NINLIL - DEUSA DOS ARES/VENTOS, A NOIVA VINGADORA
Ninlil é uma deusa suméria, e seu nome significa Deusa do Ar/Ventos, é um título honorífico para complementar o de Enlil, seu consorte e o mais poderoso dos deuses mesopotâmicos, o deus dos Ares/Ventos. O nome original de Ninlil é Sud, de acordo com Gwendolyn Leick (A Dictionary of Ancient Near Eastern Mythology Routledge, 1991), e o mito Enlil e Sud descreve como tal título lhe foi conferido quando no dia de seu casamento com Enlil. Ninlil é a parceira e companheira de alma de Enlil, o primogênito de Anu (Firmamento) e Ninhursag-Ki (Terra), os pais de todos os deuses da Mesopotâmia. Como a esposa de Enlil, ela é adorada desde o Antigo Período Sumério, sendo que muitas oferendas a ela também são datadas do período de Terceira Dinastia de Ur.
A mãe de Ninlil é Ninshebargunu, deusa de Eresh, uma antiga deusa da agricultura, e seu pai, Haia, o deus dos armazéns de estocagem. Ninlil também pode ser explicitamente identificada com a deusa dos cereais Ashnan, bem como Nintur ou Ninhursag-Ki, a Grande Deusa Mãe e Terra Fértil dos sumérios.
Segundo Frymer-Kensky, a identificação de Ninlil com a Grande Deusa Mãe Ninhursag-Ki desempenha diversos fins teológicos que devem ser considerados na evolução da imagem do Divino Feminino rumo ao patriarcado. Ninursag, originalmente separada de Ninlil, faz parte da tríade dos grandes deuses, ou seja, Anu, o Firmamento, Enlil (Ares/Ventos) e Ninhursag (Terra Fértil em todos os sentidos, a Criadora do Mundo Físico e dos Homens e Mulheres também). A identificação de Ninlil com Ninhursag eleva Ninlil à companhia dos grandes deuses, ao mesmo tempo que faz diminuir a importância de Ninhursag per se. É desta forma que Ninhursag é trazida de forma completa ao círculo familiar de Enlil, o deus de Nippur e o chefe do poder divino executivo do conselho dos deuses do panteão nacional, desta forma aumentando o poder de Enlil. Além do mais, este fato faz com que a poderosa deusa-mãe seja situada dentro da casa de Enlil, ou seja, um espaço dominado pelo deus, diminuindo a autoridade de Ninhursag. Esta realidade é traduzida na declaração que encontramos nos mitos onde Ninlil aparece, que dizem que o poder da jovem consorte e rainha deve-se ao seu esposo Enlil e a seu filho Ninurta. Como no caso de outros mitos mesopotâmicos, o que podemos ler da realidade embutida nele é que a mãe para os sumérios detinha considerável poder na vida de seus filhos, mas que também ela era a esposa, cuja identidade principal era fornecida pelo esposo, uma vez que o casamento é que conferia status e poder. Isto quer dizer que o poder imenso de Ninhursag-Ki começa a diminuir, e que estamos lentamente avançando na direção do nascimento do patriarcado que irá marcar até hoje as crenças religiosas de nossos tempos.
Os filhos queridos de Ninlil são Ninurta, o deus fazendeiro tornado guerreiro e metalurgista, Nana-Sin, o deus da Lua e Nergal, o deus da Guerra, das Doenças e Juiz na Mansão dos Mortos. Nos textos onde aparece principalmente como mãe, ela é venerada por seus filhos. A maior parte dos textos que lidam com Ninlil, entretanto, concentram-se em sua relação com Enlil, enfatizando o grau de poder e influência da deusa como consorte e rainha. O casal administra em conjunto os ME, ou Poderes do Céu e da Terra, que foram concebidos pelos dois, sendo que tais privilégios passam depois primeiro para Enki, deus das águas doces, mágica e das artes, e a seguir para Inana, deusa do amor e da guerra. Durante o período Babilônico Anterior, vários hinos e preces foram escritos, onde o suplicante busca através de Ninlil obter as graças de Enlil. Na Assíria, ela é esposa de Assur, o deus nacional, e seu animal sagrado é o leão.
O mais importante mito que envolve Enlil and Ninlil diz respeito à Concepção de Nana, o deus da Lua. Este também é um mito sobre dois deuses adolescentes, que devem amadurecer para poderem se amar e se respeitar mutuamente.
