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POVO LETRADO

De Samuel Noah Kramer, da série Grandes Civilizações da série Time-Life, Volume Mesopotâmia – Berço da Civilização, Capítulo 6, Editora José Olímpio, Rio de Janeiro, 1969. @Todos os direitos reservados ao autor. Texto reproduzido aqui para auxílio em estudos em pesquisas apenas.

Apesar do interesse pela civilização clássica que floresceu entre os estudiosos durante a Renascença e na época dos enciclopedistas, era muito limitado até o século XIX o conhecimento que o homem ocidental tinha do mundo antigo. Foi só então que se encontrou a chave para a escrita hieroglífica, . desvendando o passado do Egito. Finalmente, veio também a ser decifrado o velho enigma da escrita cuneiforme - um feito notável dos sábios. que revelou idiomas, culturas e povos desaparecidos e acrescentou cerca de dois mil anos de história humana às magras fontes da Grécia e da Bíblia, as únicas com que se contava até então.

Quem primeiro contribuiu para decifrar o "código" cuneiforme foi um jovem oficial britânico, Henry Creswicke Rawlinson, que em 1835 foi nomeado adido militar junto ao governador do Curdistão, uma província da Pérsia. Rawlinson. então com 25 anos, era não somente um soldado mas também um homem de erudição clássica e um estudioso de línguas, inclusive o persa. Logo que chegou ao Oriente Próximo, teve a sua curiosidade despertada pelas estranhas marcas cm forma de cunha que viu gravadas em pedra numa montanha do Eobátana.

Algum tempo depois. Rawlinson foi atraído por uma inscrição ainda mais fascinante em caracteres desconhecidos - uma grande mensagem esculpida na chamada "Rocha de Behistun", nas montanhas de Zagros, a noroeste do Irã. A rocha fora tida como sagrada pelos antigos; eles a conheciam como Bagistana, "lugar dos deuses". O grande bloco de pedra erguia-se quase perpendicularmente a uns 550 metros acima da pequena cidade de Behistun, no antigo caminho das caravanas entre Babilônia e Eóbátana. Bem alto, na sua face lisa, num ponto aparentemente inacessível, a mais de cem metros acima da planície, estava esculpida a grandiosa figura de um homem, com a mão segurando o arco, um dos pés calcando o pescoço de um rival derrotado, enquanto outros chefes vencidos eram vistos ali perto. Ninguém sabia quem era o conquistador, nem o que significava o seu monumento. Mas. para Rawlinson, o aspecto mais desafiante do penhasco era sua gigantesca mensagem escrita, com 20 metros de comprimento por mais de 7 de altura. Durante séculos, os caracteres em forma de cunha haviam desafiado os esforços dos que tentavam penetrar o seu mistério; alguns lingüistas decidiram, afinal, que os sinais eram tão desconcertantemente complexos que jamais seriam decifrados.

Rawlinson não foi o primeiro a sondar o segredo da escrita cuneiforme. Em 1765, Carsten Niebuhr, matemático integrante de uma expedição dinamarquesa, visitara as ruínas da antiga cidade de Persépolis, onde, por volta de 500 anos a.C., o rei persa Dario havia construído o seu grande palácio, mais tarde destruído por Alexandre, o Grande. Niebuhr preparou cuidadosamente cópias fiéis de várias inscrições curtas encontradas nos monumentos em escombros. Ele identificou três tipos diferentes de escrita gravados juntos nas pedras; tornaram-se eles conhecidos como Antigo Persa, Elamita e Acádico ( também chamado Assírio ou Babilônico) .

A primeira percepção importante do significado dessas estranhas marcas foi obtida, segundo se conta, como resultado de uma aposta numa taverna. Em 1802, Georg Friedrich Grotefend, de 27 anos, lingüista e professor de Grego numa academia alemã, apostou algumas bebidas com os companheiros como ele seria capaz de decifrar os símbolos em forma de cunha. Com a confiança da juventude, Grotefend pôs-se a estudar as inscrições copiadas por Niebuhr. Os textos incluíam todos os três tipos de cuneiforme; presumia-se, e mais tarde veio a ser provado, que as inscrições eram trilíngues, isto é, o mesmo texto fora escrito nos três tipos diferentes de cuneiforme.

