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Aqui está uma versão resumida de uma apresentação que fiz em Londres sobre o Épico de Gilgamesh, a mais longa e elaborada obra-prima de literatura mesopotâmica. Como seu texto já existe em língua portuguesa, aqui vai a minha experiência da cura (uma das 10.000 possíveis!) desta grande jornada de iniciação e transformação pessoal

26/07/95 Talking Stick, introdução histórica de Paul Collins (British Museum) - não incluída

A CURA DE GILGAMESH

A CRIAÇÃO DE ENKIDU (TÁBUA 1)

Narrador: Dele, que tudo viu nesta terra, e que sabia tudo o que devia ser sabido, que experimentou toda uma miríade de experiências, tornando-se versado em todos os temas. Dele, a quem a sabedoria cobriu como um manto, e que aprendeu o Mistério de Viver em Harmonia; ele, que sabia o segredo das coisas, deixando-as às claras, e que contou a respeito dos tempos de antes do Dilúvio, dele, é a respeito dele que irei cantar! Na sua cidade, ele construiu as muralhas, e o templo chamado Eana, a casa de Anu, o deus do firmamento, e de Inana, a Grande Deusa do Amor e da Guerra. Agora, ouçam como Gilgamesh enfrentou muitas dificuldades. Longa foi sua jornada. Ele é o herói, ele , de Uruk, ele mostra o Caminho, ele o mais Importante, Gilgamesh, da descendência de Lugalbanda, Filho da poderosa deusa Ninsun, Jurado ao deus Sol, Utu. Ele era dois terços deus, um terço humano. Gilgamesh, o heróico ancestral de Uruk, a vós eu canto!

Gilgamesh: Eu me aventurei pelo mundo, mas não havia ninguém, ninguém, a quem eu, Gilgamesh, não pudesse superar! Portanto eu ouvia em suas casas as pessoas sussurrarem entre dentes: " Gilgamesh, ruidoso Gilgamesh, arrogante Gilgamesh!" Pois eu derrotava todos os jovens em combate, todas as donzelas eu fiz mulheres pela força do meu desejo, deixando nenhuma virgem para seu amante, nem mesmo a esposa de um nobre! Eu era o rei, o pastor da cidade, lindo e firme como uma rocha.

Narrador: No firmamento, os deuses ouviram o lamento das pessoas, e voltaram-se para a Grande Deusa Aruru, a Deusa da Criação. Os deuses voltaram-se para a Senhora de Tudo o que Existe.

Aruru : Eu escutei a todos vocês! Sim, eu criei Gilgamesh. Agora, criarei seu igual! Darei a Gilgamesh um segundo eu, para que vento fustigante encontre vento fustigante! Eu darei um ao outro para lutar e crescer na compreensão e na amizade. Formarei uma imagem em minha mente, que concebeu tudo o que existe. Fá-lo-ei de um pouco da essência do firmamento (Ela estende as mãos para o céu), e da essência das profundas águas sagradas (Ela mergulha as mãos numa elegante vasilha com água). De uma pitada de argila, pedaço de mim mesma, eu dou à luz a você, Enkidu! (Enkidu rola até chegar aos pés de Aruru) Estrela caída dos céus que desceu às selvas, Enkidu, este vai ser teu nome! Nascido com a força do grande deus Ninurta, rijo de corpo, cabelos ondulados como filamentos de trigo, eu dou à luz a ti, Inocente nas Formas de Ser da Civilização, Experiente e Sábio dos Mistérios da Selva!

Enkidu (esticando os braços e experimentando a vida pela primeira vez): Estrela caída dos céus no meio da selva, eu corro por esta terra, em perfeita harmonia com pássaros, animais, peixes, plantas e tudo o que à minha volta vejo! Ninguém me supera em força e destreza, pois sou um com toda Natureza! Meus amigos mais próximos, porém, são os animais ferozes da floresta, e a eles dedico minha existência, salvando-os de todos os perigos, em todas as contingências!

Narrador: Um dia, ao ver Enkidu libertar os animais de suas armadilhas, um caçador ficou paralisado de medo. Sua caça, seu sustento, desaparecido num momento! O caçador vai até Uruk, para encontrar Gilgamesh, o rei, e pedir ao rei para dominar o Selvagem, fazê-lo parar de libertar os animais e impedir a caça.

