NERGAL E ERESHKIGAL
Foi há muito tempo, há alguns milênios e outros tantos séculos atrás na Antiga Mesopotâmia, quando Anu, o Todo-Poderoso deus do firmamento, o pai de todos os deuses, ergueu sua voz para dizer:
- Em breve, darei um grande banquete para todos os meus filhos e filhas, os grandes deuses e deusas desta terra. Por este motivo, enviarei uma mensagem ao Mundo Subterrâneo, para Ereshkigal, a deusa e rainha das Grandes Profundezas. Na mensagem eu dir-lhe-ei que como não é possível para ela subir às Esferas Superiores e juntar-se aos nossos festejos, pois a sua presença é necessária nas Grandes Profundezas para manter o Equilíbrio entre a Vida e a Morte, as Trevas e a Luz, o Caos e a Ordem. Por outro lado, é igualmente impossível que os deuses e deusas das Esferas Superiores desçam ao Mundo Subterrâneo. Portanto, eu enviarei uma mensagem à Ereshkigal em nome de todos os Anunaki das alturas e um mensageiro ao Reino das Profundezas. Eu pedirei a Ereshkigal que envie um mensageiro de sua confiança até nós, e que tal mensageiro escolha da mesa do Grande Banquete presentes para ela. Se Ereshkigal não pode vir juntar-se a nós, pelo menos ela terá o melhor de nossa mesa de festejos para si! E que seja feito segundo a minha vontade!
Anu escolheu Kaka, seu fiel conselheiro e sábio ministro, para ser o mensageiro encarregado de enviar pessoalmente a mensagem para Ereshkigal. Kaka desceu a longa Escadaria dos Céus, e porque ele acreditava na integridade de sua missão, Kaka pôde livremente passar pelos sete portais do Mundo Subterrâneo. Ao anunciar em alto e bom tom o propósito de sua descida a cada portal, de imediato as Portas que Jamais se Abriam concederam-lhe entrada sem alarde, demora ou confusões.
Com confiança e eficiência, ele entrou nos jardins bem cuidados de Ereshkigal, prosseguindo pelos corredores do Grande Palácio até a sala de audiências. Kaka então viu-se finalmente na presença da Senhora das Grandes Profundezas.
O fiel conselheiro de Anu ajoelhou-se e beijou o chão, para logo depois fazer uma perfeita cortesia, como mandavam as regras de comportamento para com uma deusa e Grande Rainha. Somente então ele enunciou a mensagem que tinha trazido para ela:
- Grande e nobre senhora, Rainha do Mundo Subterrâneo, que vosso nome seja louvado em todos os mundos e esferas! Em nome de vossos irmãos e irmãs venho até a Deusa das Grandes Profundezas Ereshkigal, trazendo-vos as mais respeitosas saudações, bem como uma mensagem para vós. Anu, vosso pai, em breve dará um grande banquete. Como vós não podeis deixar as Grandes Profundezas para comparecer ao banquete, pois sois a Guardiã que mantém o equilíbrio entre as trevas e a luz, vosso pai e vossos irmãos e irmãs humildemente vos pedem para enviar um mensageiro de vossa inteira confiança, para escolher em vosso nome algo da mesa do grande banquete, um presente digno da grande rainha do Mundo Subterrâneo. De forma alguma Anu e os deuses e deusas vossos irmãos deixariam a nobre deusa Ereshkigal de lado! Portanto, se for vosso desejo, que um mensageiro seja escolhido! A este nobre enviado, quando de sua entrada nos Mundos Superiores, todas as saudações, todo o respeito ser-lhe-a’ agraciado, como se fosse a Grande Ereshkigal em pessoa, em visita aos Mundos das Alturas. Então, da mesa do grande banquete, antes mesmo dos pratos e taças serem tocados, a ele o direito de escolher o melhor para a rainha Ereshkigal será dado, aceitando portanto em nome dos grandes deuses, um presente para a deusa do Mundo Subterrâneo. Esta é a vontade de Anu, o Todo-Poderoso deus do firmamento, à qual peço humildemente que seja concedido pronto deferimento!
