que me atrai, não sei dizer o quê. Só sei que preciso vê-la de novo e fazê-la minha.

- Meu senhor a terá. Quem, afinal, poderia resistir ao grande Enlil? .

Em silêncio, Ninlil deslizou por entre os juncos altos às margens do canal. Mas suas chances de escapar agora eram muito reduzidas. Contra as forças de Nusku e de Enlil combinadas, ela podia apenas esconder-se e desejar que eles desistissem de perseguí-la.

- Lá, meu senhor, entre os juncos! Avistou-a Nusku.

Ninlil começou a nadar mais rápido, mas Enlil logo a alcançou. Num movimento ligeiro, ele inclinou-se para içá-la das águas, deitá-la na jangada e ficar em cima dela.

Ninlil lutou com todas as suas forças, mas em vão. Enlil era muito mais forte. Logo os lábios dele estavam nos dela, as mãos do deus do Ar em todo lugar por seu corpo, rasgando pedaços de roupa pelo caminho. Então o membro dele forcou a pele sensível que conservava a virgindade da donzela. Ninlil soltou um grito de dor. Mas então Enlil já estava dentro dela, movendo-se num ritmo desconhecido. Ela se debateu o quanto pode, tentando escapar de todas as formas. Foi então que o desconforto inicial deu lugar a uma sensação nova que obliterou qualquer outro pensamento racional dentro dela. Neste exato momento, o sêmen de Enlil foi derramado dentro dela. A sensação foi tão intensa que Enlil parou de se mover, procurando os olhos de Ninlil.

- Eu consegui! Minha semente está dentro de você! Oh, Ninlil!

Havia surpresa, admiração e respeito na voz de Enlil. Mas Ninlil não ouviu o deus do Ar chamá-la pelo nome, e mesmo se ouvisse, não lhe daria atenção. Seu corpo todo doía, sangue escorria em filetes pelas pernas, sonhos de um amante nobre, doce e delicado destruídos para sempre. O que Ninlil havia vivido era a negação de todos os sonhos que uma donzela pode ter a respeito do amor e paixão, de viver feliz para sempre. Ela empurrou Enlil com toda força que pode reunir e mergulhou nas águas do canal. Naquele momento, Ninlil precisava de uma barreira física e lavar-se para afastar as marcas de Enlil do corpo. E da alma, se pudesse também. Para sempre.

- Ninlil, não se vá, por favor, espere!

Ninlil ouviu Enlil chamá-la pelo nome, e se não estivesse tão cheia de dor e raiva, teria reparado na mudança de tom, na deferência com que Enlil estava-se endereçando a ela desta vez. A donzela Anunaki nadou até a costa, e saiu das águas do canal com grande dignidade. As roupas de Ninlil estavam molhadas, rasgadas e manchadas de sangue, seus lábios pisados e juncos se emaranhavam nos longos cabelos negros. Lágrimas que ela não se importava de esconder escorriam pela sua face. Ela só queria ir para casa, para a segurança do Kiur, o lar dado a seus pais naquela cidade.

Antes de partir, porém, Ninlil virou-se na direção da jangada, onde Enlil encontrava-se de pé, ainda sob o efeito dos últimos acontecimentos. Então, ela pronunciou as Palavras do Destino, endereçadas a Enlil, sua voz cheia de força, dor e imensa tristeza:

- Nunca antes deste dia uma filha da Casa Sagrada de Anu, uma donzela e princesa Anunaki foi tão maltratada por um jovem deus. As águas de Mãe Namu, a origem da vida, foram maculadas por um dos seus filhos. Que os céus, a terra e as Grandes Profundezas ouçam este meu lamento! Que Enlil seja levado a julgamento pelo crime que fez contra mim, e que ele pague o mais alto preço pelo brilho de seu futuro filho!

 

Das Esferas Mais Altas, Anu, o poderoso deus do Firmamento e pai de todos os deuses, o adorado de Ninhursag-Ki, viu as lágrimas amargas de Ninlil, testemunhou o comportamento terrível de Enlil, seu dileto primogênito. Exercendo imediatamente sua autoridade, o deus do Firmamento convocou a Assembléia dos grandes Deuses e Deusas das Esferas Superiores, os Anunaki das Alturas, para o julgamento de Enlil.

A Assembléia dos Anunaki era a maior autoridade no universo da Mesopotâmia, encontrando-se, quando surgisse a necessidade, na antecâmara do templo do próprio Enlil em Nipur, para julgar criminosos e eleger os escolhidos para reinar sobre a terra. Todos os deuses e deusas eram obrigados por juramento sagrado a acatar as decisões da Assembléia. O jovem deus encarregado de verificar se as decisões soberanas da Assembléia tinham sido executadas era Enlil. Desta vez, porém, Enlil não iria sentar-se entre os juizes, mas sim ser levado a julgamento. Ninguém, nem mesmo o primogênito do deus do Firmamento e da Terra Mãe, estava acima da lei.

Das grandes Profundezas, a grande Deusa do Mundo Subterrâneo, Ereshkigal, soube do comportamento indesculpável de Enlil, também escutou o lamento da donzela. Ereshkigal sabia já com toda certeza de que um portal havia sido aberto para Justiça, Crescimento e Regeneração no Mundo Subterrâneo, mas Enlil teria de se submeter em primeiro lugar aos desígnios das grandes Profundezas. Nas Esferas do Mundo Físico, em Nipur, a grande Mãe Terra, Ninhursag-Ki, tinha plena convicção de que Enlil deveria ser punido por sua conduta. Os céus e a terra clamavam justiça, a qual Enlil, certamente, teria de se submeter. Nas Grandes Profundezas, Ereshkigal, porém, apenas calou-se e pôs-se a esperar.

 

Nunca antes deste dia os Anunaki tinham levado a julgamento um dos Grandes deuses. Chocados e circunspectos, eles se reuniram, como de costume, mas desta vez eram quarenta e nove e não cinqüenta em numero, pois Enlil não se encontraria entre os grandes juizes nesta ocasião. Na plataforma inferior, postaram-se quarenta e seis juizes; na plataforma superior, estavam Anu, que presidia os trabalhos, ladeado por Ninhursag-Ki à sua direita e Enki à sua esquerda. Pai, mãe e irmão querido eles eram de Enlil, mas também os guardiões dos atributos da civilização, da lei e da ordem. Especialmente para Enki, era muito difícil não olhar para o quarto lugar na plataforma superior, agora vazio, pois era o lugar de Enlil. Ninlil, de olhos inchados e vermelhos, tendo ao seu lado a deusa das artes da cura, Gula, estava sentada silenciosa e digna à direita. Em frente a Ninlil, mas no outro extremo, à esquerda, estava Enlil, cujo desconforto era evidente para todos.

Anu abriu a sessão:

- Dois crimes gravíssimos foram cometidos por um dos grandes deuses. Em primeiro lugar, uma donzela da Casa Sagrada sofreu a mais hedionda ofensa que pode ser infringida a uma jovem mulher. Em segundo lugar, também ligado ao primeiro crime, a santidade do ato sexual, a Força de Vida e Energia que move a Criação e perpetua todas as existências, foi manchada de forma indelével. Meu coração sangra pelo acusado, meu dileto primogênito Enlil, mas sangra ainda mais pela donzela da Casa Sagrada, por minha filha Ninlil. A Assembléia foi chamada para decidir a punição para o culpado. Pois ninguém, eu repito ninguém, nem mesmo os grandes deuses de todos os mundos e esferas, esta acima da Lei Maior do Universo! Ouçamos, portanto, o que o acusado tem a nos dizer em sua defesa!

Enlil levantou-se, deu um passo à frente e fez um reverência aos juizes e `a Assembléia antes de começar numa voz constrangida e baixa:

- Nunca antes deste dia tinha eu sentido desejo tão grande por uma donzela. Nunca antes deste dia senti tão forte atracão por uma princesa da Casa Sagrada. Nunca antes deste dia tinha conhecido a paixão como senti e ainda sinto por Ninlil.

- É tudo o que você tem a dizer em sua defesa à Assembléia? Sua defesa é baseada apenas no desejo e na paixão? Perguntou Ninhursag-Ki, a voz da grande Mãe Terra soando tão afiada quanto a bainha de uma adaga.

- Sim, replicou Enlil, em voz contida, sentindo-se já de antemão perdido.