Gilgamesh: Um selvagem, uma estrela caída dos céus, forte e livre? Mas totalmente ignorante do que é uma mulher, eu aposto que ele é! Pedirei por uma donzela do templo sagrado de Inana, uma Iniciada nos Prazeres, que irá abraçá-lo, e ensinar o que é a arte de ser mulher, para que num homem o selvagem possa se transformar.

A Sacerdotisa: (faz um movimento gracioso de reverência antes de se mover para frente do palco - luzes nela): Eu sirvo Inana, a orgulhosa Rainha dos Deuses e Deusas desta Terra, Suprema entre os Deuses do Firmamento! Eu sirvo à Tempestade Ruidosa e Trovejante que derrama as chuvas, os cereais e bênçãos por sobre a terra para todas as pessoas. Eu sirvo Àquela que faz os céus tremerem e a terra estremecer. Eu sirvo à Deusa Poderosa dos Prazeres da Vida, a Senhora dos Desejos Mais Profundos. A vós, Primogênita da Lua, eu adoro, vossas pegadas são minhas para seguir com grande alegria e reverência. Pois pelos meus votos sagrados, pelo meu juramento, irei até a floresta e cumprir o mandato da deusa para transformar o selvagem recém-nascido, num verdadeiro homem, sábio e crescido!

(A Sacerdotisa se move para o outro lado do palco, observada por Enkidu ao fundo)

A Sacerdotisa: Deixei a lua cheia cobrir meu corpo, quando me banhei para o selvagem

Mostrando-me toda para ele, vibrante e livre! E quando a Estrela Matutina apareceu nos céus, trazendo um novo dia, mil promessas e alegrias, eu ergui meus braços com toda confiança, carinho, delícia e ousadia para convidar o selvagem a vir para minha companhia!

(Enkidu faz um círculo completo ao redor da sacerdotisa)

E ele me encontrou, ele me encontrou! Ele pôs sua mão na minha, ele se enroscou no meu pescoço, eu o convidei a me amar, eu incentivei o seu carinho!(Eles beijam-se, abraçam-se, etc. )

Enkidu: O que tens que fazes me esquecer do tempo, e mesmo assim sentir-me tão vivo e alerta? Os animais, as selvas não mais me atraem como antes. No entanto, sinto algo diferente crescer dentro do peito, no meu coração, no coração de um homem feito. O que tens que me fazes sentir mais forte e satisfeito, mesmo só de me sentar a teu lado, em silêncio?

A Sacerdotisa Estamos juntos agora por sete dias e seis noites, Enkidu, então agora tu tens Sabedoria. Agora, és tão poderoso quanto um deus! Por isso, eu te convido para ires comigo a Uruk das muralhas tão fortes, ao templo de Inana e Anu, o sagrado Eana, e a encontrar nosso rei, Gilgamesh. De fato, foi ele quem me mandou até ti, mas nosso rei ainda não sabe do grande papel que terás em sua vida. Lá, em Uruk, Gilgamesh ruge tal qual leão enfurecido, pois dele é a solidão dos fortes e super-dotados, que se transforma em arrogância, se não for trabalhada. Ele não sabe, mas precisa de um amigo, e eu sei que este amigo és tu, Enkidu! Pois mais do que ninguém, tens a coragem, a força e a beleza interior para fazer a amizade e o calor retornar ao coração de Gilgamesh, o rei e nosso sagrado pastor.

Enkidu: Alguém tão forte e solitário, como eu? Sim, este alguém eu quero conhecer! Leva-me então a Uruk , para encontrar o rei Gilgamesh! Lá chegando, eu o desfiarei numa luta, para ver qual de nós dois tem maior força, e então veremos se amigos de verdade poderemos ser!

A Sacerdotisa: Sim, eu te levarei até Gilgamesh, até Uruk! Pois agora estás pronto para encontrar Gilgamesh, nosso pastor-rei, a quem irás amar como a ti mesmo, e ele a ti. Vocês dois são tão semelhantes! Mas antes de irmos, eu dividirei minhas roupas contigo, uma peça para mim, outra para ti. Dá-me tua mão para irmos juntos ao local sagrado dos pastores, para então comermos e bebermos da mesa dos produtos da terra. Vem, Enkidu, mal posso esperar para chegarmos juntos a Uruk!