Grotefend concentrou-se nas seções superiores das inscrições de Persépolis. Essas partes dos textos apresentavam um número menor de símbolos e o pesquisador raciocinou que, pelas suas posições-chaves, eles deviam ser escritos na língua de maior importância, ou seja, o Antigo Persa. Também percebeu pela posição e repetição de um signo que este devia corresponder a "rei". Além disso, viu confirmado o que antes havia deduzido, isto é, que outro sinal oblíquo repetido era simplesmente um divisor, agrupando caracteres em palavras, e que a escrita . seguia da esquerda para a direita. Pelo método das tentativas começou a decifrar os símbolos separados e conseguiu identificar dez dos sinais cuneiformes e três nomes de reis, inclusive o de Dario.

Grotefend havia aberto de forma inspiradora o caminho para que fosse decifrado o cuneiforme Classe 1 (Antigo Persa) , mas não foi favorecido pelos textos com que tinha de lidar; eram eles curtos demais para permitir qualquer interpretação verdadeira mesmo daquela escrita relativamente simples, para não falar dos sistemas elamita e acádico, muito mais complexos. O que fazia falta evidentemente era um texto mais considerável pela extensão e pelo conteúdo.

Cerca de três décadas mais tarde, Rawlinson defrontou-se com o mesmo problema ao começar seus estudos. A resposta lógica era a Rocha de Behistun; suas inscrições estendiam-se por centenas de linhas e o texto parecia repetido nos três sistemas, lado a lado. Isto significava que, se uma das classes fosse desvendada, ela forneceria a chave para as outras duas. Rawlinson iria descobrir essa chave, ao copiar e verter as marcas na face da rocha "inacessível".

Entre 1835 e 1847, no intervalo dos seus deveres militares, ele conseguiu copiar as inscrições no penedo, muitas vezes arriscando a vida, uma vez quase a perdendo. A rocha era difícil de escalar, pelo simples fato de ser uma superfície totalmente vertical. Em torno das inscrições ela se tornara ainda mais perigosa pelo trabalho dos homens que haviam entalhado a mensagem. Primeiro, eles haviam alisado a face do penhasco, enchendo-lhe as frestas, buracos e pontos acidentados; então, depois de gravarem os caracteres. revestiram a área completada com alguma espécie de substância dura, parecendo verniz, que protegia o calcário poroso. Segundo parece, os artífices antigos que fizeram as inscrições tinham traçado trilhas de emergência e erguido grandes andaimes para trabalhar a pedra, mas desde muito esses haviam desaparecido.

Escalar o formidável penhasco era para o atlético Rawlinson mais um desafio do que uma impossibilidade. Galgando um socalco da rocha, ele conseguiu copiar as inscrições mais baixas, sem equipamento especial. Depois, teve de se manter suspenso por uma corda enquanto ia trabalhando; também usou uma escada, equilibrando-a sobre exíguas saliências da rocha e agüentando-se no topo enquanto fazia transcrição dos símbolos.

A cópia da escrita acádica foi a que apresentou maior dificuldade. Estava tão fora de alcance na face vertical do penhasco que nem mesmo Rawlinson conseguiu vencer o obstáculo. Para ter a obra feita, empregou ele afinal um rapazola curdo, que foi galgando, polegada por polegada, a superfície lisa, às vezes agarrando-se a ela com os dedos e a ponta dos pés, outras vezes apoiando-se em cordas ligadas a cunhas de madeira que o jovem havia enfiado em fendas acima das inscrições. Enquanto Rawlinson, embaixo. dava as suas instruções, o rapazola tirava impressões da escrita.

Quando as cópias e impressões se acumularam, Rawlinson começou metodicamente a traduzi-las, começando pelo Antigo Persa. Quando deu início esta tarefa monumental, ele ignorava completamente os prévios achados de Grotefend. Trabalhando independentemente do professor alemão, Rawlinson chegou virtualmente às mesmas conclusões e acabou indo bem mais longe.