A fúria de Ninhursag-Ki era mais do que evidente. Com um gesto de sua mão poderosa, a grande Deusa e Mãe Terra fez Enlil calar-se e, se ele não fosse o jovem orgulhoso que era, teria-se encolhido em seu lugar. Ninhursag-Ki voltou-se então à Assembléia:

- É certo sentir desejo, é esperado que um jovem deus se sinta atraído por uma donzela da Casa Sagrada. Acima de tudo, é esperado que o jovem casal se encontre, que as famílias se acertem e que na hora e estações certas, que eles finalmente se encontrem para o Rito do Casamento Sagrado. Esta é a forma através da qual a Santidade da Vida é celebrada entre nós, desde que Mãe Namu, as Águas do Mar, deu origem à vida representada por meu amado deus do Firmamento e a mim mesma, como a Montanha Cósmica Ki. A impetuosidade e confusão dos jovens para lidar com temas tão profundos como os sentimentos da carne são perfeitamente compreensíveis, pois eles precisam de tempo para entender que o corpo, o sentimento, o coração, a mente e a alma são em si mesmos, na sua Sagrada e Indissolúvel União, o Retrato do Mistério da Criação. Em verdade, em verdade todos sabemos que todos viemos e somos um com a Fonte de toda a vida, e que nós, os grandes Deuses e Deusas, somos apenas as Reflexões Daquele e Daquela que são Um/Uma. Ninlil e Enlil são ambos muito jovens, entretanto juventude não se constitui em desculpa para a quebra das leis sagradas. Pois como um garanhão espera pelo tempo certo para se encontrar com a sua égua, como um leão sente-se apenas atraído pela sua leoa escolhida, assim também deve ser com um jovem deus e uma jovem deusa. Na hora certa, depois de todos os preparativos e festejos, os jovens devem então se encontrar para se amar, quando ambos estiverem prontos e conscientes do Mistério que no Leito Sagrado irão realizar. Assim tem sido desde o começo dos tempos, assim deve ser até o final dos tempos. Esta é a lei sagrada, e qualquer violação a este preceito fere o Espirito, a Alma e o Modelo sobre o qual se formou nossa civilização. Em verdade, em verdade eu afirmo à Assembléia que a Lei Sagrada deve ser preservada!

- A Lei Sagrada deve ser preservada, repetiu em uníssono a Assembléia.

- O acusado deu a sua versão dos fatos, continuou Ninhursag-Ki, voltando-se a seguir para Ninlil. Ouçamos agora a vitima. Filha da Casa Sagrada, gostaria de endereçar palavras `a Assembléia?

Ninlil levantou-se e graciosamente inclinou-se frente aos juizes. Mesmo com os olhos inchados e vermelhos, havia profunda dignidade em sua postura, a postura de uma Donzela da Casa Real dos Anunaki, princesa e sacerdotisa em formação:

- Nada pode desfazer ou apagar o ofensa que me foi feita. Ah, quisera eu que este dia jamais tivesse acontecido! Mas a verdade é que não posso voltar atrás. Acima de tudo, agora dentro de mim, carrego o primeiro filho de meu e de Enlil, um bebê de luz que esta’ crescendo em meu ventre, uma criança concebida de desejo imaturo dos dois lados. Por meu direito, por meu nascimento, duas reivindicações faço a esta nobre Assembléia. A primeira é nada mais, nada menos do que o reconhecimento de meu bebê como o primogênito de Enlil e meu. A segunda reivindicação é a punição do meu estuprador, para que ele sirva de exemplo para outros, e que jamais uma filha da Casa Sagrada, ou outra menina e mulher de qualquer idade, crença ou denominação sofra o ato de violência hedionda ao qual fui submetida. Quanto a mim, nada tenho a pedir , a não ser uma resposta desta nobre Assembléia....

Ninlil parou, incerta sobre como prosseguir.

- Faça sua pergunta, Ninlil, incentivou Enki, e faremos o possível para respondê-la.

Ela engoliu em seco antes de enunciar a pergunta:

- Grandes Deuses e Deusas, meus irmãos e irmãs, pode o amor crescer a partir de tanta dor para dar alento e esperança ao resto da minha vida?

- Ah, Ninlil! Foi o gemido estrangulado de Enlil que soou no profundo silêncio que se seguiu `as palavras de Ninlil.

Foi Enki, o deus das Águas Doces, da Magica e das Artes, o irmão favorito de Enlil, quem respondeu a Ninlil, depois de pensar por algum tempo:

- A tristeza e a dor são as medidas da felicidade e da alegria que não puderam ser. O amor e a cura sempre podem voltar a crescer, mas apenas se formos capazes de ver a verdade e compleitude além dos desafios mais difíceis que nos são apresentados pela vida..

- É tarde de mais para que eu tome Ninlil como minha esposa? Interrompeu Enlil, dirigindo-se á Assembléia.

Ato continuo, ele foi até Ninlil, ajoelhando-se graciosamente na frente dela:

- Queres me aceitar como teu verdadeiro esposo, Ninlil? Nada pode desfazer minha violência e insensatez, e eu mereço o mais severo castigo pelas minhas ações, mas tenho também o dever de honra de reparar o mal que te fiz, minha senhora, e a meu filho. Eu farei muito mais do que apenas me casar contigo, Ninlil. Na frente da Assembléia, dos deuses e deusas desta terra, eu afirmo que de agora em diante, todo meu poder compartilharei com minha futura esposa Ninlil, a escolhida e única do deus do Ar, para que ela se torne a verdadeira parceira dos meus caminhos e o desejo da minha alma em todos os lugares, caminhos e mundos que eu trilhar.

Outro profundo silêncio seguiu-se `as palavras de Enlil.

Ninlil, do seu lugar, sentiu seu coração se enternecer, mas a razão comandou-a a não revelar seus sentimentos abertamente. Enlil a estava aceitando como sua igual, o filho que teriam juntos, o bebê de luz, tinha sido reconhecido por Enlil como seu primogênito frente à Assembléia. Mas a verdade é que o jovem e orgulhoso deus do ar havia cometido um crime sem precedentes contra ela, contra todas as donzelas e mulheres, trajes humanos de Ninhursag-Ki, a quem Enlil havia jurado defender. Enlil deveria ser levado a julgamento, não obstante a reparação que havia feito a ela e ao bebê, como um exemplo para todos na Mesopotâmia, independente de sexo e idade.

Apenas Enki sorriu. A sabedoria tinha começado finalmente a achar um pequeno espaço no coração de Enlil, dando substância ao deus do Ar. Os Anunaki se mexeram em seus lugares, indecisos. Mas a voz de Anu fez-se ouvir profunda e firme:

- A possibilidade de casamento é apenas o primeiro ato nobre para o restabelecimento do equilíbrio. Mas não absolve o acusado. O comportamento violento e a impunidade de Enlil tocaram raízes mais profundas do que estas. Enlil se fez o Guardião da Terra para zelar, amar e proteger primeiro sua mãe e por conseqüência, todas as mulheres, donzelas e meninas, que nada mais são do que as versões humanas de minha amada Ninhursag-Ki. Foi o próprio Enlil quem proibiu a violência no Mundo Físico. Agora, foi ele mesmo quem trouxe a violência para a Casa Sagrada dos Anunaki. Enlil rompeu o pacto sagrado de confiança que depositamos nele. Eu afirmo neste momento que o Firmamento rejeita Enlil como seu jovem líder e representante.

- Em verdade, em verdade eu afirmo que a Terra rejeita Enlil neste momento, referendou Ninhursag-Ki.

- Que assim seja! A Assembléia rejeita Enlil da mesma forma! Ecoaram os juizes.

- Para onde devo ir então? Perguntou Enlil atordoado.

Enki deixou escapar um profundo suspiro:

- Agora que a terra e o firmamento o recusaram, Enlil, só existe um lugar para onde você pode ir, meu irmão. Este é o local onde todos os erros são reparados, todas as verdades reencontradas, mas há um preço alto a se pagar pelo equilíbrio restaurado. Para as Grandes Profundezas, o Mundo Subterrâneo, é que você deve ir, Enlil..

- Que Enlil vá ao Mundo Subterrâneo e só retorne depois de ter reparado suas ações! referendou a Assembléia.

- Mas não sei o caminho para o Mundo Subterrâneo, objetou Enlil, ainda tentando evitar o seu destino.

- Há uma porta aberta para o Mundo Subterrâneo em cada alma para restaurar equilíbrios perdidos, para aprender, crescer e mudar. No momento em que você forçou sua vontade sobre Ninlil, você abriu esta porta. Vejamos agora se você pode passar por ela e pagar o preço pelo seu retorno. Agora você se tornou no guardião do portal das tuas próprias grandes profundezas, Enlil, disse Enki.

Os olhos de Enlil percorreram a Assembléia até encontrar os de Ninlil. Ambos mergulharam na intensidade dos sentimentos um do outro, totalmente abertos e vulneráveis pela primeira vez. Então Enlil retirou o contato.

Eu sou Enlil, o deus do Ar e Guardião da Terra,’ ele afirmou para si mesmo, num juramento silencioso,’ pela minha honra, pelo meu poder, vou conquistar tudo o que por um momento de paixão e violência pz a perder. ‘

Enki aproximou-se de Enlil. Os dois irmãos se encararam por um breve, mas intenso momento. Enki fez um leve sinal de assentimento para Enlil, que respondeu da mesma forma.

O dialogo sem palavras queria dizer um voto de amor e confiança dos dois lados. Enki, a partir deste momento, iria representar Enlil na sua ausência do Mundo Físico. Ao mesmo tempo, Enlil sentiu a sua admiração e respeito por Enki, seu meio-irmã menor, crescer num nível muito mais profundo.