O ENCONTRO PREDESTINADO (TÁBUAS II E III)

Gilgamesh: Mãe adorada, grande Ninsun, vós, que sois a escolhida de Utu, o deus Sol e luz do dia, vós que sabeis a arte de adivinhar o significado dos sonhos, eu vos peço: ouvi o sonho que tenho a relatar!

Ninsun: Filho querido, o que te aflige? Que posso eu fazer para trazer paz ao teu coração, à tua mente, ao teu corpo, filho da minha alma?

Gilgamesh: Tive dois sonhos, mãe. No primeiro, eu caminhava entre os nobres, quando uma estrela caída dos céus, da própria essência de Anu, o deus do firmamento, desceu na minha direção. Eu tentei erguê-la, mas não pude movê-la! Toda Uruk estava ao redor da estrela, ajoelhados a seus pés

Ninsun: Vejo uma grande verdade no teu sonho, Gilgamesh! Em breve, encontrarás um ser especial. Quando o vires, teu coração irá se alegrar. Os nobres beijarão os pés dele, irás abraçá-lo e levá-lo até mim.

Gilgamesh: No segundo sonho, vi um machado. Todos estavam ao redor dele. Assim que o vi, eu me alegrei e amei-o, sendo atraído por ele como se fosse uma mulher. Eu coloquei tal machado ao meu lado

 Ninsun: Alegre-se meu filho! O segundo sonho confirma o primeiro: breve, muito em breve encontrarás um grande companheiro, que chegará como rival, mas logo se transformará no melhor amigo que poderias um dia desejar!

(Enkidu aparece de um lado do palco, de mãos dadas com a sacerdotisa 

Narrador/Côro: Olhem para o recém-chegado! Menor de corpo, mas igual a Gilgamesh! Para ser páreo para Gilgamesh!

 (Gilgamesh e Enkidu se encontram. Eles fazem um círculo, um ao redor do outro, avaliando-se mutuamente. Gilgamesh tenta ir em frente, mas Enkidu bloqueia-lhe o caminho

Gilgamesh: Quem ousa me bloquear o caminho? Quem quer ousa enfrentar a minha cólera?

Enkidu: Eu me atrev0, eu Enkidu! Aqui venho como vosso igual! Provai-me que estou errado, se puderdes!

Narrador (fala enquanto os dois lutam): Enkidu e Gilgamesh lutam bravamente uma eletrizante batalha nas ruas, mercados, canais e parques de Uruk. O povo acompanhava os heróis, torcendo pelos dois! Finalmente, Gilgamesh leva Enkidu ao chão.

 Gilgamesh: Venci! Mas foi-se a minha ira, pois nunca tive oponente tão nobre e valeroso! Nunca foi uma vitória tão difícil e tão doce ao mesmo tempo! Eu tomo a ti, estranho, como amigo, ao invés de inimigo! Venha, acompanhe-me ao palácio, venha morar comigo!

Enkidu: Quem sou eu para vós, meu rei?

Gilgamesh: O amigo por quem clamava sem saber na minha solidão, o companheiro que sempre soube um dia iria encontrar! (Eles se abraçam em amizade)

O CAMINHO PARA A FLORESTA DE CEDROS (TÁBUA III)

Gilgamesh: Agora que somos amigos, Enkidu, vamos realizar grandes feitos juntos! Para começar, vamos até a Floresta dos Cedros, para derrotar Humbaba, o terrível. Vamos matá-lo e livrar a terra de sua terrível presença.

Enkidu: Não! Deixemos Humbaba de lado!Seu rugido é o Grande Dilúvio, sua respiração, a morte! Achemos outra tarefa! Humbaba não é alguém a quem devamos enfrentar!

Gilgamesh: Não, eu vou lutar contra Humbaba! Sozinho, se for preciso!