A mensagem na Rocha de Behistun era, como ele suspeitara, a proclamação de um grande conquistador. Havia sido talhada na pedra, uns 500 anos antes de Cristo, por ordem do próprio Rei Dario. Tendo debelado levantes no seu reino, o vitorioso monarca utilizou a rocha sagrada para se ufanar da sua grandeza, das suas campanhas triunfantes e da extensão do seu império. Para que o seu valor não passasse desapercebido, por todos os seus súditos, Dario fez que o texto fosse repetido nos três idiomas do seu vasto reino: o Antigo Persa, sua própria língua; Elamita, falado pela gente montanhesa que ele havia conquistado na Pérsia ocidental; e Acádico, o idioma semítico dos babilônios e assírios. A mensagem, agora com o seu mistério desvendado após mais de 2000 anos, inclui este comando:

Diz Dario, o Rei:

Ó tu, que doravante

Contemplares esta inscrição

Ou estas esculturas,

Não as destruas

[Mas] desde agora

proteje-as por todo o tempo em que estiveres com saúde e vigor.

Não obstante o êxito de Rawlinson para decifrar a escrita persa, muitos obstáculos ainda tiveram de ser transpostos até que se pudesse compreender os sistemas elamita e acádico, mais difíceis. O Antigo Persa revelara-se relativamente simples, consistindo apenas em cêrca de 40 símbolos, que representavam os sons do alfabeto persa. Mas o Elamita tinha mais de 100 símbolos e a escrita acádica abrangia várias centenas. Ao contrário do Antigo Persa, o Acádico não era alfabético; ou mais exatamente, cada signo correspondia a uma ou mais palavras inteiras ou sílabas. Tornando a matéria ainda mais complicada, muitos caracteres cuneiformes nesse último sistema podiam corresponder a dois ou mais sons ou valores.

A despeito dessas dificuldades, um grupo de eruditos, em laboriosa pesquisa, conseguiu solucionar tanto o enigma elamita como o acádico; em 1857 tôdas as três línguas da inscrição de Behistun já tinham sido decifradas e agora já se podiam ler alguns dos segredos das civilizações antigas.

Essa possibilidade recém-descoberta de se compreender línguas mortas desde longo tempo produziu um resultado imediato e surpreendente: o primeiro vislumbre de um povo e de uma civilização tão antiga da qual já se havia perdido toda e qualquer memória da sua existência. Até à efetiva decifração dos textos acreditava-se que a escrita cuneiforme fosse de origem semítica; até onde os primeiros pesquisadores e arqueólogos conheciam por meio de suas limitadas fontes gregas e hebraicas, só os povos semitas, relacionados ao povo bíblico, tinham vivido na região do Tigre e do Eufrates.

Mas em 1850, um perspicaz clérigo protestante da Irlanda, Edward Hincks, começou a pôr em dúvida aquela suposição, sustentando que alguns dos sinais pareciam ter característicos não semitas. Ele contou com o apoio de Rawlinson. Rawlinson salientou que, entre os milhares de placas desencavadas em Nínive, muitas das estudadas por ele eram bilíngues e nestas o texto em acádico, idioma semítico, nada mais era realmente do que tradução de uma língua não-semítica inscrita ao lado.

Em 1869 Jules Oppert, um lingüista que vivia em Paris, anunciou que apreendera o nome do povo que havia falado essa estranha língua não-semítica; ele traduziu uma inscrição que o identificava como o povo que habitara um lugar- chamado Suméria. Tal povo precedera os acádicos na Mesopotâmia e havia criado o sistema cuneiforme de escrita, aproveitado posteriormente pelos conquistadores semitas.

Foi assim que os sumérios como povo se tornaram primeiramente conhecidos no mundo, mas, não obstante as deduções de Oppert, muitos estudiosos se recusavam a crer na sua existência. Só em 1877, quando principiaram as escavações em grande escala na Mesopotâmia meridional, ficou provado que Oppert estava certo. Vieram à luz, depois de longamente sepultados, os despojos da Suméria, ou seja, estelas, estátuas, placas e milhares de cones de argila, plaquetas e fragmentos com inscrições na língua sumeriana. Doze anos após o início das escavações em Nippur, centro cultural da Suméria, já haviam sido encontrados cerca de trinta mil placas e fragmentos.

