ETANA E A DEUSA
Há uma passagem no mito onde o rei de Kish, Etana, encontra Inana/Ihstar, sua deusa pessoal. Aqui está a versão de Lishtar sobre como isto pode Ter ocorrido.
A Estrela Vespertina já havia aparecido nos céus, e logo o manto de veludo azul-escuro da noite iria cair sobre o firmamento. Foi neste momento que Etana vislumbrou no horizonte seu último portal e ponto de chegada da Jornada de Ascenção aos Céus desta vez, o Portal de Inana/Ishtar. Coração batendo num misto de antecipação e receio, ele se preparou para o pouso da águia. Á frente, o Portal de Ishtar era uma festa para os olhos. Paredes elegantes de lapis lazuli esculpidas com leões e rosetas em ouro. Na Babilônia, a cidade Portal dos Deuses, o Portal de Ishtar mostrava o caminho para os templos sagrados. O mesmo era válido para a Babilônia Eterna dos Mistérios.
- Obrigada pela carona, amigo, ele disse à águia, acariciando o pescoço do amigo de penas, depois de aterrisar. Mas gostaria de te pedir para prosseguir sozinho a partir deste ponto. Sinto que devo atravessar o Portal de Ishtar sozinho, pelas asas do meu desejo e vontade somente.
- Mesmo que eu quisesse, amigo e rei, minha entrada seria barrada... murmurou a águia, e se Etana não estivesse tão ansioso para seguir em frente, ele certamente teria parado para perguntar ao grande pássaro o que ele queria dizer com este comentário.
Etana, o rei de Kish, respirou fundo e atravessou o Portal. A névoa conhecida envolveu-o por completo, levando-o para os Portais Interiores. Alguns minutos se passaram para o ajuste esperado, e então ele seguiu em frente.
Logo as nuvens se dissiparam e Etana se viu num salão amplo e iluminado por tochas, cujas janelas amplas e de vidro deixavam entrar a mágica do pôr-do-sol e as cores do arco-íris do céu. O salão era longo, projetado para reis e rainhas, e sobre o palanque real, ele A viu.
O coração de Etana sabia quem era Ela, e portanto ele prosseguiu, ansioso, mas sem medo. Ela, a Grande Deusa do Amor e da Guerra, e Enlil, o deus do Ar e mais importante da geração dos deuses Anunaki, haviam descido à terra em busca de um rei para governar a terra. Ele, Etana, tinha sido a escolha Dela e Dele. Agora, passados anos, Etana se perguntava se a escolha dos deuses havia sido realmente a mais certa. E este fato o estava matando por dentro. Mas não importando qual a resposta, ele seguiu pelo centro do salão, e com reverência, respeito e amor ajoelhou-se profundamente ante Ela, antes de fitá-La nos olhos.
Jovem, esbelta, cabelos pretos que na hora do pôr-do-sol exibiam reflexos de ouro, vestida de couro franjado, um pouco acima dos calcanhares, sandálias de couro douradas, coroa de flores sobre os cabelos. Como há um tempo atrás, Ela tinha vindo até ele como a Divina Caçadora, a Guerreira do Espírito, a Essência do Amor e da Aventura, a Donzela Eterna que escolhe e faz reais. Leões descansavam a seus pés, debaixo do trono. Eles pareciam gatos satisfeitos e não animais ferozes. Etana conhecia-A tão bem, e Ela não havia mudado em todo este tempo.
- Senhora do Meu Coração, Campeã da Minha alma, os meus mais profundos respeitos, ele disse, ignorando os leões e concentrando-se Nela somente.
- Faz muito tempo, rei de Kish,´ Ela respondeu.
Ele respirou fundo:
- Tempo demais... agora eu sei com certeza.
Ela se levantou, os leões não se moveram, e para surpresa de Etana, ela foi até a janela do oeste, sentando-se graciosamente nela e fazendo espaço a seu lado para ele. Etana declinou o convite com um sorriso e sentou-se de pernas cruzadas no chão, aos pés Dela.