Enkidu: Ah. Lágrimas enchem meus olhos, meu coração está pesado e triste, mas não posso deixar Gilgamesh partir sozinho! Eu temo pelo pior, mas com as bênçãos dos deuses, talvez haja uma chance!

Gilgamesh (dá um passo à frente, e reza a Utu): Oh, Grande Deus do Sol, Espírito da Justiça, a vós eu saúdo! Escutai minha prece, e abençoai nossa empresa, para que possamos voltar a Uruk com uma grande vitória!

A BATALHA DA FLORESTA DE CEDRO (TÁBUAS IV E V)

Narrador: Enkidu e Gilgamesh fizeram uma longa jornada, até que pararam extasiados frente aos grandes cedros da floresta, onde morava Humbaba, e onde Irnini, a Grande Inana, tinha também seu trono.

Gilgamesh: Ah, Enkidu, confio na vitória, mas pelos sonhos que tive, ela será difícil!

Enkidu: Partimos e fazemos nossa jornada com as bênçãos do Sol! Não tenhamos medo!

Humbaba (rugindo): Quem veio aos meus domínios, quem está interferindo com minhas árvores? Quem é o intruso e destruidor do meu mundo?

Enkidu: Somos nós: Gilgamesh, o rei de Uruk, e seu irmão de alma, Enkidu, que viajam sob a proteção de Utu, o deus Sol! (Humbaba avança contra Enkidu and Gilgamesh)

Gilgamesh: Utu! Grande Deus! Mandai-me vossos ventos e tempestades! Que eles se levantem contra Humbaba!

Narrador: E os ventos mais fortes sopraram, prendendo Humbaba.

Gilgamesh: (aproxima-se de Humbaba e enterra uma faca no monstro): Veja, Enkidu, veja, oh mundo! Que grande vitória conquistamos! Juntos, Enkidu! Só nos resta agora agradecer a Utu, nosso deus, e voltar o quanto antes, em glória a Uruk!

Enkidu: Salve, salva a Gilgamesh e Enkidu, os heróis mais bravos de Uruk!

A VINGANÇA DE INANA (TÁBUA VI)

Narrador: Gilgamesh lavou-se, vestiu-se e preparou-se ao chegar a Uruk (num lado do palco, Gilgamesh se arruma). Quando Inana viu tudo isto, Ela, a grande Deusa do Amor e da Guerra, A Mais Amada e Grande Amante, levantou os olhos ante a beleza Gilgamesh:

Inana: Oh, Gilgamesh, não queres ser meu consorte? Dar-te-ei a mim como esposa e os presentes mais preciosos, se te tornares meu esposo

Gilgamesh: Mas que vantagem teria eu como teu consorte? Nenhum dos que escolhes dura muito tempo nos teus favores! Por uma primavera de amores, sucedem-se depois apenas com o tempo dissabores!

Inana: Gilgamesh, acabaste de me insultar, e isto jamais ficará sem resposta! Se não queres o meu amor, então terás a minha cólera e a força do meu poder! (Ela avança para frente do palco, e ergue os olhos para o alto). Pai, grande deus do firmamento, poderoso Anu! Eu vos suplico, dai-me o Touro dos para esmagar o rei Gilgamesh, que me recusou e me ofendeu! Pai, se não me deres o Touro dos Céus, eu descerei à mansão dos mortos, deixarei suas portas escancaradas, para que os mortos suplantem os vivos! Os mortos então comerão todo alimento dos que vivem! Meu povo, porém, eu protegerei! Aqueles que me adoram terão toda a proteção, abundância e grãos, pois jamais faltarei a quem me adora! (Inana vai até o meio do palco, ajoelha-se e lá se transforma no Touro dos Céus

Narrador: E o Touro Selvagem desceu dos céus, começando então uma luta memorável. Homens lutaram, homens morreram, mas impávido estava a grande Fera, até ver-se frente a frente com Enkidu e Gilgamesh. 

Enkidu: Vou te perseguir, cólera da grande Deusa, até a derrota final!