" Enki sabe realmente do que está falando, porque ele mesmo tinha ido às grandes Profundezas e retornado para o Mundo Físico. Pois se Enki tinha voltado, eu também voltarei, " jurou Enlil silenciosamente, para si mesmo.

Com este ultimo pensamento, Enlil voltou-se para despedir-se da Assembléia com uma reverência, e curvar-se gentilmente numa despedida para Ninlil. Então, ele deu um passo `a frente, formulando a intenção de desaparecer dos aposentos da Assembléia, de Nipur e das Esferas Superiores, para penetrar no Mundo Subterrâneo. Seu pedido foi atendido, pois imediatamente Enlil não foi mais visto no Mundo Físico.

Ninlil foi a primeira a se recuperar do choque do desaparecimento de Enlil. Ela se levantou do seu lugar, foi até o local onde o deus do Ar tinha estado a alguns momentos atras, ao lado de Enki. Foi para ele que Ninlil se dirigiu:

- Poderoso Deus Enki, senhor da mágica, das artes e das águas doces, então Enlil realmente desapareceu? Para o Mundo Subterrâneo com certeza?

Enki olhou para Ninlil com interesse. Tão jovem, mas forte, e provavelmente muito inexperiente e inocente também. Mas as jornadas ao Mundo Subterrâneo, as Grandes Profundezas onde a Justiça e o Equilíbrio perdidos são encontrados são as Esferas da Sabedoria aprendida através da Experiência, pertencendo portanto também aos Divinos Inexperientes e Inocentes. Inocência que não é ignorância, mas discernimento tão grande que vê todos os lados e não se deixa corromper pelo que vê ou vêm a experimentar.

- Sim, Ninlil, ele se foi. Esperemos que por pouco tempo, até que ele aprenda uma grande lição, até que ele pague o preço pelo que fez a você e a toda Criação, respondeu Enki e com gentileza, fez-lhe uma breve mas gentil reverência. Enlil acabou de cruzar o portal para o Mundo Subterrâneo.

Ninlil calou-se por um momento, como se estivesse juntando as forças para fazer o que deveria a seguir. Então ela disse em alto e bom tom:

- Então seguirei meu marido até as Grandes Profundezas.

" E além, se for necessário", continuaram seus pensamentos.

Com estas palavras, Ninlil também, de imediato, desapareceu da Assembléia dos Anunaki.

 

Ninlil, ao dar-se conta de que suas palavras e o desejo do seu coração tinham-na realmente transportado para outro lugar, ficou surpresa, mas não amedrontada. Cautelosa, porém, examinou as redondezas para se localizar melhor.

De fato, ela estava frente ao portal Nipur, que havia cruzado duas vezes nesta manhã. Mas havia algo que ela não havia reparado antes. Ao invés do portal se abrir para os campos e canais da cidade, ele agora mostrava a entrada de um túnel de rocha bruta, iluminado por tochas de fogo de estranho brilho.

" É para lá que devo ir sem demora, se quero resgatar Enlil e voltar para o Mundo Físico", decidiu Ninlil.

Para baixo, sempre para baixo se foi Ninlil, descendo as escadarias de rocha bruta, parecendo tão antigas quanto a Terra Mãe das Esferas da Superfície. Longa foi a descida. Quando seus passos começaram a ser menos seguros, pois o cansaço e a tensão começaram a se fazer sentir, Ninlil por um momento se perguntou se tinha agido certo ao seguir o impulso de seu coração e a decisão de seu cérebro como princesa real e futura consorte do jovem e poderoso deus do Ar para trazê-lo de volta e assumir um futuro com o filho que teriam juntos.

"Sim, agi da forma mais correta," concluiu Ninlil para si mesma, apesar do cansaço, "como princesa real e donzela da Casa Sagrada dos Anunaki."

No momento em que acabou de enunciar com grande certeza estas palavras na sua mente, um portal se materializou à sua frente. De cerca de dois metros de altura e feito da madeira mais nobre e massiça, possuía uma maçaneta e fortes correntes de ferro pesado. Foi para as correntes que a mão de Ninlil se dirigiu, mas não realizou o seu intento, pois uma voz forte, de quem está acostumado a dar ordens e ser de imediato obedecido, soou na obscuridade do túnel.

- Voltai, minha senhora, voltai de onde viestes. Este portal está fechado para vós e para todos que aqui chegarem. Quem vos fala é o Guardião do Portal do Mundo Subterrâneo.

Então ela havia finalmente encontrado o portal para o Mundo Subterrâneo e o seu guardião! Ninlil dominou o sobressalto e examinou ambos com interesse. Os dois dominavam a sua pequena figura em altura, os dois representavam barreiras pelas quais ela tinha de passar, se quisesse resgatar Enlil de volta para o Mundo Físico.

"Resgatar Enlil é o que realmente quero," pensou Ninlil, admitindo pela primeira vez a verdade. "Amadureci muito desde o inicio desta jornada. Não existe mais a garota que sonhava desposar o maior dos jovens deuses, mas que tinha receio de assumir a sua própria sexualidade. Mesmo a despeito de desejá-lo, sem conhecer as grandes qualidades e fraquezas dele. Agora, quem o quer é a jovem deusa e mulher confiante no poder de conquistá-lo para si. Enlil se transformou em alguém muito importante para mim, pois ele é agora o desejo profundo do meu coração e o Anseio da minha alma. Mas não é apenas por ele ou pelo bebê que teremos que estou arriscando a minha vida. É pelo futuro que poderemos ter juntos, se conseguir trazê-lo de volta...Mas voltemos à realidade e ao problema em questão: primeiro tenho de passar pelo guardião do portal".

Com interesse (e também para afastar outros pensamentos mais perturbadores), Ninlil analisou o guardião. Olhos claros, de um azul tão leve quanto a primeira brisa do alvorecer de um dia de primavera encontraram os dela. Havia uma grande intensidade naquele olhar e uma certa familiaridade também. Ninlil apegou-se à sua Vontade de seguir em frente, conferiu a ela o poder dos Ventos das Quatro Direções da Terra, e encarou o guardião:

- Tenho uma pergunta para lhe fazer, Guardião do Portal: você viu, por acaso, meu futuro esposo Enlil tomar esta direção?

Os olhos do guardião brilharam. - Este caminho está barrado para vós, minha senhora. Meu senhor Enlil ordenou-me que guardasse silêncio.

Ninlil sorriu: - Aceito como resposta a sua .... não resposta, guardião. Se Enlil ordenou-lhe que ficasse calado, ele por certo passou por aqui. Portanto, não estou tão atrás dele assim. Agora sou eu quem pede passagem. Você deve deixar-me ir. Eu sou a futura esposa de Enlil, a sua escolhida. Abra o portal para mim.

- Meu amo e senhor Enlil ordenou-me que não permitisse a vossa passagem, minha senhora. É por demais arriscado. Que os riscos caiam sobre meu amo e senhor, não sobre a sua senhora. Mas eu, um humilde guardião, sequei as lágrimas de meu senhor Enlil, tentei acalmar os receios de seu coração. Se sois realmente Ninlil, a escolhida de meu amo, deixai-me tocar a vossa face, jurar em vosso corpo a lealdade que tenho por meu amo e senhor Enlil.

Ninlil fez um grande esforço para manter a calma Ela podia sentir a profunda emoção que irradiava do guardião. Como se ele tivesse um tornado dentro de si. Ou fosse ele mesmo um tornado. E todos os ventos também.

- A semente sagrada de Enlil, seu amo e senhor, cresce dentro de mim. Se Enlil é seu amo, eu sou também a sua Senhora. Pelo meu poder, pelo meu amado a quem serve o guardião deste portal, eu exijo que me seja dada passagem. Agora!

- Ah, minha senhora, que a semente de meu amo e senhor suba `as Esferas Superiores, e que a minha semente real desça ás profundezas do Mundo Subterrâneo. Eu vos peço, deitai-vos comigo. Que a semente do bebê de luz não desça ao Mundo Subterrâneo. Que a semente do humilde guardião do portal tome o seu lugar!

Ninlil encarou o guardião com toda seriedade: - Por que está você fazendo isto, guardião do portal? Por que está oferecendo a sua semente para resgatar a semente de luz do meu esposo? E por que aceitaria eu um resgate tão alto?

Ninlil podia sentir a timidez e relutância do guardião do portal para se abrir com ela. Mas ela era muito paciente. De alguma forma, ela tinha visto além do disfarce quem era na realidade o guardião do portal.

