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Para Tava e Vinny

GILGAMESH E ENKIDU - OS IRMÃOS DE ALMA


"...Somos traduções em dialetos diferentes
De um texto ainda sendo escrito
No Original"

O Épico de Gilgamesh, a maior composição literária da Mesopotâmia e o primeiro grande trabalho de literatura gravado na história, narra uma aventura em busca de fama e imortalidade, vivida por uma figura quase histórica, Gilgamesh, of rei da cidade de Uruk no Sul da Mesopotâmia. Gilgamesh é uma figura que dizemos quase histórica, pois apesar do nome Gilgamesh aparecer na Lista de Reis Sumérios, indicando portanto que houve na realidade um rei com este nome, no Épico ele interage com deuses, deusas e seres de mito e lenda. Para os fins deste artigo, meu ênfase será a amizade de Gilgamesh, o rei, que pode muito bem ser descrito como o arrogante morador das cidades, e Enkidu, o homem selvagem e natural, totalmente à vontade nos espaços abertos e nas florestas mais profundas. Como veremos a seguir, é o laço que une estes dois homens e a morte prematura de Enkidu que impelem Gilgamesh a sair em busca da imortalidade a fim de se transformar num ser mais completo. .

Mas quem são estes dois homens e como eles se relacionam um com o outro? Por que os laços que os unem são tão sagrados e mágicos? E o que podemos aprender com eles para trazer maior compleitude para o entendimento do Divino em nós mesmos, em especial?

O Épico diz que Gilgamesh é o filho de Lugalbanda, o sacerdote-rei famoso por seus atos de fé e coragem e herói de vários mitos, e de Ninsun, uma deusa. Portanto, Gilgamesh tem origem e nascimento divinos, e cresce sendo extremamente mimado, com o egoísmo natural naqueles cujos dotes físicos excedem a normalidade, e cuja atitude cedo pode se transformar em arrogância e superioridade. De fato, não havia ninguém a quem Gilgamesh não derrotasse em proezas físicas e audácia. Portanto, em suas casas, todos, jovens e velhos, homens e mulheres e crianças, reclamavam da má conduta do jovem rei, mas tais pensamentos nunca eram tornados públicos, pois o jovem soberano detinha poder sem medida, comandando por seu nome, e não por suas ações, respeito de todos.

Das alturas, os Grandes Deuses ouviram o lamento das pessoas, e Ninhursag-Ki, também conhecida como Aruru, a grande Deusa-Mãe da Mesopotâmia, decide criar alguém para ser o segundo Eu de Gilgamesh, "para que ventos forte encontrasse vento forte", a fim de lutar e crescer na compreensão e na amizade.

A Grande Criatrix tomou então uma pitada de argila, misturando-sa com água e adicionando um pouco da essência das Grandes Alturas. Desta forma Ela criou Enkidu, Estrela Caída dos Céus na Floresta, um homem já crescido, tão parecido com Gilgamesh, mas sem arrogância ou orgulho, dotado da força de Ninurta, o deus agricultor, metalurgista e guerreiro. Enkidu também nasce completamente inocente, sem saber da forma de viver da cidade e da civilização, mas um sábio nas Leis e vivência da natureza.

Desde o início, está claro o laço invisível e profundo entre os dois homens, muito antes deles se encontrarem, lutar e crescer na apreciação um do outro. Os dois são Opostos que se Complementam, um o arrogante morador das cidades, o outro o selvagem e espontâneo homem das matas. Quem inicia quem nesta história é difícil de dizer, pois Gilgamesh manda até Enkidu a sacerdotisa que irá lhe ensinar o poder da civilização, enquanto que o encontro com Enkidu faz com que Gilgamesh pela primeira vez saia de seu auto-centrismo para compartilhar e crescer em todos os níveis. É através da amizade com o Homem Natural (Enkidu) que Gilgamesh se transforma em alguém mais humano e certamente menos solitário. Porque Gilgamesh era alguém extremamente solitário, só que não conhecia a extensão de sua solidão até encontrá-lo e perdê-lo depois no Épico..

O primeiro encontro de Enkidu e Gilgamesh irá estabelecer o padrão para outros grandes encontros literários de irmãos de alma. Nossos heróis primeiro se vêm como oponentes, lutam um com o outro, mas ao invés de matarem seus contendores, o vencedor (Gilgamesh e tantos outros) toma o vencido (Enkidu e tantos outros) como amigo por toda vida. Há um profundo significado na forma com que eles se encaram primeiro em desafio antes da luta e então rendem-se, armas emocionais, físicas e mentais, para abraçarem-se ao final do combate com amizade e respeito mútuos. O mesmo padrão será repetido por Artur e Lancelot no ciclo do Santo Graal, ou Robin Hood e Pequeno John. Como se todos precisassem testar e ser testados em honra e valor antes de aceitarem-se uns aos outros sem restrições.