Ele engoliu em seco antes de começar, escolhendo cuidadosamente as palavras para endereçar a Ela:
- Tanta coisa aconteceu desde que nos encontramos pela útlima vez, mas sinto que de alguma forma cheguei a uma encruzilhada.... '
- E. queres talvez que Eu te ajude a entender algumas coisas? Continuou a Deusa, e Etana mais uma vez agradeceu silenciosamente a forma decidida e direta com que sua Deusa pessoal tratava de todos os assuntos.
- Realmente preciso entender algumas coisas importantes. Sim, eu sei que ser Teu iniciado quer dizer o refazer da alma através das ações de vida, tentando estabelecer sempre o equilíbrio que não é estagnação, mas sim uma perene busca por integração em todas as esferas da existência. O físico revela o espiritual, o espiritual deve ser um reflexo do físico em todos os mundos pelo elo do céu da terra. Sei que os desafios ao longo do caminho surgem para que a fundação da personalidade seja refeita sempre que for preciso. E isto foi exatamente o que aconteceu comigo até agora...
- Como tudo isto aconteceu então?
- Eu meditei bastante sobre minha história, e eis o que aprendi desde que fui escolhido por Ti e Enlil para ser rei. Creio que cheguei a algumas conclusões. O que passei diz respeito aos desafios de como ser um bom rei e pastor para as pessoas, o primeiro rei de mais de uma cidade. Não, melhor ainda, os desafios de merecer minha coroa e como tal tornar-me um elo vivo entre as pessoas desta terra e os deuses, Contigo em especial. Creio que minhas experiências também se referem à compreensão e aplicação da disciplina do poder e do dar poder às pessoas, proteger os fracos e também não perder os cobiçosos de vista, tentando trazê-los de volta para a preservação da paz no reino. Este foi o significado da águia e da cobra, não é mesmo? Uma metáfora para que eu compreendesse o significado do poder e o exercício da justiça entre oposições irreconciliáveis na construção de uma nação?
- Podes ser mais explícito? A voz da Deusa tinha silencioso tom de comando que não podia ser negado.
- A águia e a cobra podem ser vistos como as facções de oposição do reino, que o monarca deve manter sob vigilância. Difíceis de serem unidas, pois são diferentes em tudo, apesar de poder ser estabelecida uma trégua entre elas, trégua esta que pode também ser mantida pela aplicação da justiça. Entretanto, a facção representada pela águia é a mais difícil, o desafio do governante. Ao trair a cobra por assassinar os filhos dela, a águia é quem precisa de mais cura, mais atenção. E eu meditei bastante sobre o porquê eu tive de me alinhar com a águia, a traidora, e não com a cobra, que sofreu muito mais.
As lágrimas começaram a correr pelo rosto de Etana, mas ele continuou, sem reparar nelas.
- Eu era a cobra, desejando descendentes do meu sangue, um príncipe ou princesa para governar a terra depois de mim. A cobra era o animal em mim, energia pura e dor. Mas eu também sou o rei, e como tal responsável pela paz, progresso, bem-estar e saúde de meu povo. Eu não poderia jamais deixar a águia traidora de lado, tinha de trazê-la de volta ao reino, e ascender com ela até Ti. Como neste momento.
Derepente, ele entendeu a indecisão da águia quanto a entrar pelo Portal de Ishtar/Inana. Ela não podia, pois como traidora e assassina, não era digna de cruzar o Portal da Grande Deusa do Amor e da Guerra!
A Deusa sorriu:
- Mas nunca desististe, mesmo caindo das costas da água três vezes.
- Eu tinha de continuar.
- Por quê?
- Porque Tu confiavas em mim. Mesmo falhando, era minha obrigação vir até Ti e dizer-Te isto pessoalmente.
Ele ia dizer para Ela o quão triste ele estava por não poder-lhe dar um herdeiro ou herdeira, quando Ela desviou o olhar para o horizonte em glorioso amarelo, vermelho e preto, para então voltar-se novamente para ele. A Deusa estava mudando de assunto?
- Mais uma pergunta para ti, meu rei: para quê tu vives?
Ele sempre havia esperado por esta pergunta, mas não neste momento. A resposta, entretanto, veio do fundo de sua mente, corpo, coração e alma.