Enlil, para de fingir e deixa-me passar, para que possamos juntos continuar a jornada até Ereshkigal. Por que o disfarce? Será que os Ventos da mudança começaram a soprar dentro do teu coração? Mostra-me quem realmente és, Enlil. Sou eu, Ninlil, tua futura esposa e companheira da tua alma.’ - Nobre Senhora, eu ofereço minha semente para substituir a do meu amo pelo amor e tristeza que sinto por ele, pelo crime que meu senhor cometeu contra vós nas Esferas Superiores. Meu amo e senhor deveria ter pensado antes de ferir-vos, a vós que agora sois tão importante, tão próxima ao seu coração. Por juramento sagrado eu sirvo ao meu amo Enlil, por juramento sagrado, pela minha honra, pelo meu ser devo resgatá-lo, mesmo se isto significar o sacrifício da minha própria vida. A profunda tristeza que sinto pelo meu amo criou raízes dentro de meu ser, como se fosse uma Arvore que gera frutos nas Profundezas e Trevas mais Escuras. Portanto, deitai-vos comigo, soberana do coração de meu amo, dai-me a paz do vosso abraço para saciar a tristeza desta longa noite. Então, deixar-vos-ei passar, pois tereis dado consolo à minha alma que vagueia solitária e faminta sem o sem amor.

Ninlil puxou para si a cabeça do guardião e beijou-lhe os lábios.

"Amado, por quê?" sua mente quis perguntar, mas ela calou, apenas cedendo ao abraço de Enlil. Braços tão fortes como uma ventania, leves como o ar ergueram-na do chão, para levá-la até os pequenos aposentos do guardião do portal, não muito longe dali. Ninlil fixou os olhos nos olhos claros de Enlil e os dois se deixaram levar pela tempestade de toques compartilhados.

Desta vez, foi muito melhor, porque tanto Enlil quanto Ninlil deram-se um ao outro para satisfazer uma necessidade de carinho e paixão vinda do fundo de seus corações. As caricias eram apenas o veiculo de expressão para o que ainda não podiam ou tinham coragem de dizer um ao outro.

"Será que terás coragem de fazer isto um dia? " Perguntou-lhe Ninlil, mas não esperou desta vez resposta alguma. Talvez ainda fosse cedo demais.

Quando tudo acabou, depois do prazer compartilhado, e eles estavam um nos braços do outro, o guardião do portal murmurou no ouvido de Ninlil:

- Preciso ir em frente. Voltai, minha senhora. Eu vos peco: não cruzais o portal para as Grandes Profundezas. - Mas você vai cruzar este limiar, não vai, guardião? Perguntou Ninlil, mais uma afirmativa do que uma pergunta, levantando a cabeça para fitar-lhe nos olhos.

Os olhos do guardião refletiam profunda tristeza, os braços ao redor dela ficaram tensos, mas a voz do guardião soou firme e comprometida. Com o que?

- Sim, para mim não há alternativa e devo cruzar o portal. O mais breve possível.

Ninlil tocou a face do guardião numa leve caricia:

- A sua semente, guardião, o seu bebê que cresce agora dentro de mim, eu o chamarei Nergal-Meslamtaea, e dele vai ser o difícil conhecimento dos mistérios do conflito e da guerra, para que a humanidade e os deuses aprendam a paz e a compleitude em todos os níveis.

Ninlil pôs a mão do guardião no seu ventre e sentiu-a tremer com a emoção de uma folha tocada pela mais leve brisa de verão. Ele se manteve calado, mas Ninlil sabia que o tinha afetado profundamente, como ela mesma havia sido tocada pela intensidade do ato de amor que haviam compartilhado momentos Antes.

- Também devo por-me a caminho, Ninlil continuou, e então sua voz adquiriu um tom de comando:

- Deixe-me passar pelo portal, guardião. Cumpri minha parte no trato. Cumpra a sua agora. Se Enlil é seu amo e senhor, como esposa e escolhida de Enlil, sou também sua ama e senhora. Não estou pedindo mais sua permissão para passar. Eu estou ordenando que me de passagem. Neste exato momento.

- Que assim seja então, respondeu o guardião do portal. Um beijo nos lábios de Ninlil, tão suave e molhado quanto a brisa com toque de orvalho das manhãs foi a despedida dele.

Ninlil estremeceu por dentro, pois sabia que outra semente, outro bebê estava crescendo dentro dela, e sorriu com um misto de assombro e maravilha. Ela viu-se então sozinha novamente, contemplando a luz difusa além do portal agora aberto, que a levaria até as Grandes Profundezas. Tendo cruzado o portal, Ninlil quedou-se um instante para comemorar:

- Eu consegui! Estou do outro lado do portal! Palmas para mim! Regozijou-se ela por um momento. É a primeira barreira vencida!

Ninlil saboreou com gosto aquele momento. Certo, ela ainda não sabia que direção tomar a partir dali, mas o medo e a angustia da jornada foram afastados pela vitoria de ter passado pelo portal e seu estranhíssimo guardião. Ainda haviam dificuldades, só que vencida a primeira barreira, cresceu em Ninlil a esperança de ser bem sucedida no encontro com Ereshkigal para interceder pela vida de Enlil. Quem sabe, mas talvez ela realmente achasse um jeito de conquistar a misericórdia de Ereshkigal e trazer Enlil de volta.

Para onde ir agora?’ Pensou Ninlil, finalmente.

Repentina inspiração fê-la fechar os olhos. Ela estava na Esfera da Essência, o interior e centro da verdade e equilíbrio em tudo o que existe. Talvez ela devesse buscar pistas dentro de si mesma, no seu Mundo Interior, ouvir a voz que vem de dentro para então decidir para onde ir com segurança a seguir.

Depois de alguns segundos, ou minutos, ela não saberia dizer, tão concentrada estava na experiência interior, um leve ruído de água começou a soar ao longe. Um sinal! Ninlil resolveu seguir o barulho da água a rolar primeiro de olhos fechados, para verificar a veracidade do Olhar Interior. Ela abriu os olhos, feliz por ter confiado na sua intuição, quando sentiu o solo um pouco úmido sob as sandálias leves que calçava.

Para alegria de Ninlil, era uma fonte que brotava das pedras, então se estendendo sempre para baixo num fio d’água que parecia avançar na noite das Grandes Profundezas. A nascente de um rio!

Confiança surgiu novamente no coração de Ninlil. Todas as águas, as dos rios, dos poços, das fontes, as águas do mar são sagradas. Com graça e reverência, Ninlil ajoelhou-se para tocar as águas que nasciam ali. Ela não bebeu delas, porém. Ao invés, mandou um pensamento de cura e carinho para Enlil, onde quer que ele estivesse. Assim como as águas mantém a vida, ela desejava que Enlil mantivesse a esperança para poder retornar `as Esferas Superiores, onde quer que estivesse no Mundo Subterrâneo.

"Seguirei o curso do rio para ver o que mais na frente ele pode me reservar. Uma ponte, uma passagem, se tiver sorte, hei de encontrar!" raciocinou Ninlil. . Mas a nascente, de inicio tão pequena, logo foi-se transformando num rio caudaloso, e as águas, tão límpidas e calmas, transformaram-se em grandes corredeiras. O rio então começou a rugir nos ouvidos de Ninlil, agora já extremamente preocupada. Mas o pior ainda estava por vir. `A sua frente, o rio transformou-se numa majestosa e faminta catarata, projetando-se para diante e parecendo engolir as trevas do Mundo Subterrâneo dentro da sua formidável bocarra.

` Será o fim da jornada para mim?’ Pensou Ninlil, com os olhos cheios d’água. ‘ Não quero que seja, mas como poderei atravessar este rio e catarata que parecem tudo querer devorar? Eu ... eu estou com medo. Mas não posso deixar que meus medos me devorem, tirem de mim a capacidade de pensar e decidir o que é melhor para mim, para Enlil e para os bebês que agora carrego dentro de mim. Onde há medo, há poder, se soubermos controlar a fonte do terror e achar nela a coragem de vencer o que nos faz pequenos e incapazes por dentro e por fora. Eu preciso pensar que há esperança de atingir o outro lado, do medo fazer a força para prosseguir, ao invés de me deixar derrotar pelas circunstancias. Mais do que tudo, preciso saber se Enlil seguiu esta direção. Eu conclamo a força dos ventos que sopram com segurança e intensidade constante para afastar o inverno na chegada da primavera, eu chamo este poder para mim, para afastar meus temores e trazer de volta aquele por quem eu ao Mundo Subterrâneo desci". Como se em resposta à prece silenciosa de Ninlil, derepente, uma voz rouca e profunda soou nas trevas. - Voltai de onde viestes, minha senhora. Não podeis cruzar o Rio Devorador.

O coração de Ninlil subiu `as Esferas Superiores e desceu no mesmo segundo. Ela virou-se na direção da voz. Na luz difusa do Mundo Subterrâneo, mal podia discernir as feições de quem lhe dirigira a palavra. A figura era alta e forte, parecendo bastante intimidante. Mas os olhos... olhos claros, cheios de emoção, olhos que brilharam ao encontrar os dela. Ninlil imediatamente esqueceu o cansaço e o medo, para ficar totalmente alerta ao que estava por vir. - Responda-me primeiro: meu futuro esposo Enlil, o deus do Ar, seguir por esta direção? - Meu amo e senhor Enlil ordenou-me que guardasse silêncio. - Se Enlil ordenou-lhe silêncio, então ele passou por aqui. Como ele cruzou Rio Devorador e passou por cima da grande catarata? - Meu amo e senhor estava tomado de tristeza e medo quando me encontrou. Tristeza por tudo o quanto ele havia perdido por um momento impensado, medo por ter causado tanta dor a alguém a quem ele muito ama, e estar impossibilitado de agir para levar consolo e reparação a este alguém. Meu senhor teme também não poder retornar para as Esferas Superiores, para o futuro. Eu sequei suas lágrimas, e o sofrimento do meu amo tocou meu coração. Então, eu o carreguei sobre o rio Devorador, nos meus braços eu o carreguei por sobre a Catarata da Morte.