Os registros sumerianos alcançam provavelmente o verdadeiro princípio da escrita. Mais de mil plaquetas de argila encontradas na Mesopotâmia têm inscrições no sistema pictográfico, precursor da escrita cuneiforme, datando de aproximadamente 3100 a. C. Os primeiros pictógrafos eram, na verdade, desenhos de objetos, muitas vezes acompanhados de símbolos que representavam números; os numerais e as somas tornam evidente que se tratava de assentamentos administrativos de gado, cereais e outros bens. Mais tarde, os pictógrafos vieram a corresponder não só aos objetos desenhados mas também a certos fonemas. E quando a escrita pictográfica se transformou na cuneiforme foram assentados os alicerces de uma sociedade civilizada que se esteia na linguagem escrita. Objetos votivos, tais como estátuas, vasos, pedras sagradas e marcos, eram inscritos com o nome do doador, a sua categoria e os seus feitos - os primeiros rudimentos da história escrita.

Por volta de 2500 a.C. começam a aparecer contratos de compra e venda de terras e outras transações entre pessoas privadas - os primeiros documentos legais que se conhecem. Alguns dos escritos dêsse período inicial têm semelhança com as cartilhas escolares, consistindo em compridas listas de palavras e nomes sumerianos; sem dúvida, eram utilizados para ensinar alunos, e assim constituem testemunhos da primeira educação formal.

Por volta de 2300 a.C. os acádios semíticos, chefiados por Sargão, o Grande, conquistaram a maior parte da Suméria e daí por diante começaram a multiplicar-se os documentos cuneiformes escritos em acádico. No século XXI a.C., contudo, o estado sumeriano se reergueu sob a dinastia de Ur. A escrita e a literatura floresceram, e as escolas sumerianas tornaram-se importantes centros de ensino. As escavações têm trazido à luz dezenas de milhares de documentos que datam dessa época, incluindo-se entre eles o mais antigo código que se conhece, o do rei sumeriano Ur-Nammu.

Com a ascensão dos impérios babilônico e assírio, durante o Segundo Milênio a.C., prosseguiu a torrente de anotações, inventários e registros legais. Muitos desses documentos eram escritos em acádico, já que durante alguns séculos o sumeriano havia quase desaparecido como idioma vivo. As escolas continuaram acrescer e expandir-se. Os alunos e os professores agora eram acádios, porém a maior parte do currículo era devotado ao estudo do sumeriano; na realidade. quase toda a literatura sumeriana chegou até nós através de cópias feitas pelos estudiosos acádios.

Pelo século XV a.C. o fluxo de documentos cuneiformes partia não só da Mesopotâmia como também da Síria, da Palestina e até mesmo do distante Egito. Muitos foram escritos em acádico, pois este era então a língua internacional do mundo antigo. Mas por esta época, outros povos, como os hititas e os hurrianos, haviam adotado - e em alguns pontos aperfeiçoado - a escrita cuneiforme para inscrições em seus próprios idiomas. Em Ugarit, uma cidade na Palestina dos cananeus, surgiu um cuneiforme alfabético de 30 símbolos, prenunciando o aparecimento das escritas alfabéticas agora usadas em todo o Ocidente.

Um dos maiores descobrimentos no campo das inscrições cuneiformes foi o da biblioteca ( Primeiro Milênio a.C. ) de Assurbanipal em Nínive, capital da Assíria, desenterrada na década de 1850 por uma equipe de arqueólogos britânicos. Suas placas e seus fragmentos, em número superior a 25.000, são inscritos com textos bilíngües, em sumeriano e acádico, contendo obras literárias e religiosas, fórmulas mágicas, e cartas, assim como escritos sóbre astronomia, medicina e lexicografia. A biblioteca foi fundada no século VII a.C. pelo rei assírio Assurbanipal, que fez os seus escribas copiarem e coligirem placas com inscrições provenientes de todas as partes do reino; constitui ela até hoje a mais importante coleção de material cuneiforme já encontrada em bloco. Além de propiciar inestimável ajuda à decifração e tradução das línguas sumeriana e acádica, estimulou a procura de relíquias que, segundo crêem os arqueólogos, ainda estão para ser achadas. Embora meio milhão ou mais de documentos cuneiformes já tenham sido desenterrados no século passado, mesmo esse total parece representar somente uma pequena fração dos que ainda permanecem sepultos.

