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Mágica e Religião na Mesopotâmia - qual era a diferença?


Mágica e religião para os povos da Antiga Mesopotâmia eram partes inseparáveis de um mesmo todo, pois tanto uma quanto a outra eram vistas como o traço de união entre a realidade física e palpável e as esferas mais sutis da existência. Daí por que quase todas as invocações e encantos grafados em escrita cuneiforme em geral contém a expressão "Pelo Duranki", ou seja, pela união de Céu e da Terra, o que, na minha opinião, constitui a forma mesopotâmica de dizer "ASSIM NA TERRA COMO NO CÉU", bem antes da Tábua Esmeraldina de Hermes haver sido escrita. Especificamente, através da religião os antigos mesopotâmicos tinham um código de práticas estabelecidas e místicas para entrar em contato com os deuses, vistos como os poderes cósmicos que fizeram o universo, não sem antes deixar um pouco do seu espírito para os homens e mulheres, criados para completar por Eles os trabalhos da criação.

Era através da mágica, por outro lado, que os mesopotâmicos antigos procuravam entender o universo como uma realidade animada e multifacetada, sendo que a prática das artes mágicas visava fundamentalmente tentar afetar fatos ou prever acontecimentos da vida real e do mundo físico. A distinção entre mágica e religião, portanto, fica cada vez mais tênue neste contexto, porque a prática de mágica na Mesopotâmia era praticar religião, uma vez que as artes mágicas eram postas em prática por sacerdotes e sacerdotisas especializados para os mais diversos fins. Portanto, neste contexto, a religião também era (e ainda deve ser) vista como um ato mágico, pois crença, fé, confiança, dedicação e amor são em si mesmos características do divino dentro e fora de nós, e somente podem ser percebidas e sentidas com os Olhos do Espírito e a Abertura da Alma. Esta era a filosofia dos antigos mesopotâmicos, pois deles era um mundo onde a natureza não se diferenciava do divino, onde o mundano era um reflexo do extraordinário, e onde os efeitos da vida cotidiana podiam ser fundamentados nos céus.

Tendo em vista que os povos do Oriente Próximo eram literatos, amantes da palavra escrita, eles registraram com minúcia e precisão seus encantamentos/feitiços oficiais, e ainda temos conosco alguns exemplares deste material. Estas inúmeras tábuas cozidas de argila inscritas com encantamentos e preces mostram-nos claramente a importância das artes mágicas para os povos ancestrais de nossa cultura moderna.

Os hebreus ficaram famosos como magos da antigüidade até a Renascença. Entretanto, o Velho Testamento está cheio de admoestações contra mágica. Mas no próprio Judaismo existe um sistema místico, chamado A Árvore da Vida, ou a Cabala. Pesquisas recentes (ver Simo Porpola e seu excelente artigo "A Árvore da Vida Assíria") mostram que a origem da Cabala está sem sombra de dúvida na Mesopotâmia, tendo os hebreus provavelmente aprendido os fundamentos de seu sistema místico com os mesopotâmicos. Motivos da Árvore da Vida, a propósito, são abundantes em toda a iconografia suméria, babilônica e assíria, e de lá provavelmente passaram a influenciar todos os povos que entraram em contato com eles.

"Se os deuses são velhos ou novos, se eles vêm do Egito ou da Mesopotâmia, se vêm de tradições da antiga Canaã, da Grécia, da tradição hebraica ou cristã, [o que importa é que] a religião é tanto uma consciência quanto uma reação contra a dependência humana da mistura impenetrável de energias que vêm do universo... É neste ponto que [mágica] começa a se mostrar como uma necessidade nas vidas de pessoas comuns, pois havia a necessidade de entender o que não poderia ." (Hans Dieter Betz, The Greek Magical Papyri in Translation, pp. xlvii-p. xlviii.)

Ao longo dos últimos dois mil anos especificamente, tem havido uma grande má vontade para se entender o que é, na realidade, mágica. Conforme citamos anteriormente, mágica estava intrinsicamente ligada à religião nas culturas da Mesopotâmia antiga. Entretanto, com a ascenção do Judaismo e mais tarde do Cristianismo, começou-se a fazer a diferenciação de mágica e religião. Mágica era o que os pagãos faziam, e neste ponto, sempre é bom lembrar o dito popular " Eu acredito em religião, mas o que você acredita é superstição.

Na realidade, porém, está nos olhos de quem quiser ver que um ato de mágica é, essencialmente, um ato religioso. Por exemplo, na transubstanciação do vinho e da hóstia durante a missa católica no corpo e sangue de Cristo temos um ato mágico perfeitamente seguido de preces, cantos e totalmente aprovado pelos pais da igreja católica. Ritos como este foram criticados por Martinho Lutero no começo de sua pregação, que levou à Reforma Protestante, bem como a veneração dos santos, que não deixa de ser uma forma velada de honrar a várias divindades menores: paganismo dentro da própria igreja cristã! Isto sem falar dos cultos carismáticos de nossos dias, onde curas em massa através da fé, exorcismos e grandes espetáculos inclusive pelos meios de comunicação mostram este fato claramente: religião e mágica são duas faces de um mesmo todo.