Gilgamesh: Juntos, Enkidu, vamos lutar contra o Touro dos Céus até o fim! O dele! (Gilgamesh e Enkidu enfiam suas facas/espadas nos chifres ou o que for que estiver se passando pelo Touro dos Céus) Conseguimos! O Touro dos Céus jaz morto! (Gilgamesh ergue as mãos num sinal de vitória e se ajoelha) Utu, deus sol e luz do dia, a vós dedico esta grande vitória

Enkidu (ajoelhado ao lado de Gilgamesh): Graças ao grande Utu, o deus Sol!

Inana (transforma-se novamente de Touro dos Céus em Grande Deusa): Amaldiçoados sete vezes sete sejam Gilgamesh e Enkidu pela morte do Touro dos Céus! Mas ninguém, ouçam todos, ninguém ofende a grande deusa em vão. Ouçam minhas palavras, rei de Uruk e amigo do rei: o que mais amam, os dois, eu repito, os dois irão perder! E que seja feito segundo a minha vontade!  (Som de tambores: Inana retira-se em grande estilo do palco)

Gilgamesh: (avança para a audiência): Povo de Uruk, donzelas de Uruk, eu vos pergunto: quem é o mais esplêndido dentre os homens? Quem é o favorito de deus Sol Utu? Quem tem coragem e força inigualáveis?

Narrador/Côro: Gilgamesh é o mais esplêndido dos heróis! Gilgamesh, o rei de Uruk!

A MORTE DE ENKIDU (TÁBUAS VII/VIII/IX)

Enkidu (reclinado): Meu amigo, tive um sonho, um sonho mau na noite passada. Os Grandes Deuses se reuniram e declararam que por termos matado o Touro dos Céus e Humbaba, o guardião da Floresta de Cedros, um de nós deve morrer. E este alguém sou eu. Já sinto que a vida de mim se despede.

Gilgamesh: Meu irmão, meu amigo, não posso perder-te! Seria um preço alto demais!

Enkidu: Tarde demais, pois a doença já entrou no meu corpo. Ah, por que morrer assim? Antes quisera eu jamais Ter deixado a selva, jamais Ter conhecido a civilização, jamais Ter vindo a Uruk? Por que me mandastes a sacerdotisa? Amaldiçoada seja ela!

Gilgamesh: Por que amaldiçoar a sacerdotisa, Enkidu? Foi ela quem te introduziu a alimentos e bebidas dignos dos deuses, que te vestiu com roupas dignas de nobres e reis. Sem ela, não terias vindo até mim. Sem ela, eu, Gilgamesh, não teria te encontrado, não teríamos crescido em respeito e amizade um pelo outro. Sem a donzela sagrada, jamais teríamos nos tornado amigos e irmãos de alma.

Enkidu: Tendes razão, meu rei e irmão. Ah, sacerdotisa, eu retiro minhas palavras, e exalto teu nome! Aquela que me tornou um verdadeiro homem e irmão do meu rei, a ti eu canto! A ti dou as mais sinceras graças!

Narrador: Enkidu piorou nos próximos dias. Gilgamesh, a seu lado, impotente assistia o enfraquecer lento e inexorável de seu melhor amigo, dentre todos, o mais querido. O rei chorou amargamente por Enkidu.

Gilgamesh: Enkidu, que toda criação, animais, teus amigos, plantas, pedras, rios e mares, os campos e as estepes, os rebanhos, os senhores e súditos chorem por ti! Ah, Uruk, ouve o que tenho a dizer: é por Enkidu que chora seu rei, por meu amigo mais querido que derramo as lágrimas mais sentidas, o pranto com mais sentimento vertido. Perdi a adaga que trazia à cintura, o martelo poderoso da minha mão, o escudo que se postava ante a mim! Ah, meu amigo, ah, Enkidu, juntos, tudo fizemos, tudo conquistamos! Que estranho sono toma conta de ti, do qual não mais te levantarás? Enkidu, podes me ouvir?

Narrador: Gilgamesh sentiu o coração de Enkidu, mas este não mais batia. Então, ele envolveu o corpo do amigo num sudário, e chorou por Enkidu tal qual uma leoa que perdeu sua ninhada.