- O que você fez por Enlil, você deve faze-lo por mim. Eu sou Ninlil, a rainha e escolhida do deus Enlil.

- Se sois realmente Ninlil, a rainha de meu amo e senhor, deixai-me tocar vossa face, deixai-me tocar vosso corpo e jurar sobre ele lealdade ao meu amo e senhor Enlil.

A mão do estranho guardião do rio e da catarata levantou-se para tocar a face de Ninlil num gesto breve de imensa ternura. Tal qual o toque dos ventos de inverno que trazem descanso e renovação aos campos, para que votem a produzir na primavera. Ninlil já ouvira esta mesma conversa antes. Onde? Do guardião do portal, naturalmente! Agora, este outro guardião repetia as mesmas palavras, além de ter os mesmos intensos olhos claros, aos quais Ninlil estava aprendendo a conhecer tão bem.

"Enlil, por que esta brincadeira de esconde-esconde?" Ela perguntou em silêncio, mas resolveu seguir as regras dele, pelo menos por um pouco mais.

- A semente de seu amo, o deus Enlil, cresce dentro de mim. Pelo meu poder, pelo meu amado esposo a quem você serve, guardião do rio devorador, eu ordeno que me carregue para o outro lado. Agora!

- Ah, minha senhora, que a semente real de meu amo e senhor Enlil suba aos céus, e que a semente real do guardião do rio Devorador desça ao Mundo Subterrâneo, como um presente para a deusa Ereshkigal. Eu vos suplico, minha gentil dama, deitai-vos comigo esta noite para afugentar meus medos e reduzir por seu amor todos os meus receios!

- Por que você está fazendo isto, Guardião do Rio Devorador? Por que está oferecendo a sua semente para resgatar o meu bebê de luz? E por que deveria eu aceitar resgate tão alto? Ninlil estava sendo direta e incisiva com o guardião, apesar de por dentro estar-se perguntando o motivo por que Enlil estava fazendo esta brincadeira tão seria com ela. Por que apresentar-se em disfarce, primeiro como o guardião do portal e agora como o guardião do Rio Devorador? Por que ele não lhe revelava o seu verdadeiro nome?

- Eu ofereço minha semente para resgatar a de meu amo e senhor pelo profundo desejo que sinto de trazer consolo ao seu coração ferido e solitário. O coração de meu amo sangra pelas feridas que ele infringiu a alguém a quem ele muito ama, pois perante a este alguém meu senhor portou-se da forma mais ignominiosa. Por juramento sagrado eu sirvo ao deus Enlil, por minha honra devo resgata-lo e aqueles a quem ele ama com a minha própria vida. Por toda uma vida conheci o deus Enlil como a mim mesmo, mas ao carregá-lo por sobre o rio Devorador, pude entender o outro lado de meu senhor, o lado que pode destruir tanto quanto pode curar. Mas também compreendi a responsabilidade implícita em sanar as feridas que causarmos a ourem, aprendi a mergulhar na amargura das lágrimas para voltar à superfície com a sabedoria das lágrimas que conseguir secar em mim e nos que me rodeiam. Agora, é como a Sabedoria das Águas me tivesse sido dada. Por todos estes motivos, eu vos suplico, minha senhora, deitai-vos comigo, compartilhai uma noite de paixão ao lado meu para afastar meus medos e apagar de vez todos os meus receios. - Você irá me carregar por sobre a catarata e o Rio Devorador depois, como fez com... Enlil? - Sim.

Ninlil estendeu os braços para o Guardião de Rio Devorador, segurou a cabeça dele e beijou-o na boca. Ele retribuiu o beijo com intensidade e paixão, parecendo necessitar tanto de carinho quanto as flores e o campos precisam da chuva para sobreviver aos mais quentes verões. Na rocha molhada os corpos de Ninlil e do estranho guardião do Rio Devorador se encontraram, e o amor que fizeram foi apaixonado e intenso, fazendo calar todos os ruídos à volta deles, o barulho da catarata, o rugir do rio violento. Depois, quando ainda estavam deitados na rocha, abraçados, Ninlil beijou o estranho e sussurrou:

- Este filho seu, eu chamá-lo-ei Ninazu, Aquele que Tem o Segredo das Águas, o Deus das Profundezas que Curam. Dele vai ser o conhecimento das verdades mais profundas que trazem a cura para todos os males, dele vai ser o poder também para ferir de forma dura e implacável, pois dor e cura são as duas faces da mesma realidade. O que nos faz doentes carrega dentro de si a fonte da cura, e vice-versa. Agora, guardião do Rio Devorador e da Catarata da Morte, cumpra sua parte no trato e leve-me para o outro lado.

- É tão perigoso, minha senhora. Eu teria dado a minha vida agora para não vos expor a tal risco....

- Pode meu esposo Enlil ser resgatado, caso eu não tentar atravessar o rio e a catarata?

- Não, pelo menos não até este momento.

- Carregue-me então. Paguei pelo preço exigido. Cumpra a sua parte no trato.

Ele cumpriu a promessa. Ninlil enlaçou seus barcos ao redor do pescoço do guardião do Rio Devorador e ele carregou-a nos barcos. A jovem prendeu a respiração ao sentir o salto poderoso, tal qual um poderoso furacão, que o guardião deu por sobre a catarata. O mundo rugiu e trovejou ao redor deles, enquanto enfrentavam juntos as torrentes de água fustigantes. Nem por um momento os braços ao redor dela mostraram cansaço ou esmoreceram frente ao trovejar da catarata. Então, o diluvio acabou, e ela foi gentilmente baixada numa rocha do outro lado do rio, de onde a vista da catarata não era mais uma ameaça, mas sim um grande encanto para os olhos, mente e espirito. Do guardião, não havia mais sinal algum. Só’ uma leve brisa, tão suave quanto uma caricia de amante tocou-lhe a face como num adeus. - Enlil, quem esta’ seguindo quem, afinal? perguntou Ninlil `as trevas. Nenhuma resposta ela recebeu de volta. Nem ela havia esperado um sinal ou uma mensagem. Não neste estagio. Mais tarde, quem sabe, talvez.Ninlil massageou músculos doloridos e tensos vigorosamente. Suas roupas estavam molhadas, portanto Ninlil se despiu e estendeu-as na grama do Mundo Subterrâneo para secar. Na distância, ela podia ouvir o barulho da catarata vindo de trás. `A sua frente, Ninlil podia ver os contornos de algumas cavernas.

Para lá é que Ninlil iria, mas dentro de instantes. Por aquele momento, ela sentou-se na grama diferente do Mundo Subterrâneo, abraçou os joelhos e descansou ali também sua cabeça, suspirando. Tantas coisas haviam ocorrido desde que tinha encontrado Enlil, desde o começo da jornada para o Mundo Subterrâneo. E de alguma forma (mais provavelmente em virtude de algum desígnio da grande deusa Ereshkigal), Enlil tinha vindo até ela para mostra-lhe o caminho e percorrê-lo com ela. Mas por que os disfarces? Eles já haviam feito amor três vezes, e três filhos de Enlil cresciam agora dentro de seu útero. entretanto, apesar dos dois últimos encontros terem sido intensos e cheios de prazer, algo estava faltando. Enlil a desejava, disto ela tinha certeza. Mas Ninlil queria agora mais do que o prazer do corpo e a intuição de ser muito amada. Devia haver mais, muito mais do que a troca de mil caricias nas trevas e o estremecer do orgasmo vibrando no corpo. "Melhor mudar o curso de meus pensamentos e por-me a caminho o mais breve possível! ‘ teve o bom-senso de raciocinar Ninlil. Com as roupas quase secas, Ninlil avançou na direção da maior caverna situada `a sua frente. O solo agora estava coberto de pedregulhos, o que tornou a jornada mais difícil e dolorida para os pés já cansados de Ninlil.

Finalmente, ela parou `as margens de um grande lago de águas estranhamente paradas. De vez em quando levantava-se uma onda, que se quebrava em silêncio na costa, mas era só’ . As águas pareciam não ter ou gerar vida dentro delas, e as ondas estranhas que se levantavam num não derepente também não deixavam traço sequer de espuma ou corrente. Impossível dizer até onde ia este estranho mar de águas paradas, ou sua profundidade. A vastidão das águas parecia engolir a pouca luz que havia e não refleti-la de volta.

- Enlil, vieste nesta direção? Ninlil perguntou `as trevas, sua voz desaparecendo no vazio sem deixar eco.