Com a crescente importância da escrita cuneiforme no mundo antigo, o escriba transformou-se num profissional. exercitado. Uma parábola babilônica em favor dos escribas : " A escrita é a mãe da eloquência e o pai dos artistas". Muitos dos escribas trabalhavam no templo e no palácio, não só como secretários, guarda-livros e contadores, mas também como arquivistas e amanuenses, e até como "escritores-residentes", que compunham hinos ou epopéias sob encomenda. Outros eram empregados para auxiliar a administração de grandes propriedades, enquanto ainda outros trabalhavam por conta própria, instalando-se às portas da cidade, como os escribas fazem ainda atualmente no Iraque, à espera de clientes não letrados que necessitassem recorrer a um secretário. Além disso, muitos ascendiam dos seus esforços de copista à posição de doutores e adivinhos.

Antes que pudesse iniciar o exercício da sua profissão um escriba tinha de enfrentar longo período de educação e treinamento na edubba, a escola mesopotâmica. Dentro de suas paredes floresciam o erudito e o teólogo, o lingüista e o poeta, pois a edubba era o centro da sociedade na Mesopotâmia.

Os achados arqueológicos fornecem boa dose de conhecimentos sobre essas escolas - muito mais, por exemplo, do que se sabe sobre as escolas hebraicas e gregas de época bem posterior. Tais conhecimentos vêm sobretudo de placas e registros desenterrados na própria edubba: compêndios dos mestres, exercícios dos alunos, e engraçadas crônicas sóbre a vida escolar.

O escriba em formação freqüentava a escola desde o início da juventude até já homem feito, dia após dia, mês após mês, ano após ano. Tinha ele apenas seis dias de folga mensalmente, três dias santos e três dias livres; os outros, na escola, eram como observou um escriba já formado - "dias realmente compridos". O ensino era monótono, a disciplina severa. Outro ex-aluno escreveu sóbre um só dia em que foi chicoteado nove vezes, isso por faltas que iam de falar sem permissão a vadiar na rua. A sua narração dos castigos termina com uma nota que não é lá muito exultante :

O tal que ensinava sumeriano disse:

"Por que você não fala sumeriano?" [Ele me bateu.

Meu mestre disse:

"Sua mão [ao escrever) é desajeitada".

[Ele me bateu.

Eu [comecei a) odiar a arte de escriba. . .

Os estudantes devem ter sido exigidos pelos muitos mestres e monitores que os fiscalizavam, à espera de algum descuido ou alguma arte que justificasse o uso da palmatória. Contudo, entre disciplinadores severíssimos havia também mestres que eram profundamente respeitados e mesmo queridos. Um aluno já formado escreveu este elogio ao seu professor:

Ele guiou minha mão na argila, mostrou-me como proceder corretamente, abriu minha bôca com palavras, deu bom conselho, atraiu [meus] olhos para as regras que guiam o homem realizador.

Outros jovens eram menos propensos a aprender, e um pai queixou-se amargamente de seu filho:

"Onde vai?"

"Não vou a lugar nenhum",

"Se você não vai a parte alguma, por que vadiar à toa?

"Vá à escola . . . Não fique rodando ociosamente na praça pública nem flanando no bulevar . . -

"Não fique espiando tudo ao redor. Seja [humilde e mostre-se temeroso diante do seu monitor.

[Quando você se mostrar aterrorizado, o seu monitor gostará de você .

A grande maioria dos estudantes freqüentava assiduamente a escola até o dia da formatura, e, apesar dos exercícios enfadonhos e duros castigos, tinha razão para ser grata. A edubba e sua faculdade Ihes haviam dado, ao fim de contas, a situação de profissionais altamente acatados, cujos serviços eram muito disputados pelos seus concidadãos; eram peritos aptos a gerir uma propriedade, servir de árbitro entre partes litigantes, supervisionar lavouras, formular variadas reivindicações e cumprir muitos outros encargos essenciais.

O estudo da linguagem constituía a matéria mais importante. Os discípulos tinham que se familiarizar com toda a complicação dos idiomas sumeriano e acádico. Principiando com os mais elementares exercícios silábicos, o neófito passava a escrever, ler e, quando mais adiantado, a decorar centenas de símbolos cuneiformes e milhares de palavras e frases sumerianas e acádicas. Estas eram classificadas em "listas de palavras", que se tornaram padronizadas através dos séculos; tais listas têm sido encontradas virtualmente em todos os locais importantes da Mesopotâmia, e mesmo em lugares remotos da Anatólia, do Irã e da Palestina.