Gilgamesh: Eu não vou morrer, tal qual Enkidu? Então, antes que isto aconteça, devo procurar o segredo da vida eterna, pois temo a morte, e não quero sucumbir a ela! Onde devo começar? Talvez pela busca a Ziusudra, o ancestral que sobreviveu ao dilúvio, e que até estes dias vive, feliz e saudável, nos confins do mundo. Sim, vou descobrir o segredo da vida eterna! Pela memória de Enkidu, eu juro não descansar até descobrir que transcende à morte, o caminho para a vida eterna!

A TAVERNEIRA SAGRADA (TÁBUAS IX E X)

Narrador: Sozinho, Gilgamesh partiu. Muitos foram os desafios que primeiro teve de enfrentar: leões ferozes, os guardiões das fronteiras para outros mundos, mas ele os venceu e conseguiu passagem. Ele teve de enfrentar o homem e a mulher-escorpião, os guardiões das montanhas que zelam pelo nascer e o pôr do sol. Novamente, foi-lhe dado passagem. Nem mesmo o Jardim das Jóias teve forças para prender Gilgamesh com suas delícias. Até que, exausto, ele chegou aos domínios de Siduri, a dona da taverna sagrada, que prepara bebidas mágicas, as bebidas dos deuses, as quais oferece aos passantes justos e honrados.

Gilgamesh (bate na porta) Grande Siduri, Inana do Véu, Noiva de Minha alma que vagueia, vós, que trazeis conforto aos que chegam à vossa sagrada taverna, a vós eu saúdo! Deixai-me entrar, eu vos suplico, refrescai estes lábios sedentos, abri a porta a este estranho que se aventurou pelo mundo e além. Dai-me uma gota de vossos licores sagrados, um porto seguro para descansar um momento antes de me pôr novamente a caminho do meu destino.

Siduri (faz um movimento gracioso, como se estivesse lendo o coração de Gilgamesh): Certamente não posso deixar entrar nesta taverna sagrada um rei e assassino, que matou o Touro dos Céus e Humbaba sem dó ou piedade!

Gilgamesh: Sim, a verdade fala por vossos lábios, mas mesmo assim, deixai-me entrar, nobre senhora! Pois o preço que tive de pagar por tais atos foi a vida de meu melhor amigo e irmão de alma, em nome de quem saí para a vida eterna procurar. Eu vos suplico: deixai-me entrar.

Siduri (abre a porta e olha com desaprovação para Gilgamesh): Teu amigo está morto, rei de Uruk. Chega de luto. Esqueça-o e siga em frente com a vida!

Gilgamesh: Não, não posso aceitar a morte! Por isso tenho de continuar buscando a vida eterna!

Siduri (aproxima-se de Gilgamesh e diz gentilmente): Gilgamesh, Gilgamesh! Do que estás realmente fugindo? Nunca encontrarás a vida eterna da forma pela qual a estás procurando. Esqueça esta busca insana, viva bem, seja feliz, te casa, dança, trabalha com afinco e paixão, alegra-te com o que és, com o que fazes, e com o que podes e deves dar ao mundo, e aos que te rodeiam. Esta também é uma forma de fazer momentos se tornarem em eternidades. Pára de vez com esta busca inútil e vive o aqui e o agora, que dão a medida da continuidade e do sempre.

Gilgamesh (ajoelha-se a abraça a cintura de Siduri): Mas não posso! Sei que não!

Siduri (abraça Gilgamesh por algum tempo, e depois ergue a cabeça dele para encontrar o seu olhar): Cabeçudo e teimoso Gilgamesh! Esta busca, em verdade, não é por Enkidu, mas por ti mesmo, rei de Uruk! Vives o medo da morte, antes dela acontecer! Que vou fazer contigo, rei de Uruk? (ela muda o tom de voz então, para positivo e direto) Mas queres encontrar Ziusudra? Talvez haja uma forma. Há um barqueiro chamado Urshanabi, que sabe onde ele vive. Se eu pedir a ele, quem sabe ele lá te leve.

Gilgamesh: Obrigada, minha grande Senhora! (ele beija a mão de Siduri)

Siduri: Que assim seja! Eu te levarei a Urshanabi, e de lá, quem decidirá será ele. Mas parta agora com as minhas bênçãos, que teu coração ache paz, a tua mente o descanso e a tua alma o consolo em todos os mundos e esferas (Siduri abençoa Gilgamesh).