- Para transcender. Para aprender e experimentar todos os mistérios e revelá-los através de minhas ações em todos os mundos, para fazer sonhos em realidade e assim ver que eles vão durar e ser mais do que fantasia. Eu vivo para me refazer neste corpo com a Tua ajuda, tantas vezes quantas forem preciso, num exercício de desnudar da alma, sem o qual nenhum crescimento verdadeiro pode Ter lugar. Eu vivo para negar todas as negativas e afirmar todas as afirmações, pois assim como no passado, presente e futuro eu quero viver o Sagrado na Matéria, para que minha alma voe livre e quaisquer algemas em todos os mundos. E mais do que nunca, eu vivo a Jornada da Existência nesta Carne como uma Busca Consciente da Paixão, Alegria e Mágica, para finalmente retornar em Sabedoria e Amor para Ti, Fonte de tudo o que sempre Existiu, É e Será para mim.
- Tens procurado viver estas verdades no mundo, principalmente nestes últimos anos?
Surpresa e compreensão causaram um choque em Etana. Quanto tempo ele tinha chorado por um reino do futuro, ao invés de se preocupar com a terra do presente, quanto tempo ele tinha sonhado por um filho, enquanto que não tinha se dado conta de todos os homens e mulheres de Kish e além, seus filhos, como soberano deles e delas? Pastor da terra, fortalecedor do espírito de seu povo, estas eram as virtudes que ele deveria passar a seu herdeiro físico. Virtude que ele teria de aprender primeiro antes de o conceber. A um futuro rei ou rainha, talvez.
- Tenho uma outra pergunta para ti, meu querido rei, a voz da Deusa soou profunda e suave no entardecer, e na distância ele ouviu o soar de sinos. Qual é o meu Nome?
Ele prendeu a respiração por um segundo. Ela estava pedindo e dando ao mesmo tempo as Chaves de Si Mesma, a chave que ele tinha mantido guardada por tanto tempo dentro de sua Alma. .
- Inana, Ishtar, Asherath, Ashtoret, Astarte, muitos são os Teus Nomes. Mas eu Te conheço como Eternidade em Mim, Eros, Alquimia, a Verdadeira Parceira da Minha Alma, Amada e Amante numa só. Tu és a Verdadeira Visão de Alegria da Humanidade em Triunfo, Aquela que Conquistou a Morte Física, pois é a Soberana do Espírito, e portanto a maior de todas as Deusas. Tu és a resposta de todos os meus porquês, Alma do Mundo que eu Reflito na Minha, Verdade Maravilhosa que sempre soube que iria encontrar e que fiz minha para Teu Louvor em todos os mundos.
Ela estava sorrindo agora e então Sua face mudou para revelar as faces, uma após outra, das pessoas e seres que ele havia amado nesta vida, em vidas passadas e por vir. A última transformação foi totalmente inesperada, pois ele viu seu próprio rosto transfigurado pela alegria, faces mais jovens e mais velhas de si mesmo nos momentos mais especiais de sua vida, passada e futura. Então Ela voltou a ser novamente Inana.
- És realmente um pouco lento para entender o fundamental, meu Rei muito amado. Diz para mim, Etana, todo tempo que estavas tentando chegar até mim e sempre falhando a cada tentativa, como realmente te sentias?
O riso da Deusa tinha o poder da aurora trazendo luz para um novo dia. Novamente, ele se preparou para o que estava por vir:
- Eu me sentia e ainda sinto como um Grande Bobo(*), como se não soubesse de nada, um inepto e totalmente ignorante... ele explodiu.
Ela estendeu Suas mãos para tomar as dele:
- E crês realmente mesmo que poderias Ter chegado a Mim de outra forma?
*
O Bobo ou Ingênuo Divino, que tem o potencial de Tudo Saber, é a primeira figura do Tarot. Esqueçam, por favor, o termo português Louco para este arcano. Ser um Ingênuo Divino é saber conservar a pureza da alma e a integridade do corpo, da mente e do coração, a despeito de Ter o conhecimento da dor, da desesperança, do sofrimento, da traição e do desamor. Apenas como Bobos ou Crianças da Alma chegamos aos deuses e deusas, independente de qualquer idade.