Tendo em vista o fato de que as pessoas quase sempre internalizam as crenças de sua cultura sem questionar sobre a validade destes preceitos, muitos estudiosos modernos não consideram mágica como um tema sério, nem mesmo quando discutem culturas da Antigüidade. Tais estudiosos podem muito bem evitar o tema, recusando-se a discutir textos contendo práticas de mágica e achados arqueológicos, como se temessem levar tal "pecha" para seus trabalhos. Isto tem sido feito mesmo com trabalhos de grandes pensadores como Platão e Aristóteles.

Ao olharmos para as crenças e práticas de outras culturas, tais quais aquelas de nosso passado, deve-se tentar compreender como estas pessoas viviam e pensavam sobre si mesmas. Isto não quer dizer que devemos aceitar ao pé da letra, sem questionar, as práticas mágicas do passado, mas sim que devemos Ter sempre em mente que ciência, mágica e religião formavam uma linha contínua, não existindo barreiras entre elas. Os mesopotâmicos que escreveram longas listas classificando seu universo sabiam que tais listas eram parte de um mesmo todo. Nossa obsessão de separar tudo em compartimentos deve fazer um esforço para entender um mundo onde tudo era polar dentro de uma maior complementaridade. É uma característica de nossos tempos separar em vários sistemas o que na realidade está intrinsicamente relacionado.

Também devemos nos lembrar que a maior parte da terminologia que encontramos ao lidar com culturas da Antigüidade é fruto de tradução. As palavras originais, e com elas o seu sentido mais puro, chegam a nós sempre incompletas. Tomemos a palavra "alta sacerdotisa", que em geral não tem significado dentro das religiões estabelecidas de nossos dias como o Judaismo, o Cristianismo e o Islamismo, e que está carregada de conotações negativas. Uma sacerdotisa na Antiga Mesopotâmia, entretanto, era uma mulher com autoridade religiosa e secular tão grande quanto a do monarca, muitas vezes sendo a sua consorte, uma mulher com indiscutíveis dotes de inteligência e sabedoria, que servia não só a divindades masculinas quanto femininas. Talvez a última representante destas grandes figuras femininas da Antigüidade tenha sido Cleópatra, Rainha do Egito, Alta Sacerdotisa de Isis e Estadista, que por vinte anos deixou o mundo em dúvida sobre qual seria a potência mundial do início da Era Moderna: se Egito ou Roma. Caso Cleópatra tivesse vencido, nossa história seria muito diferente.

Tomemos, num outro exemplo, a palavra "mágica". Como se sabe, ela vêm da palavra persa magus, que significa sacerdote da religião da Zaratusta (também chamado de Zoroaster). Como magos em grego e magus em latim, o termo logo mudou para significar charlatão na Antigüidade. De fato, o que provavelmente aconteceu é que o sacerdote de uma religião diferente, como não se enquadrava nos padrões locais, foi convertido então num embusteiro. Entretanto, práticas como adivinhação, astrologia, exorcismo, o estudo das ervas e plantas medicinais eram sancionadas pelos governantes, e demonstram o fundamento para as ciências de nossos dias. Adivinhação, por exemplo, hoje tão incompreendida, mostra as raízes do pensamento dedutivo. Além do mais, muitas práticas religiosas dos templos que incluíam astrologia ou adivinhação através da análise de sinais especiais nos órgãos de animais sacrificados aos deuses não eram consideradas práticas mágicas, mas atos normais de adoração dentro da cultura religiosa vigente.

Os povos para os quais foram aplicados os termos e conotações mais negativas com relação às suas práticas mágico-religiosas foram os Mesopotâmicos. Mas os detratores dos mesopotâmicos eram exatamente seus conquistadores ou os bárbaros que viviam às margens da Terra Entre Rios. Os judeus, por exemplo, tinham interesse em denegrir para suprimir práticas aprendidas dos babilônicos e cananeus durante os anos de exílio que não foram necessariamente tão ruins, uma vez que muitas são as raízes mesopotâmicas para as escrituras judaicas do Velho Testamento da Bíblia, enquanto que o governo romano controlava práticas que hoje consideraríamos mágicas, quando, por exemplo, envolviam previsões sobre a morte de governantes. Neste contexto, era interesse da elite romana na Palestina fazer magos e sacerdotes independentes paracer inescrupulosos e desprezíveis como uma forma de controle político e para manter a estabilidade social. Deve-se acrescentar o fato de que os demônios da religião dominante são, em geral, os grandes deuses da religião precedente: se estes não podem ser anulados, devem então ser destituídos de seu status anterior.