De pé, na costa, Ninlil parou, esperando apenas. Um ligeiro rumor nas águas paradas fê-la voltar ao estado de alerta.

Longe, muito longe ainda, mas aproximando-se rapidamente estava um barco. Tão escuro quanto as águas do mar, com uma figura encapuçada remAndo na proa. Quando barco e barqueiro estavam já muito próximos, uma brisa tocou a face de Ninlil numa leve caricia, trazendo de volta memórias das Esferas Superiores, de primavera e do renascer da terra. Ninlil procurou os olhos da figura encapucada, e viu que eles eram claros e luminosos. Imediatamente ela se aprumou, esperando o que estava por acontecer.

- Quem chamou o barqueiro das Grandes Profundezas?

Ninlil respondeu à pergunta do estranho barqueiro com outra pergunta:

- Responda-me primeiro, senhor barqueiro: por acaso passou por aqui meu futuro esposo, o deus Enlil? Ou melhor, será que ele pediu-lhe para transportá-lo para o outro lado deste rio ou mar tão parado?

- Não posso responder a estas perguntas, pois jurei ao meu amo e senhor guardar silêncio.

- Creio então que Enlil seguiu este caminho. Como ele conseguiu obter as suas graças, senhor barqueiro, para transportá-lo para o outro lado da costa?

- Meu amo e senhor Enlil verteu lágrimas de tristeza ao me encontrar, e eu o consolei, para então leva-lo para o outro lado do Mar da Morte.

- O que você fez por Enlil, deve igualmente faze-lo por mim. Eu sou Ninlil, a futura esposa e rainha de Enlil.

- Não posso fazê-lo, minha nobre senhora. Meu amo Enlil ordenou-me que não permitisse a vossa passagem. Que os riscos de cruzar o Mar da Morte caiam sobre meu amo e senhor, não sobre a sua senhora. Mas eu, um humilde guardião, sequei as lágrimas de meu senhor Enlil, tentei acalmar os receios de seu coração. Se sois realmente Ninlil, a escolhida de meu amo, deixai-me tocar a vossa face, jurar em vosso corpo a lealdade que tenho por meu amo e senhor Enlil.

Este mesmo discurso Ninlil havia escutado do guardião do portal e do guardião do Rio Devorador. Mais uma vez ao longo da jornada, Ninlil estava frente a frente a Enlil em disfarce. Mas o que estava ele pretendendo com toda esta farsa? Ninlil mal podia resistir à vontade de desmascarar o falso barqueiro.

"Ultima vez, Enlil, que jogo pelas tuas regras, " ela pensou, "estou cansada desta estranha brincadeira de esconde-esconde." Ela prosseguiu, com calma:

- A semente de seu amo e senhor, Enlil, o deus do Ar, cresce dentro de mim. Pelo meu poder, pelo meu amado a quem você serve, eu ordeno que me aceite em seu barco e me leve para o outro lado da costa. Neste exato momento.

- Ah, nobre senhora, que a semente de meu amo e senhor, o bebê de luz, suba ao mais alto dos céus, e que a semente real deste barqueiro desça ao Mundo Subterrâneo. Eu vos suplico, gentil dama, deixai minha semente mergulhar nas águas do Mar da Morte do Mundo Subterrâneo como um presente para a deusa Ereshkigal. Eu vos suplico, deitai-vos comigo também! - Por que motivo está você fazendo isto, barqueiro? Por que está oferecendo a sua semente para substituir a de meu futuro esposo? E por que eu aceitaria resgate tão alto?

- Senhora, eu ofereço minha semente para substituir a do meu amo e senhor pela lealdade que sinto por ele e pelo desejo que tenho de trazer conforto a seu coração, corpo, mente e alma tão tristes e acabrunhados. Por juramento sagrado, sirvo meu amo e daria minha vida pela dele e por aqueles a quem meu senhor ama. Conheço meu Senhor Enlil tal qual a minha alma agora que o levei pelas águas paradas e sem vida do Mar da Morte do Mundo Subterrâneo. Também ao transportar meu amo, entendi que a vida é realmente feita do que amamos, da necessidade que temos de cativar uns aos outros, da importância que existe em descobrir que apesar de sermos apenas um, podemos conter multidões. Entendi que meu amo quer dar de si num nível mais profundo, mas ainda não aprendeu como fazer isto. Senti a necessidade que meu amo tem de se unir a alguém muito especial de forma completa, mente, corpo e espirito, apesar do medo que meu senhor tem de ser recusado desta vez. Ao transportar o deus Enlil pelas águas da morte, também mudei eu. Por isso, minha gentil senhora, eu vos suplico: deitai-vos comigo e compartilhai com este seu humilde servo toda paixão que vos possuis dentro de vosso coração. Eu preciso de um toque de amor para suportar esta noite tão cheia de solidão e dor. Por favor, escolhida do meu amo e senhor, uma vez vos deitastes com meu amo numa jangada `a luz do sol nas Esferas Superiores. Será que poderíeis aceitar o meu convite, entrar no meu barco e deitar-vos comigo no Mundo Subterrâneo?

Ninlil foi tomada de surpresa pelas palavras do estranho barqueiro. Estava Enlil realmente lhe pedindo um pouco de amor e desculpas também? Com o coração nas mãos, mas fazendo um grande esforço para não demonstrar o quanto as palavras dele a tinham afetado, Ninlil pressionou ainda mais o estranho barqueiro. Ela precisava ainda algumas verdades, antes de aceitar o preço que ele lhe impunha:

- Eu não fui convidada a subir na jangada para fazer amor à luz do sol nas Esferas Superiores. Está você agora querendo que eu aceite de minha livre e espontânea vontade fazer amor com você no seu barco? Ela podia sentir a intensa emoção tomar conta do barqueiro. Será que Ninlil tinha chegado ao centro do tornado? E agüentar a força da tempestade depois?

- A decisão é toda sua. - Diga-me, barqueiro, usando as suas próprias palavras. Por que eu aceitaria fazer amor com você no seu barco?

Ela queria ouvi-lo dizer as palavras certas, e iria arrancá-las dele mais cedo ou mais tarde. - Por causa do amor que vos sentis por meu amo, o deus Enlil. . Ninlil sorriu brevemente:

- É certo que o amo e estou disposta a fazer tudo para levá-lo de volta às Esferas Superiores, mas não é só isto. É também pelo amor que tenho por mim mesma e pelo futuro que poderemos ter juntos, se eu for bem sucedida e trazê-lo de volta para as Esferas Superiores. Eu não poderia amar a Enlil como o amo, se não conhecesse a extensão dos meus sentimentos, além de ter a certeza de que ele também compartilha do que penso e sinto a seu respeito. Enlil é aquele que mais próximo chegou do desejo do meu coração, apesar de anteriormente eu não ter sido capaz de dizer-lhe esta grande verdade. Fico pensando, porém, sobre quando Enlil vai se dar conta do amante que tem dentro e então reconhecer em mim finalmente como sua amada de fato. Só assim ele irá finalmente ver-me como sua rainha. Por todas estas razões, barqueiro, eu aceito o seu oferecimento.

- Mesmo se meu amo e senhor ainda não pode vos dizer, minha senhora, ele seria um grande tolo, se não vos vísseis como sua soberana e Rainha, falou o barqueiro em voz muito baixa, quase um sussurro, cheio de emoção.

Ninlil apenas sorriu, mas o coração disparou por dentro para voltar depois ao normal. Olhos claros brilharam nas trevas. O barqueiro inclinou-se numa graciosa reverência e estendeu a mão para ajuda-la a entrar no barco. A gentileza do gesto era certamente digna de um jovem e poderoso Anunaki frente à escolhida de seu coração e parceira de sua alma..

- Vou chamar esta sua semente, este seu bebê de Enugi, o Deus dos Órgãos Sexuais, disse Ninlil, quando o amor acabou.

Ela beijou o barqueiro do Rio da Morte nos lábios, e continuou:

- O desafio de Enugi vai se o de ir além do prazer físico, seu dom será a Sedução, o Riso, a Intimidade e a Espontaneidade. Seu dever será Ser Responsável por quem ele cativar. Ele vai ser a Energia e Paixão temperados com Criatividade em todos os mundos em que trilhar. - Vós me surpreendeis, nobre senhora. Ninlil sabia que havia um sorriso no rosto, na voz do barqueiro da morte. - Cumpra agora a sua parte do nosso trato, barqueiro. Preciso ir para o outro lado do Mar da Morte, se quero resgatar meu esposo e a mim mesma para termos um futuro juntos. E os deuses bem sabem que quero começar este futuro o mais breve possível!

Como das outras vezes, o estranho guardião desapareceu ao deixar Ninlil na costa do Mundo Subterrâneo. Mesmo sabendo que ele já tinha ido embora, Ninlil soprou um beijo para o ar, sacudindo a cabeça divertida. Enlil tinha mesmo de aprender algumas boas maneiras sobre como agir com a amada e futura mãe de seus filhos!