Algumas dessas cartilhas ocupavam-se do mundo natural, dando o nome de centenas de animais selvagens ou domésticos, pássaros e peixes, árvores e plantas, pedras e estrelas, assim como partes do corpo humano e de animais. Outras, eram cartilhas geográficas, contendo o nome de países, cidades, vilas, rios e canais, e outras ainda eram manuais técnicos que especificavam inúmeros artefatos de madeira, caniço, barro, lã, pele, couro, metal e pedra; só os objetos de madeira eram enumerados às centenas, desde toros não trabalhados até artigos de confecção acabada como barcos e carruagens. Sem dúvida, esses "compêndios" altamente esquemáticos eram completados por lições explicativas que nunca foram escritas e que, assim, ficaram perdidas para a posteridade.

A matemática também desempenhava importante papel no currículo da antigüidade. Para se tornar um secretário, contador ou administrador competente. um escriba precisava ter conhecimento de notações aritméticas e do seu uso prático. Os mesopotâmios costumavam usar um sistema sexagesimal - sua base era 60, enquanto a do nosso é 10 - e utilizava, a exemplo do que acontece em nosso próprio sistema decimal, uma notação de lugar, de modo que a posição de um algarismo num número indicava o seu valor. O aluno tinha de copiar e memorizar muitas e muitas tábuas matemáticas em estudos tão avançados como o cálculo de recíprocos, quadrados e raízes quadradas, cubos e raízes cúbicas. Para explicar as operações requeridas para os cálculos, os mestres armavam problemas explicativos. inclusive alguns que incluíam a medição de terrenos de forma irregular, o número de tijolos necessários ao levantamento de uma parede e a quantidade de terra para a construção de uma rampa.

No reinado de Hamurábi, cerca de 1;750 a,C. um aluno na última fase dos estudos já sabia utilizar noções elementares da álgebra e da geometria, Sabia valer-se na prática do que se tornou conhecido para nós como teorema de Pitágoras, embora não fosse capaz de demonstrá-lo teoricamente. Tinha também uma noção bem precisa da quantidade constante que chamamos de pi, a relação entre a circunferência de um círculo e o seu diâmetro. Para fazer calendários, aprendera a utilizar observações astronômicas, tais como o nascimento e o desaparecimento de Vênus e os eclipses periódicos do Sol e da Lua.

No fim do Primeiro Milênio a.C. um estudante adiantado possuía bastante conhecimento de teoria matemática para calcular o movimento dos planetas e, assim, estava apto a assessorar o rei no acerto do calendário. Os antigos mesopotâmios adotaram um ano lunar, constituído por 12 meses lunares, e de três em três ou de quatro em quatro anos era geralmente intercalado um mês extra para manter a sincronização do calendário com o ano solar.

Desde que a lei escrita passou a desempenhar um papel predominante na vida mesopotâmica, boa parte do currículo escolar foi dedicado aos estudos legais. O aluno aprendia por meio de cópias de numerosos códigos, escritos igualmente em sumeriano e acádico, assim como também de coleções de demandas judiciais e precedentes; o estudante utilizava ainda formulários relativos às variadas espécies de documentos legais que eram de uso geral e contava igualmente com listas especiais de todas as palavras, frases e expressões que pudesse vir a empregar durante a sua carreira.

A medicina também era ensinada com um considerável grau de minúcias nas escolas mesopotâmicas. Manuais descreviam diagnósticos e prognósticos para toda espécie de enfermidade e davam detalhes dos seus sintomas e síndromes. Havia compêndios que indicavam tratamentos e remédios, classificados de acordo com aparte do corpo que estivesse doente. Drogas eram receitadas e ministradas em poções.

pomadas, cataplasmas e clisteres.

Os doutores podiam praticar a cirurgia, mas isso acarretava certos riscos, pelo menos no tempo de Hamurábi. O seu código dispunha:

Se um cirurgião. . . abriu uma incisão ocular com um instrumento de bronze, e salvou assim o olho do homem, receberá dez siclos. Se um cirurgião causou uma infecção ocular com um instrumento de bronze (e assim arruinou o olho do homem, terá ele a sua mão decepada.

Além dos clínicos e cirurgiões profissionais, havia outra classe de médicos na antiga Mesopotâmia. Era a dos sacerdotes-exorcistas. cujo tratamento se baseava mais em magia do que em meios racionais. Eles também cursavam escolas, e a natureza das curas que procuravam fazer é sugerida pclos títulos de muitos manuais. como "Queimadura'.. "Maus Espíritos". ..Toda Espécie de Malefício... "Afastamento de Maldição" e "Dores de Cabeça". Repletos de fórmulas mágicas e rituais de purificação. esses livros destinavam-se a aliviar os que sofressem dos terrores causados pela magia negra e ataques do demônio.