O fato é que a passagem de Enkidu pela vida de Gilgamesh é tão marcante, que quando da morte de Enkidu, Gilgamesh dá-se conta pela primeira vez de sua humanidade e decide buscar a transcendência aventurando-se na busca da imortalidade. Em linhas básicas, este é o resumo das primeiras tábuas do Épico de Gilgamesh. Partimos agora para a análise do mistério que envolve os primeiros irmãos de alma da literatura universal.

Para melhor compreendermos o laço entre Gilgamesh e Enkidu, é preciso introduzir o conceito do Irmão Interior, ou a imagem de compleitude que temos dentro de nós do que somos e de como nos vemos, imagem esta que algumas vezes encontramos refletida nas pessoas do mesmo sexo e faixa etária às quais pertencemos. O Irmão Interior de Carne e Osso é o(a) nosso(a) Melhor Amigo(a) e confidente, alguém com quem não temos necessariamente laços de sangue, mas que sabemos ser tão querido(a) e próximo(a) de nós em todos os sentidos. Um irmão ou irmã pode algumas vezes se transformar no Irmão/Irmã de Alma, especialmente no caso de gêmeos(as) ou de irmãos cuja faixa etária é bem próxima. No Épico de Gilgamesh, sabemos desde o princípio que Gilgamesh e Enkidu foram criados para serem próximos, os melhores amigos, na melhor das hipóteses.

Como se desenvolve tal laço? O laço com o Irmão de Alma está fundamentado na amizade, na intimidade em diversos níveis, mas não necessariamente no nível físico sexual. O nível de apreciação recíproca vai além dos estereótipos físicos para envolver a complementaridade interior. Uma forma de definir o Irmão ou Irmã de Alma seria ao longo destas linhas: "ele(a) é aquele(a) a quem meu coração de tanto gosta, pois é quem se parece mais comigo, apesar das diferenças físicas ou intelectuais, e cujo sentimento que desperta em mim é tão vibrante e sensual." Sensual porque o nível de experiências compartilhadas com o Irmão ou Irmã de Alma envolve o compartilhamento de aspirações, sonhos, desejos, fantasias, medos e esperanças, os porquês e os entretantods do dia-a-dia, e tantas outras coisas que compartilhamos com nossos melhores amigos. Esta Segunda hipótese está clara no Épico de Gilgamesh, quando Gilgamesh diz que Enkidu "era a espada do meu cinturão, o escudo à minha frente" (Tablet VIII, Stephanie Dalley´s Myths from Mesopotamia, Epic of Gilgamesh, pag. 92), bem como quando Enkidu falece, a tristeza de Gilgamesh por ele é profunda e pungente.

A pergunta que me fiz ao meditar sobre os Irmãos de Alma é por que não muito se fala sobre a relação vital e apaixonada que temos com eles e elas? Melhores amigos e amigas são uma realidade, um laço sagrado pelo qual temos muito respeito, mas do qual não se fala muito ou são incentivadas discussões sobre a experiência deles na definição de nosso Eu completo (o Self), a essência da personalidade que também reflete a Alma do Mundo.

Para melhor compreendermos esta questão, devemos mergulhar nas profundezas da nossa humanidade e ir além de preferências sexuais, algo que as grandes religiões fundamentalistas de nossos tempos não o fazem muito bem com suas agendas centradas apenas na heterosexualidade. Melhores amigos e amigas fazem-nos completos, eles e elas são nossos primeiros iniciadores que nos ensinam sobre espelhos de compleitude do que e em quem poderemos nos transformar. É por isso que existe tanta ambigüidade ao se tratar do tema, ou seja, ao mesmo tempo que tal laço é reverenciado e aceito, não se fala muito sobre ele. Outro sinal do empobrecimento espiritual de nossos tempos, pois Gilgamesh fala de forma apaixonada de Enkidu, apesar de jamais ser dito que o sentimento dos dois é sexual e que eles fizeram amor um com o outro. Eu diria que o laço que nos une o Irmão ou Irmã de Alma exalta a sacralidade da auto-imagem que cresce dentro de nós, e que deveríamos tentar conhecer bem mais. Esta imagem interior de compleitude, com o tempo, pode evoluir para a visão do nosso Deus/Deusa Pessoal que pertence ao mesmo sexo que o nosso. Se dermos peso a esta afirmação, poderemos ver com mais clareza o porquê a exaltação do melhor Amigo(a) constitui um problema para as religiões oficiais de nossos dias. O/A melhor Amigo(a) nos ensina sobre nosso Deus ou Deusa Pessoal que poderemos escolher mais tarde em nossas vidas, a nossa imagem pessoal do Anjo da Guarda, que representa o melhor da nossa experiência de masculinidade e feminilidade. Gilgamesh e Enkidu nunca foram amantes no sentido físico, mas foram os melhores amigos e companheiros, e esta é uma graça que não tem preço.