Mas derepente, as trevas começaram a falar. Sussurros que foram ficando mais ruidosos e apavorantes. Novamente, ela l teve de controlar os nervos para não gritar. As vozes falavam todas de uma vez, e levou algum tempo para Ninlil entender o que diziam:

- Quem desceu sem convite às Grandes Profundezas?

- Quem ousou vir até aqui sem ser Anunciado?

- Quem se atreveu a cruzar o limiar do Mundo Subterrâneo? Q’ Ninlil soltou um profundo suspiro. Parece que finalmente tinha chegado ao lugar certo. As vozes eram reais, mas Ninlil não podia ver nada à sua frente. Pelo menos, ela tinha chegado até ali.

"Tarde demais para voltar," pensou Ninlil," agora já fui longe demais, mesmo que quisesse ou pudesse voltar. Mas será que depois de tudo o que enfrentei até agora, terei forças ou o bom-senso suficiente para argumentar com Ereshkigal? O peso da jornada está se fazendo sentir no meu corpo, na minha alma, no meu coração e nos meus pensamentos. O fim da jornada esta’ mais próximo. Mas será mesmo que conseguirei resgatar a Enlil e a mim mesma, afinal?"

Entretanto, pensar em Ereshkigal, a soberana do Mundo Subterrâneo, foi o suficiente para que Ninlil se voltasse para o lado pratico da jornada. Ereshkigal era uma nobre Antepassada, uma Donzela da Casa Sagrada, agora Rainha das Grandes Profundezas e Deusa do Mundo Subterrâneo. De imediato, Ninlil lembrou-se de seu treinamento no templo, as boas maneiras de uma jovem deusa e o respeito devido aos mais velhos. O Mundo Subterrâneo também era uma Esfera Sagrada da Existência, e ela, Ninlil, tinha batido à sua porta sem ser convidada. Ninlil, portanto, fez uma graciosa reverência e cumprimentou as vozes das trevas em primeiro lugar:

- Saudações aos Guardiões do Mundo Subterrâneo e meus respeitos `a Grande Deusa e soberana das Grandes Profundezas! Eu respondo pelo nome de Ninlil, sou uma donzela da Casa Sagrada de Anu, filha de Haia, o deus dos armazéns, e da Deusa da Cevada, chamada Numbarshegunu. Eu desci `as Grandes Profundezas sozinha e de livre e espontânea vontade para interceder pela vida de meu futuro esposo, Enlil, o deus do ar, que foi mandado ao Mundo Subterrâneo por ter cometido um grave crime contra a minha pessoa. Eu venho com a intenção de humildemente solicitar uma audiência com a soberana do Mundo Subterrâneo, a poderosa Ereshkigal. Que ela receba de antemão meus agradecimentos pelo tempo que a mim dispensar!

Mais depressa do que Ninlil esperava, ergueu-se diante dela um grande portal, guardado por um guardião ainda mais circunspecto segurando uma tocha na mão esquerda. Ele apresentou-se como Neti, o guardião dos portais de Ereshkigal, a deusa do Mundo Subterrâneo.

Desta vez, Ninlil tinha certeza, o guardião não era Enlil em disfarce. Os olhos dele não tinham a cor clara e a intensidade de emoção de Enlil. Ao invés, apenas objetividade e competência, bem como um distanciamento necessário para o desempenho de suas funções.

Seis outros portais se sucederam ao primeiro numa velocidade alucinante. Ninlil deixou-se levar pela sensação de sonho, como se estivesse se aprofundando mais e mais num outro espaço, atingindo outra esfera de consciência. O sentimento era forte, como se sua alma, corpo e pensamentos estivessem sendo submetidos a um intenso escrutínio. A sensação só teve fim quando cruzaram o ultimo portal, e uma face ainda mais seria os saudou.

- Primeiro-ministro Namtar, esta jovem da Casa Real dos Anunaki e das Esferas Superiores solicita uma audiência com nossa soberana e Rainha, esclareceu Neti.

Namtar assentiu com um gesto de cabeça, avaliando Ninlil com fria segurança. Ninlil sentiu o calculado escrutínio do conselheiro de Ereshkigal, não como um peso, mas como um exame minucioso e completo. Mas não cedeu um milímetro ao receio que no fundo sentia por dentro.

Ao fim de alguns intensos minutos que pareceram durar uma eternidade, Ninlil pareceu ter satisfeito a Namtar, pois o sóbrio ministro respondeu:

- Uma vez que a Donzela da Casa Sagrada chegou até aqui, é justo que tenha uma chance de ver nossa rainha e soberana, e defender pessoalmente junto a ela o seu caso.

Um palácio ergueu-se diante deles, feito do mais puro lápis lazuli e cristal de rocha, solido e severo nas linhas quadradas preferidas pelos grandes arquitetos mesopotâmicos das Esferas Superiores que Ninlil havia visitado. Esculturas de parede mostravam cenas dos grandes mitos e lendas conhecidos de Ninlil, bem como outras cenas de histórias e terras que ela ainda não conhecia. No meio do palácio, no pátio interno, a torre sagrada, o ziggurat se projetava na luz difusa do Mundo Subterrâneo. Tochas iluminavam o eterno crepúsculo.

- Preciso perguntar-lhe mais uma vez, minha senhora, falou novamente Namtar. É, em verdade, a sua mais alta vontade entrar nos domínios da grande soberana Ereshkigal e enfrentar o seu julgamento?

- Se este foi o caminho de Enlil, é realmente a minha maior vontade estar onde meu futuro marido já esteve.

- O jovem Anunaki Enlil seguiu este caminho.

- Então é também meu desejo prosseguir.

- A escolha foi feita. Siga-me, Donzela da Casa Sagrada.

Ninlil seguiu Namtar ao longo de corredores silenciosos, passagens, salões e escadarias. Finalmente, eles pararam na Grande Câmara de Audiências e Julgamentos. Namtar fez uma longa reverência, e Ninlil, sabiamente, imitou-o antes de levantar os olhos para ver o que se passava à frente.

Eles estavam num grande salão, difusamente iluminado pelas mesmas tochas de estranho brilho. As paredes eram de puro cristal de rocha e lápis lazuli, decoradas com os símbolos sagrados e com mobiliário de extrema sobriedade. Um tapete azul escuro salpicado de pequenas estrelas estendia-se até a plataforma ao final da câmara, e deste ponto mais elevado, estava o trono da deusa das Grandes Profundezas.

Lá sentada estava um ser alto (uma mulher?) e esbelto, de grande dignidade, envolto num robe de tecido preto e sóbrio, que entretanto tinha um brilho semelhante `as pedras de lápis lazuli. Um capuz longo envolvia-lhe a cabeça e os cabelos (se é que ela os tinha!). Mas o que Ninlil prender a respiração foi a aura de mistério e poder que emanavam da figura sentada no trono. Nunca em sua vida Ninlil havia-se deparado com autoridade e seriedade tão grandes. Ninlil estava, sem sombra de duvida, na presença de Ereshkigal, a soberana do Mundo Subterrâneo.

- Por que uma filha da Casa Real dos Anunaki desceu sem convite `as Grandes Profundezas? Perguntou uma voz profunda, incisiva, se bem que melodiosa.

A pergunta calma e previsível ressoou dentro do corpo, alma, coração e espirito de Ninlil. A jovem engoliu em seco antes de responder numa voz pequena e trêmula dentro da vastidão da Câmara de Julgamentos:

- Grande Deusa, eu vim até vós para interceder pela vida de meu futuro esposo Enlil, o deus do Ar, que foi mandado ao vosso Reino por causa de uma grande ofensa que fez à minha pessoa. Eu sou Ninlil, a escolhida de Enlil, que agora também carrega as sementes de Enlil, seus e meus futuros filhos. Mas há algo mais também....

- O que mais?

- Eu... eu gostaria também de entender o que tem-se passado até agora, desde que Enlil e eu começamos a nossa jornada rumo ao Mundo Subterrâneo. Pois creio que há um significado maior em tudo o que experimentamos até agora.

Ninlil parou, como se procurando algum incentivo. Ereshkigal nada comentou, mas continuou firme no interrogatório:

- Por que estás intercedendo pela vida de Enlil, se ele te fez mal?

- Enlil for violento e desastrado, mas eu também podia ter-me saído muito melhor. Creio também que eu e ele aprendemos uma grande lição, e que agora temos uma chance de vida juntos no futuro. Eu vos peço por este futuro, minha grande senhora. Um futuro para mim e Enlil e a nossa semente de luz que sinto crescer dentro de mim. Um futuro nas Esferas Superiores.

- Como podes afirmar que Enlil aprendeu a sua lição? Como podes saber que ele já satisfez a Lei do Equilíbrio Restaurado, reparando o seu erro junto a ti? Continuou a perguntar implacavelmente Ereshkigal..

Ninlil suspirou. A soberana do Mundo Subterrâneo não estava facilitando as coisas para ela. Todavia, Ereshkigal ainda não tinha lançado em Ninlil o seu olhar da morte. De fato, até aquele momento Ereshkigal havia agido com total imparcialidade, perguntando e ouvindo atentamente a versão de Ninlil de todos os fatos.