O ENCONTRO COM ZIUSUDRA (Tábuas X e XI)

Narrador: Gilgamesh, levado por Siduri, encontrou Urshanabi, o barqueiro de Ziusudra, que levou o rei de Uruk por sobre as águas da morte, até chegar aos domínios de Ziusudra, o Noé sumério, o sobrevivente do Dilúvio. Ziusudra esperou Gilgamesh na costa:

Ziusudra: Quem é o estranho, sujo, desgrenhado e emaciado que bate à minha porta? Por que tem ele o coração tão pesado? Mágoa e tristeza também?

Gilgamesh: Grande Ancestral Ziusudra, é Gilgamesh quem vos saúda! A vós, que recebeu o Dom da imortalidade dos deuses, que sobreviveu ao Grande Dilúvio, é que suplico uma resposta. A morte de meu amigo Enkidu cai como chumbo sobre mim. Como posso calar? Como posso me aquietar? Meu amigo virou barro, e este é o destino que também a mim é reservado. Existe um modo de como vós evitá-lo?

Ziusudra: Então sabes a minha história! Sabes que fui a quem Enki, o deus da Sabedoria, da Mágica e das águas doces, escolheu para ser salvo em nome da humanidade quando do grande Dilúvio. Sabes que ele me aconselhou para construir uma morada que flutuasse sobre as águas, e que para lá levasse meus entes queridos e possessões. Depois, por seis dias e seis noites os ventos sopraram, as chuvas e as tempestades nem por um instante pararam. No sétimo dia, porém, o mar ficou calmo, e mandei pássaros para ver se as águas haviam baixado e havia terra firme. E ao finalmente aportar, fiz um sacrifício aos deuses. Então, Inana, a grande Deusa do Amor e da Guerra, disse que usaria um colar de lápis lazuli para jamais se esquecer destes dias, que faria todo o possível para que Enlil, o deus do Ar e instigador do dilúvio, não recebesse sacrifícios dos homens e mulheres, pois ele tinha querido destruir a humanidade, as pessoas a quem Inana tanto ama. Foi então que Enki tomou minha mão e a de minha adorada esposa, nos abençoou e conduziu-nos a este lugar, onde vivemos em harmonia com tudo o que existe até este dia.

 Gilgamesh: Dizei-me, grande ancestral, há uma forma de reunir os deuses em assembléia e apresentar o meu caso? Em vossa sabedoria, como posso suplicar aos deuses pela vida eterna?

Ziusudra (depois de considerar Gilgamesh por um momento): Um teste a ti submeterei. Não pegues no sono por sete dias e sete noites. Venha, senta-te a meu lado por este tempo, e talvez encontres as respostas que estás buscando. (Gilgamesh senta-se ao lado de Ziusudra, mas imediatamente pega no sono)

Ziusudra: Aquele que busca a vida eterna nem pode se manter acordado, pois o sono cai sobre ele como névoa. Que prova devo mostrar a ele quando acordar, para que ele veja que neste simples teste, ele não teve condições de passar? Ah, sim, bolos de pão serão cozidos, para cada dia em que Gilgamesh estiver adormecido. Marcarei os dias que se passarem, até o rei de Uruk acordar.

Narrador: Sete bolos foram cozidos, um para cada dia que dormiu Gilgamesh. O primeiro bolo secou, o segundo ficou duro, o terceiro ficou úmido, o quarto ficou branco, o quinto ficou embolorado, o sexto ainda estava fresco, e quando o sétimo bolo foi tirado do forno,
Gilgamesh finalmente acordou.

Gilgamesh (acorda de repente): O sono tentou me tocar, mas resisti bravamente!

 Ziusudra: Não, Gilgamesh! Conta os bolos de pão e verás que dormiste por sete dias, pois eles foram cozidos enquanto o sono te vencia. Olha bem: o primeiro bolo secou, o segundo ficou duro, o terceiro ficou úmido, o quarto ficou branco, o quinto ficou embolorado, o sexto ainda está fresco, e quando o sétimo bolo foi tirado do forno, acordaste!
Gilgamesh: Ah, que devo fazer agora, Ziusudra? A morte já está nas minhas pegadas!