O mito começa quando Enlil se apaixona à primeira vista por Ninlil, e, impetuoso, força que ela seja dele. Ambos são inexperientes e imaturos. Ninli, agora grávida com o primeiro filho do poderoso jovem deus, leva Enlil a julgamento frente à assembléia dos deuses, para que Enlil pague pelo crime que cometeu contra ela e a organização social como um todo. Este fato é de tremenda importância: uma jovem deusa, que foi violentada, exige justiça para si e para o bebê que carrega dentro de si. Duvido que exista exemplo semelhante de autoconfiança feminina em mitos e religiões conhecidas.
Enlil é condenado à Mansão dos Mortos e o mito cresce em profundidade e intensidade. Ninlil permite que Enlil seja castigado, mas logo em seguida parte também para a Mansão dos Mortos, buscando resgatar seu amado teimoso e violento. Note bem: Ninlil quer que Enlil seja punido, Enlil não escapa ao julgamento. Mas daí começa a mais apaixonada de todas as grandes histórias de descida à Mansão dos Mortos que tenho notícia. Pois Ninlil e Enlil se encontram novamente na Mansão dos Mortos, Enlil disfarçado, tendo que suplicar amor à Ninlil. E ela, tendo de aceitá-lo em disfarce, tendo de ver o deus no homem e assim crescer na estima do jovem deus.
Três vezes eles se encontram na Mansão dos Mortos, três vezes Enlil e Ninlil fazem amor. Isto quer dizer que Ninlil recebe mais três óvulos fecundados por Enlil em seu útero. Isto significa que ela será a mãe de outros três importantes deuses da Mesopotâmia, Nergal, Ninghizida e Ninazu. Ao final deste mito, jovem deus e deusa retornam para as Alturas, formando um dos mais apaixonados casais na mitologia e religião mesopotâmica.
As interpretações deste mito encontradas na literatura infelizmente concentram-se em estereótipos patriarcais. Cito dois exemplos dentre muitos aqui, ou seja, de que Ninlil se autoafirma ao se referir à sua gravidez (Leick, Sex and Eroticism in Mesopotamina Literature), ou Jacobsen (The Treasures of Darkness), cuja análise se concentra na figura de Enlil como o perpetrador do crime de abuso sexual. Creio que há mais neste mito do que o implícito nestas duas análises. O que Ninlil quer realmente em primeiro lugar, e este é um fato difícil de ser engolido por agendas patriarcais, é justiça para ela mesma, para o bebê que ela carrega agora no ventre e para Enlil. Em segundo lugar, ele quer um futuro e o resgate de sua dignidade. Ninlil é, de fato, a Noiva Vingadora, a garota que teve de enfrentar a bancarrota de seus sonhos de romance para entender a humanidade do maior dos jovens deuses, e desta forma crescer para se transformar na Amada e Consorte de Enlil em todos os níveis e esferas. Enlil, por outro lado, Beloved and Soul Counterpart of Enlil in all levels and spheres. Enlil, on the other hand, had to swallow his pride and beg for Ninlil´s affection, a test of great humility for the proudest of all Mesopotamian gods.
Tentar apreender o significado completo deste poderoso mito é mergulhar nos valores de uma civilização que respeitava as leis do equilíbrio e da justiça, que protegia a chegada das novas gerações e que de forma alguma compactuava com os atos errados da parte dos mais altos representantes da sociedade. Além do mais, esta era uma civilização que ouvia seus jovens membros, principalmente donzelas, além de ser uma civilização onde era possível para uma jovem inexperiente vencer por si mesma e conquistar lugar de igual importância ao lado de seu consorte, no caso, como esposa de Enlil, o maior dos jovens deuses da Mesopotâmia.
Quais são os ensinamentos incluídos neste mito? O amor e a responsabilidade caminham de mãos dadas, que Enlil e Ninlil tinham de ir além das idéias e sonhos que tinham de como deveriam se comportar com relação um ao outro e desta forma
Qual é o ensinamento contido neste mito? Que o amor e a responsabilidade devem andar de mãos dadas, que tanto Enlil quanto Ninlil têm de ir além de seus sonhos e idéias de como devem-se relacionar um com o outro, e desta forma tentar encontrar dentro de si mesmos tenacidade e autoconfiança a fim de conquistarem o coração e a alma um do outro. Ninlil queria, inicialmente, ser cortejada pelo mais orgulhoso de todos os jovens deuses, mas não sabia como se valorizar, enquanto que Enlil foi impetuoso e violento, ambas características juvenis. Tanto Enlil quanto Ninlil tinham de crescer para ficarem juntos como iguais. Mas um não desistiu do outro, e ambos enfrentaram os maiores desafios para ficarem enfim juntos.