- Eu creio sinceramente que Enlil tenha aprendido uma grande lição por causa dos estranhos e intenso encontros com os quais me defrontei ao longo da jornada. Eu me refiro aos encontros com os três guardiões iniciais. Com aquele que guardava os portões de Nipur, depois o guardião do rio devorador e finalmente o barqueiro do mar da morte. Eles eram Enlil em disfarce, não eram?

Tendo feito esta declaração audaciosa, Ninlil parou e encarou Ereshkigal para ver se a Grande Deusa demonstrava alguma reação. Ereshkigal não esboçou sinal algum.

Mas pelo menos Ela não disse que estou maluca ou fora de mim. E eu ainda estou viva... pelo menos acho que estou, ’ pensou Ninlil, prosseguindo em voz alta:

- De alguma forma, pude ver que era Enlil quem estava atrás ou dentro de cada guardião de portais que tive de cruzar até chegar realmente ao Mundo Subterrâneo. O que me fez pensar por que ele estava lá antes de mim, por que ele sempre apareceu para mim, mas disfarçado...

Ninlil hesitou.

- Prossiga, continuou Ereshkigal, num tom de comando que não podia ser negado.

- Pensei, pensei muito e foi esta a minha conclusão. Enlil estava sempre lá, a cada portal esperando por mim, porque ambos fomos limiares um para o outro. Enlil teve de enfrentar os seus piores pesadelos cada vez que nos encontramos e ele estava disfarçado. Ele viu as cores reais do conflito e da tristeza no portal de Nipur, enfrentou a doença e ferimentos da alma no rio devorador, solidão e o desejo de amar nas profundidades do mar da morte. Mas há mais um grande mistério nesta jornada. Tendo sido ferida por Enlil, era eu o limiar e guardiã mais difícil que ele tinha de enfrentar. quanto a mim... eu tive de aprender a ver através dele, entender a jornada de Enlil até as Grandes Profundezas e meu papel nela também.

Lágrimas começaram a brotar dos olhos de Ninlil, que as secou com um aceno impaciente de mão. - Havia um motivo pelo qual ele não podia me dizer quem ele era quando nos encontramos naquelas três vezes. Ele simplesmente não podia revelar quem era realmente. Vos infringistes um poderoso teste de humildade ao mais orgulhoso dos jovens deuses, minha Grande Senhora. Ele teve de vir a mim e pedir o meu amor, não sabendo se eu o aceitaria sob disfarce, mas submetendo-se aos desígnios do Mundo Subterrâneo de qualquer forma. E eu... eu tive de ir além dos meus sonhos de menina pelo príncipe dos deuses para aceitar ao homem e ao deus na sua totalidade. E os filhos dele também....

Um soluço interrompeu Ninlil. As lágrimas caiam agora copiosas, mas Ninlil não se importava mais de contê-las. Aquelas eram lágrimas de ouro, a medida de quanto Ninlil tinha crescido e aprendido durante toda a jornada até ali. Ela sentou-se no chão, porque seus joelhos se recusaram a manter seu corpo ereto, mas mesmo assim continuou:

- Os nossos futuros filhos, as três sementes minhas e de Enlil que carrego dentro de mim, juntamente com o bebê de luz. Estas três outros bebês eu tive de recebê-los no meu corpo para trazer cura e bem-estar para todos nós. E agora, minha Grande Deusa e Senhora, eu entendo um pouco mais a respeito de vossa Grande Missão, e meu coração se enche de admiração ante a vós.

- Por que? Foi a pergunta, enunciada num tom bem diferente desta vez.

- Por que somente a Grande Deusa das Profundezas e o Mundo Subterrâneo, que é seu reino, são os Guardiões da Regeneração, da Beleza Interior e da auto-transcendência. Somente a poderosa Ereshkigal, a Grande Juíza, soberana da Terra da Memória Ancestral e do Equilíbrio Restaurado guarda as chaves para resolver conflitos e guerras, sabe das profundezas dos ferimentos e da cura e entende tudo a respeito da vida, do amor e da importância de criar laços, pois é Ela quem, confere o Equilíbrio e Renascimento do Espírito, se passarmos pelos testes que tem para nós. Grande Deusa, eu do-vos as mais profundas graças, vindas do meu coração, da minha mente, corpo e alma. Pois somente vós sois o Ponto que se Eleva acima de todas as Dualidades, o Centro que tudo vê, tudo sabe e tudo e a todos cura em todos os níveis e esferas.

Ao final destas palavras, Ninlil baixou a cabeça para secar o mar de lágrimas que a cegavam. Ela não viu que Ereshkigal descera do trono para postar-se de pé, na sua frente. .

- Filha da Casa Real de Anu, além das tuas lágrimas e da tua dor, além dos desafios e de todos os conflitos internos e externos, mostraste grande coragem para ver, sentir e agir para restaurar um equilíbrio maior. É justo que agora possas olhar-me nos olhos, enfrentares o meu julgamento.

Quando Ninlil levantou os olhos para receber o julgamento da Grande Juíza, o capuz havia caído e ela viu pela primeira vez a face de Ereshkigal. Não a face da deusa feroz de cabeça de leoa e cabelos de serpente, de um amontoado de ossos descarnados ou da projeção dos piores medos que se possa ter sobre a visão do após-morte. Pelo contrário, a radiante beleza de uma deusa de cabelos negros e grande sobriedade saudou Ninlil. Ela não parecia muito mais velha do que a própria Ninlil. Parecia, isto sim, não ter idade definida, ao mesmo tempo jovem e experiente, com a Sabedoria daqueles que muito viram e tudo aprenderam. A filha de Namu, as Águas Primevas do oceano, e do deus do firmamento Anu, a querida irmã gêmea de Enki era linda, mas de uma beleza mais profunda, fruto da Força Interior e Poder-Que-Vem-de-Dentro. E os olhos, a face expressiva de seriedade pensativa de Ereshkigal estavam definitivamente sorrindo para Ninlil.

- Percorreste uma longa e profunda jornada, Ninlil. Agora, para as Esferas das Alturas deves retornar. Na época certa, porém, deves voltar até mim, até as Grandes Profundezas, para dares à luz às sementes que devem retornar ao Útero Interno do Universo. Agora que foram criadas, as sementes do conflito e da guerra, do ferimento, doenças e do bem-estar, da solidão e do amor podem ferir tanto quanto podem curar. Tudo vai depender as escolhas que forem feitas, e o que posso fazer agora é zelar e manter a guarda para que as Leis do Equilíbrio e da Justiça prevaleçam no final. A quarta semente, ou a primeira, conforme o queiras, no tempo certo, ira’ ascender aos céus com as minhas bênçãos, para crescer e diminuir em brilho por vinte e sete dias, voltando o seu brilho de novo a crescer e diminuir, num ciclo eterno de magia e explendor. Na vigésima oitava noite, porém, esta luz irá desaparecer do Mundo Físico para juntar-se às minhas luzes no Mundo Subterrâneo. Ao final da 28ª noite, ele retornará ao Mundo Físico num brilho novo. Chama este bebê teu e de Enlil pelo nome de Nana, a Luz da Noite, o Brilho que ensinará à humanidade a contagem do tempo, a Lua que cresce a cada noite e que também desaparece para sempre retornar a todos os mundos. Ninlil viu-se retribuindo com gosto o sorriso de Ereshkigal. Que destino magnifico o filho primogênito dela e de Enlil iria ter! Um deus cuja luz iria crescer e decrescer num ciclo eterno, das trevas para a luz, retornando às trevas para brilhar novamente!.

- Grande e nobre Senhora, recebei todos os agradecimentos do meu coração.

Ereshkigal sorriu para Ninlil, mas ao falar novamente, a voz da Grande Deusa do Mundo Subterrâneo mudou, tornando-se a um tempo gentil e direta. Ninlil suspeitou de súbito que era exatamente este equilíbrio de indagação, critica gentil, estimulo e humor constituía a marca registrada de Ereshkigal:

- Na Assembléia dos Grandes Deuses, os Anunaki das Esferas Superiores, eu também ouvi o teu lamento em forma de pergunta. Perguntaste então, Ninlil, se o amor e a cura poderiam crescer a partir da dor para dar alento e esperança ao resto da vida. Agora, eu te pergunto, Ninlil: isto pode realmente acontecer?

Compreensão e alegria imensas encheram o coração de Ninlil.

- Sim, ela afirmou, a voz cheia de convicção, mas apenas se formos capazes de ver a verdade e compleitude além dos desafios mais difíceis.

Uma deliciosa risada ecoou na Grande Câmara de Julgamentos:

- Então, Ninlil, o que estás esperando? Vai logo e leva o teu amado relutante e cabeçudo para os mundos superiores! Os dois não tem mais nada a fazer no meu Reino!

Ninlil fez exatamente o que lhe tinha sido dito. Afinal, quem era ela para desobedecer à grande deusa do Mundo Subterrâneo?

 

VOLTAR PARA BABILÔNIA - BRASIL