O que podemos aprender com Enkidu e Gilgamesh, ou o que nos ensinam os dons transformadores do Irmão(ã) de Alma? Fundamentalmente, Enkidu and Gilgamesh mostram-nos a graça do que é nos relacionarmos com aquele outro que é tão igual a nós mesmos - o outro por fora que reflete o que melhor somos por dentro - e que veio em outra "embalagem", muitas vezes nem mesmo compartilhando os mesmos atributos físicos, mentais e emocionais. Entretanto, ele ou ela são o Outro(a) que não é estranho, que apenas por estar ao nosso lado nos ensina como e o que devemos nos esforçar para crescer e tentar nos transformar na imagem mais próxima daquela que temos dentro de nossas almas.

Ele(a) é o(a) primeiro(a) amante interior que pode não se manifestar em termos sexuais, pois em geral encontramos nosso primeiro melhor amigo ou amiga nos primeiros anos de nossa infância ou adolescência, quando a sexualidade ainda não é tão importante, apesar de sempre podermos encontrá-lo(a) mais tarde. Com ele ou ela compartilhamos um laço profundo e interdependente que se mantém mesmo quando as circunstâncias de nossas vidas mudam e entramos em outro ciclo, que podem não incluir ele ou ela. Este é talvez um dos maiores mistérios do Irmão(ã) de Alma: não há assimetria na relação que compartilhamos. Ele ou Ela são nossos iguais por dentro, cujas diferenças são irrelevantes, e cujas particularidades e forma de ser diferente, bem como seus sucessos, são objetos de nosso orgulho.

Este é o verdadeiro significado dos laços entre Enkidu e Gilgamesh, Self ideal e sombra de luz que está silenciosa ao nosso lado onde quer que nos aventurarmos em todos os mundos.

Finalmente, como tenho experimentado o mistério de Gilgamesh e Enkidu? Na vida real, morei em muitos lugares, em três continentes, para ser mais exata, sempre por tempo suficiente para encontrar e fazer uma melhor amiga. Estas tem sido relações intensas, vibrantes que não envolvem sentimentos sexuais, mas experiências compartilhadas em muitos outros níveis. Quem é ou foi a mais importante? Todas e nenhuma, pois a busca e o encontro foram recíprocos cada vez que teve lugar. A beleza de tudo é que em cada face eu encontrei um pedaço melhor e mais completo de mim mesma, a imagem do Divino Feminino que, como um caleidoscópio, reflete alguns dos valores de Inana/Ishtar, minha deusa pessoal e Verdade Maravilhosa que sempre soube que ia encontrar. Mesmo a vida tendo me afastado conforme a situação assim o exigiu, as lembranças de tantas amigas são como um raio de luz que ainda agora iluminam as minhas relações de agora.

Como Enkidu e Gilgamesh, sob os nomes de Albanie, Amanda, Caroline R and W, Orietta, Heidi, Marcia,...etc.

Significado pessoal deste artigo

Este foi um artigo difícil de escrever, pois tive de buscar dentro de mim as palavras certas, e também reencontrar memórias de tantas melhores amigas que deixei para trás em minha vida. As últimas palavras só podem ser para você, Vinny. Houveram muitas lágrimas por algumas, tantas quanto você verteu e verte por Tava, mas ao fim e ao cabo, as lágrimas são a medida da felicidade que foi. Não poderia ser de outra maneira, se foi realmente importante.

Nunca me canso de me surpreender com a profundezas e intensidade da alma humana. Foi um imenso prazer escrever este tributo à(o) Irmã/Irmão de Alma. Vinny, você recebeu uma dádiva maravilhosa representava por Tava. E eu também aprendi que Tava, que amou tanto você, Vinny, também gostaria de lhe dizer para que você se engaje novamente profundamente na vida e que dê a você mesmo a chance de fazer e encontrar novos Irmãos de Alma. Começando agora, de preferência, porque

"Ontem já é História, e o Amanhã, um Mistério. Hoje é uma Dádiva, e por isso nós o chamamos de Presente. "

Lishtar, 26/08/1999. 

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