Mas devemos retornar à questão básica, ou seja, "O que é mágica?" e tentar entendê-la dentro do contexto da Mesopotâmia antiga. Em primeiro lugar, algumas definições simplistas e sensacionalistas de mágica de nossos dias supõem que esta seja usada para controlar poderes mais fortes do que o homem, ou seja, poderes que estão além da esfera onde habitamos, para obrigá-los a obedecer à vontade do mago em questão, sendo também definida como truques barato e ilusão.. Este tipo de pensamento está diametralmente oposto à visão de mundo e filosofia dos antigos mesopotâmicos, pois eles viam os deuses e deusas como a fonte das artes mágicas, uma vez que eles e elas eram os poderes cósmicos que haviam criado toda a criação, e que ao se fazer um ato de mágica, a pessoa buscava uma identificação com a deusa ou deus, a fim de obter a graça desejada. Eram os deuses e deusas os responsáveis pela mágica, eram os deuses e deusas que estabeleciam o contato com seus devotos, que eram o meio, e não o fim. Neste contexto, não é mais possível separar magia de religião. Isto não quer dizer que não havia atos puramente religiosos na Antiga Mesopotâmia, mas afirmar que mágica não era uma disciplina separada da religião, sendo, na realidade, uma parte integrante da outra. O mago, na maior parte das vezes um tipo de sacerdote na Antiga Mesopotâmia era, literalmente, um teurgista, ou seja, um trabalhador dos deuses, que procurava a mediação dos divina através de oferendas, cantos e preces, para intervir em assuntos mundanos, com a dedicação e altruísmo de um místico.

Em segundo lugar, devemos levantar a questão de que em algumas definições de mágica ocorre a menção de que mágica envolve forças ou poderes sobrenaturais. Na Antiga Mesopotâmia, assim como em muitas culturas de nossos dias, não havia esta separação entre o natural e o sobrenatural. Os mesopotâmicos viviam num mundo onde os eventos e fatos da vida mundana estavam fundamentados no mundo dos deuses e deusas, portanto tudo para eles era natural. Fundamentalmente, eles viviam num mundo onde a natureza era o espelho dos deuses (maravilhoso, terrível, intrigante), e portanto tudo o que existia era permeado pela força divina. Podiam, evidentemente, existir forças que se situavam além da esfera do Mundo Físico, onde habitava a humanidade, mas todas estas forças faziam parte da natureza, e por conseqüência, do divino.

Em terceiro lugar, do ponto-de-vista cristão, mágica envolve demônios e Satã. Este argumento é totalmente irrelevante, pois Satã é uma criação judaico-cristã, e demônios são igualmente mais aterrorizantes dentro de religiões dualistas, cujos preceitos da fé assentam-se sobre a batalha do bem e do mal, e sobre dualidades irreconciliáveis. Na realidade, por muito tempo mesmo os cristãos fizeram atos de mágica, sendo que a Igreja considerava certos tipos de atos de mágica como aceitáveis - ou pelo menos toleráveis -, se tais atos envolvessem energias inerentes à natureza ou a produtos da natureza. O debate com relação a mágica natural X mágica demoníaca durou pelo menos meio milênio, e não foi resolvido até que a maioria dos teólogos concordaram que mágica era algo ilusório e traiçoeiro, não uma força demoníaca, na época do Iluminismo (séculos XVII-XVIII).

As religiões, que são criações humanas, servem para dar às pessoas a compreensão de que as energias que sentimos e os eventos de que participamos não são caóticos ou impenetráveis, mas sim que estes têm uma causa, e uma razão para acontecer. As artes mágicas, por seu lado, possibilitam que possamos nos envolver de forma direta com estas energias e eventos, não como recipientes passivos, mas como participantes e recipientes ativos, com a habilidade para influenciar eventos e experiências para o bem da humanidade, de uma ou mais pessoas ou mesmo outros sers. Em termos modernos, o(a) mago(a) é, na realidade:

"um operário de formação religiosa que operava como especialista de comunicações e poder, administrador de crises, curandeiro miraculoso e causador de danos, terapeuta todo-poderoso e agente ao qual recorriam as almas atribuladas, preocupadas e problemáticas," (Hans Dieter Betz, The Greek Magical Papyri in Translation)

Por todos estes motivos as artes mágicas têm persistido através dos tempos, a despeito da negação e críticas feitas por sistemas religiosos, mudanças científicas e tecnológicas, mudanças sócio-culturais. Mágica, independente do que radicais de todas as espécies e credos podem pensar, possibilita a todos nós os mecanismos para que nos tornemos participantes ativos de nosso próprio destino.

 

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