A composição Enlil e Sud também lida com Enlil e a futura Ninlil, mas este mio é um poema de amor cortês, onde Enlil encontra Sud e a corteja de forma adequada, seguindo todos os protocolos tradicionais ditados pela sociedade.
Três pontos devem ser levantados aqui com relação aos valores mesopotâmicos com relação à família:
a) textos legais mostram que a defloração, especialmente de uma garota livre, era uma séria ofensa, e em tempos sumérios, o criminoso deveria casar com a moça;
b) a virgindade não parece ser a preocupação central, mas sim o bem-estar da garota e a proteção da geração futura. Não há sugestão qualquer de que Ninlil seja depreciada ou condenada pelos seus atos, ou que ela tenha trazido vergonha para sua família. Muito antes pelo contrário: é Enlil, o mais poderoso e orgulhoso dos jovens deuses que sofre todas as críticas e que deve assumir todas as culpas.
c) parece claro também que os Sumérios consideravam que jovens adolescentes podiam ser vulneráveis à sedução masculina, mas que era também a obrigação do sedutor e da sociedade intervirem com vigor com seus protocolos a favor do casamento e da prole, contra o adultério e a impetuosidade juvenil.
É com grande prazer que viramos a mesa, neste momento, para aqueles que pensam a Babilônia ser um antro de depravações e vícios. Os fatos, como demonstrados neste grande mito, mostram-nos uma sociedade onde os valores familiares eram uma constante, o respeito a leis sempre estando em primeiro lugar. Deve-se ressaltar o fato de que não havia adultério na Mesopotâmia e que os deuses e deusas principais do panteão tinham seu/sua consorte, um contraste enorme com outras tradições clássicas, como a Greco-Romana. De fato, à luz da evidência direta do cuneiforme, podemos afirmar que os Mesopotâmicos cultivavam valores profundamente conservadores em termos de família e crianças.
É importante salientar, conforme Frymer-Kensky em In the Wake of the Goddesses (1992, Fawcett-Columbine, New York) que como a esposa de Enlil e mãe de três dos grandes deuses da Mesopotâmia, Nergal, Ninurta e Ninazu, Ninlil não pode ser considerada como o modelo da esposa padrão da Mesopotâmia. Como seu nome indica, Ninlil é a esposa do mais poderoso dos jovens deuses, que compartilha com ela seu poder, sendo muitas vezes chamada de "Senhora e Rainha". O hino ao templo de Ninlil relate como ela e Enlil, durante o festival de Ano Novo, decretam os destinos no Ekur, o templo máximo de Enlil em Nippur. Como tal, Ninlil também é conselheira e juíza em questões legais de importância. Ela é quem "pondera, aconselha, e juntamente convosco (Enlil) toma grandes decisões". Portanto, longe de ser uma consorte insignificante, Ninlil é uma rainha augusta que exerce o poder juntamente com seu esposo, Enlil.
Ninlil é proeminente porque é a esposa do rei. Em tempos sumérios, as mulheres da realiza detinham poder considerável, tanto na corte como na esfera política, bem como na economia. Rainhas, esposas de governadores e princesas reais participavam ativamente na vida pública da Suméria. Estas mulheres viviam vidas bem diferentes das mulheres comuns. Desta forma, podemos afirmar com certeza que Ninlil é o paradigma ou arquétipo para mulheres de nobre estirpe.
Ninlil é uma imagem de força e sabedoria feminina válida para os nossos tempos. Nela, Enlil achou sua companheira, a Noiva Vingadora que aceitou o Deus Violento e Impetuoso de volta em sua vida para ficar, como esposo em perfeita igualdade. Deve-se salientar que como Rainha-Mãe de muitos deuses, Ninlil é adorada pelos seus poderosos filhos, sendo também Aquela para quem a humanidade pode se voltar para conselhos, ajuda e a concessão de pedidos e promessas. Frymer-Kensky chama Ninlil the "Esposa-Rainha", sem dúvida um título que Lhe cabe muito bem.