Uma matéria predileta nas escolas da Mesopotâmia era a da adivinhação, a arte de ler a vontade dos deuses e prever o futuro pela interpretação dos augúrios. Qualquer ocorrência podia ser entendida como um presságio, bom ou mau. Por exemplo. se formigas de asas negras fossem vistas numa povoação. isto significava que haveria chuvas e enchentes. Outro augúrio inscrito numa placa de argila anunciava: "Se um boi tem lágrimas nos olhos. algum mal acontecerá ao dono desse boi".

Eram em grande número os manuais de augúrios que podiam ser consultados. Um deles tratava de "mensagens dos deuses' reveladas nas entranhas de animais sacrificados; supunha-se que o fígado era particularmente significativo, e os professores usavam modelos desse órgão especialmente preparados para esclarecimento e instrução.

Uma das técnicas divinatórias mais populares nos tempos assírios era a astrologia - a arte de interpretar os movimentos e as posições dos corpos celestes. e também fenômenos como trovoada, granizo, tremor de terra. Por fim, a astrologia era usada para a enunciação de horóscopos individuais; os mesopotâmicos acreditavam, como ainda muita gente crê hoje em dia, que a sorte de uma pessoa pode ser prevista pela posição dos planetas no dia do seu nascimento.

Um assunto negligenciado nas escolas mesopotâmicas era a história; a instrução nessa matéria limitava-se a longas relações de reis. dinastias e datas. O mais importante dos escritos históricos que sobreviveu c constituído pelos chamados anais do rei, ou seja, registros dos acontecimentos durante seu reinado: invocações aos deuses, batalhas ganhas e novas construções levantadas. Estes anais têm fornecido as principais fontes para as fases his1óricas no antigo Oriente Próximo.

Enquanto a história era sensivelmente descuidada no currículo escolar, o estudo da literatura recebia dos escribas carinhosa atenção. Através dos séculos, os poetas, especialmente, compuseram um grande e variado conjunto de obras literárias. Os deuses eram glorificados em mitos e hinos; os heróis eram exaltados em epopéias leigas; e os reis eram louvados, ou eles mesmos se gabavam ou eram louvados em rapsódias como neste trecho, inscrito em um obelisco negro em honra do rei Salmanasar III, no seu monumental palácio de Nínive:

Eu sou Shalmanesser, Rei de multidões de homens,

Príncipe e herói de Assur, o Rei poderosos,

Rei de todas as quatro zonas do Sou

E de multidões de homens,

O que marchou pelo mundo todo

 

A idade de ouro da literatura sumeriana findou com a destruição de Ur no século XXI a.C. Mas até mesmo êsse amargo evento foi a inspiração para o surgimento de um tipo de composição literária chamado "lamento/lamentação, uma melancólica forma dc poesia que se tornou parte permanente da literatura mesopotâmica c foi mais tarde adotada pelos hebreus. A obra apresentada a seguir. dirigida `a deusa Ningal, esposa de Nanna, o deus da Lua, divindade tutelar de Ur, é típica deste divindade desse estilo:

O Rainha, como o teu coração ainda te sustém,

Como podes continuar viva?...

Depois que tua cidade foi destruída,

como podes agora existir? ...

A tua cidade, que foi transformada em ruínas...

. nela tu deixaste de morar

Teu povo, que foi levado à matança, - não és mais a sua rainha.

A maior parte da literatura mesopotâmica tinha forma poética, e era cantada ou recitada com o acompanhamento de instrumentos musicais como a harpa, a lira, o tambor e o pandeiro. Muitos poemas foram escritos, alguns, ao que parece, para declamação durante os "Casamentos Sagrados" entre o rei mesopotâmico e as noivas mortais que representavam a deusa do amor. Um dos mais belos destes poemas, composto a 4,000 anos passados, descrever o amor de uma noiva ritual do Rei Shu-Sin. Nas suas imagens, o poema tem extraordinária semelhança com o Cântico dos Cânticos de Salomão para a rainha de Sabá, contido no Velho Testamento:

Esposo, deixa-me te cobrir de carinhos

Minhas carícias refinadas são mais doces que o mel

No quarto de dormir, ó doçura,

Deixam-me gozar tua beleza...