Ziusudra: O homem que está à minha frente, cujo corpo está sujo, coberto de peles, de cabelos desgrenhados e roupas sujas, que lhe sejam limpas as roupas, que ele se lave nas águas sagradas que tudo renovam! Que lhe sejam restaurados o vigor físico e a beleza do corpo! Que aquele que tanto se esforçou para aqui chegar, daqui saia como se tivesse aqui renascido, em corpo, mente e espírito!

Narrador: Assim fez Gilgamesh: ele se banhou, deixou as águas levarem a pele antiga e roupas surradas. Ele colocou roupas novas. Então, aprontou-se para partir. (As roupas colocadas são, de preferência, brancas)

Gilgamesh: Adeus, ilustre ancestral, raiz de minhas raízes!

Ziusudra: Adeus, Gilgamesh. Agora podes retornar à tua terra! Mas pelo esforço dispendido para chegar até mim, dar-te-ei um último presente sob a forma de uma informação preciosa, um segredo dos deuses. Existe uma planta, cujos espinhos irão ferir tua mão tal qual uma rosa. Se esta planta chegar às tuas mãos, se tratares dela, ela dar-te-á vida nova. Esta planta vive nas águas mais profundas. Isto é tudo o que posso te dizer. Vai em paz

Gilgamesh (faz uma profunda reverência): Obrigada e adeus, oh grande Ziusudra!

Narrador: Gilgamesh deixou Ziusudra. Quando estava no meio do mar da Morte, ele atou pedras pesadas aos seus pés, como os caçadores de pérolas. Fundo, muito fundo ele mergulhou, e lá, nas profundezas, ele viu a Planta. (Gilgamesh estende a mão para uma planta, sobre a qual está o desenho da Árvore da Vida, a Cabala)

Narrador: Ele tomou a planta em suas mãos, apesar dos espinhos. Ele cortou as pedras que prendiam seus pés, e o mar levou-o de volta à costa..

Gilgamesh: Então esta é a planta que difere de todas as outras! Com ela, uma pessoa pode Ter os segredos da vida! Eu a levarei a Uruk. Quando chegar a Uruk, quando estiver em minha cidade, eu comerei esta planta para voltar ao estado de minha juventude

Narrador: A jornada de volta a Uruk recomeçou. E todo templo Gilgamesh guardava a Planta da Vida, nunca se descuidando dela. Mas um dia, ele viu as águas cristalinas de um lago brilhando à sua frente. Ele não resistiu, deixou a planta às margens das águas e mergulhou nas suas profundezas.

A Sacerdotisa, Ninsun, Inana e Siduri (todas veladas, pegam a planta e dizem em conjunto:) Reavemos o que sempre foi nosso: a vida do espírito, auto-transcendência, mudança e crescimento, que jamais são egoístas, mas sim sempre generosos, à medida em que muitas vidas se desenrolam. Este é o caminho da Planta, o Caminho da Futura Árvore, o Caminho da Imortalidade, verdade velada que muitos não conseguem ver. Que permaneçamos escondidas, nossos Mistérios proibidos a Gilgamesh! Que ele veja apenas uma serpente no chão, soltando suas peles velhas, como se renascida! Que Gilgamesh veja apenas uma serpente pelo chão!

Gilgamesh: (luzes apenas nele) O que vejo acontecer ante meus olhos? Minha planta da vida foi-me roubada por uma serpente, que de imediato está soltando sua pele antiga, como se renascesse neste momento! Ah, por quem minhas mãos trabalharam, por quem foi derramado o sangue do meu coração? Para mim, de vantagem, nada obtive ao longo desta jornada (Ele demonstra toda uma série de emoções: zanga e derrota, para depois aceitar os fatos como são). Devo então retornar a Uruk de mãos vazias, mas com uma história para contar. Para ser um bom rei, trabalhando pelo reino, fazendo forte a sua fundação, em busca de glória, vitória e beleza. Que eu possa encontrar o equilíbrio entre a severidade e a misericórdia, que eu reine com compreensão e sabedoria. Desta forma, eu merecerei minha coroa, como Rei e pastor da Terra, até o dia da minha morte. E além!

(Tambores, luzes e clímax para acabar a peça)

 

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