 Os poetas nada sabiam de rima e de métrica; seus recursos estilísticos prediletos eram repetição e paralelismo, coro e refrão, imagem e metáfora. A poesia épica, tal qual a dos gregos, é farta de longos discursos, de repetições e fórmulas que se reproduzem.

.Além da poesia, os mesopotâmicos tinham máximas e provérbios, ex. "em boca aberta, é que entra mosca", "O forte vive à custa do seu próprio ganho, o fraco do que ganham os filhos", assim como a chamada "literatura edificante". Um exemplo da última é o "Poema do Justo Sofredor", que gira em tomo de um homem aparentemente abandonado pelos deuses, como o Jó da Bíblia. Este homem, que não tem nome, especula sobre as fraquezas humanas e os caprichos da sorte:

Quem nasceu ontem, morreu hoje.

Em apenas um instante, o homem é [lançado às trevas, subitamente esmagado.

Num momento ele cantará com alegria

E noutro momento estará chorando [pela morte de alguem.

Da manhã ao cair da noite a disposição [dos homens pode mudar;

Quando estão famintos, assemelham-se aos [cadáveres,

Quando estão fartos, querem rivalizar com [seus deuses,

Quando as coisas vão bem, falam em subir [ao céu,

E quando em dificuldades, gritam que vão [descer ao lnfemo".

Desde a época de Hamurábi, ou mesmo antes, muitas obras literárias foram escritas em acádico; mas a forma e o conteúdo, os temas e motivos, o estilo, até o nome dos protagonistas e peronagens, eram os dos tempos sumerianos. Sendo acádica, a Epopéia de Gilgamesh, a maior contribuição da Messopotâmia à literatura do mundo, é um marcante exemplo desse aperfeiçoamento das letras sumerianas. O poema, com cerca de 3.500 linhas, conta a vida de Gilgamesh, um antigo governante de Erech, desde a sua mocidade arrogante como um tirano opressor até a expiação do seu retomo como peregrino frustrado que vagara por terra e por mar. A narrativa, grandiosa e comovente, busca inspiração nos temas universais da lealdade, da coragem e do perene anseio humano de alcançar a imortalidade.

A epopéia canta a profunda amizade que unia Gilgamesh e o selvagem Enkidu: a expedição cheia de aventuras dos dois à mágica floresta de cedros guardada por monstros; o temerário desafio de Gilgamesh à deusa do amor; a luta dos dois homens com o "Touro do Céu" enviado à terra para puni-los por sua indiscrição; a morte de Enkidu e a busca de Gilgamesh pela vida eterna; a visita do príncipe a Utnapishtim, o herói do grande dilúvio e protótipo de Noé - aventura que terminou malograda, por ter Gilgamesh recebido a lição de que a imortalidade não poderia ser atingida pelos homens.

Quase todos os episódios da epopéia foram extraídos de contos anteriores da Suméria, inclusive a história de Utnapishtim, que reproduz um deles. Contudo, os acádicos não copiaram servilmente as lendas sumerianas, mas as modificaram e amalgamaram num drama poderoso e rigorosamente elaborado - coisa que, segundo parece, os bardos da Suméria não sabiam fazer. Serve de amostra ao estilo da epopéia o trecho apresentado a seguir, em que uma estalajadeira que Gilgamesh encontra em seu caminho tenta desencorajar o jovem soberano de sua busca pela vida eterna - vã procura que freqüentemente reaparece como um tema da literatura mesopotâmica :

Gilgamesh, onde queres chegar nos tuas . [andanças?

A vida. que estás procurando, nunca a [ encontrarás .

Pois'. quando criaram o homem, os deuses [decidiram que a morte seria o seu quinhão, e [detiveram a vida em suas próprias mãos.

Gilgamesh, enche o teu estômago.

Faze alegres o dia e a noite.

Que os teus dias sejam risonhos.

Dança e toca música noite e dia,

E veste roupas limpas.

Lava tua cabeça e banha-te.

Olha para o filho que está segurando a [tua mão,

E deixa que tua esposa encontre prazer [nos teus braços.

Só dessas coisas é que os homens devem [cogitar.

 

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