Ereshkigal encheu-se de alegria ante à mensagem recebida. Tocada pela deferência dos deuses e deusas das Alturas Superiores para com ela, Ereshkigal prontamente enviou Namtar, seu fiel ministro e sábio conselheiro, para os Mundos das Alturas, para o banquete e assembléia dos deuses.
- Vá e volte sem demora, Namtar, ao Mundo das Alturas, onde se encontram meu pai Anu, o deus do firmamento, e os deuses meus irmãos e irmãs. Suba de imediato a longa Escadaria dos Céus, escolha e aceite da mesa sagrada um presente para mim. Seja qual for o presente escolhido, este será graciosamente recebido como uma dádiva verdadeira para mim.
- Eu ouço e obedeço, minha rainha.
Namtar curvou-se numa profunda reverência antes de partir imediatamente para cumprir o mandato de sua senhora. Ele ascendeu `as Alturas Superiores, não sem antes cruzar os Sete Portais do Mundo Subterrâneo e galgar degrau por degrau a longa Escadaria dos Céus.
Ao chegar na sala do Grande Banquete, frente a todos os Anunaki das Alturas, todos os deuses saudaram-no como a um deus, como se o mensageiro fosse Ereshkigal em pessoa em visita ao Mundo das Alturas. Os deuses reunidos ajoelharam-se ante Namtar, cumprimentaram-no como se fosse um dentre eles.
Todos, menos um, à exceção de um jovem deus. Este mostrou-se impassível, não saudando a Namtar, como se o enviado de Ereshkigal não a estivesse representando, no lugar da deusa tudo em seu nome recebendo. Ele nem mesmo ajoelhou-se, conforme o combinado, ignorando o acordo de tratar ao conselheiro como se ele fosse a própria deusa das Grandes Profundezas, Ereshkigal, em visita às Esferas Superiores.
Tal deus irreverente e indisciplinado, respondia pelo nome de Nergal, o deus da Guerra e das Doenças. Dentre todos os Anunaki das Alturas, ele foi o único a recusar-se a fazer o que havia sido acordado.
Intrigado por tanta falta de cortesia, Namtar aproximou-se de Nergal com todo respeito. .
- Meu deus, disse-lhe ele. Não pude deixar de observar que não prestastes as devidas homenagens à minha rainha Ereshkigal, a grande deusa do Mundo Subterrâneo. Com o maior respeito, com a maior das considerações, atrevo-me humildemente, meu senhor, a fazer-lhe uma pergunta: por que está o jovem deus recusando-se a saudar à Grande Rainha das Profundezas, a quem humildemente e com grande honra neste momento represento?
Nergal, aparentemente achando muita graça na pergunta de Namtar e em todo inusitado da situação, examinou o conselheiro de Ereshkigal com atrevimento e mal disfarçada insolência antes de responder à pergunta educada do vizir:
- Por que eu deveria saudar, fazer reverências, mostrar respeito ou deferência a uma deusa a quem nunca vi? Não conheço Ereshkigal, jamais a encontrei! Caso ela estivesse aqui, ou tivesse sido eu apresentado a ela, então e somente então eu consideraria a possibilidade de prestar homenagem a ela. Mas com toda franqueza, está’ acima da minha compreensão por que eu, um deus, iria saudar ou me ajoelhar em frente de um simples mensageiro de uma irmã mais velha a quem nunca vi!
Namtar, tomado de surpresa pela afronta e insolência de Nergal, furtou-se de responder ao jovem deus. O fiel conselheiro lutou para manter a compostura, até finalmente encontrar voz para dizer:
- Terei de relatar à minha rainha sobre vosso impensável e grosseiro comportamento, meu deus. Ninguém, eu repito, ninguém ofende Ereshkigal sem receber o merecido castigo por suas ações!
Imediatamente, Namtar desapareceu das Esferas das Alturas para retornar ao Mundo Subterrâneo e relatar todos os fatos a Ereshkigal.
Na sala do Grande banquete, caiu um silêncio pesado. Os Anunaki das Alturas, os grandes deuses e deusas da Mesopotâmia, estavam estupefatos, paralisados mesmo de surpresa. Somente Enki, o deus das Águas Doces, da Mágica, Artes e Sabedoria, pareceu recobrar-se do choque primeiro. Ele balançou a cabeça, como se não estivesse acreditando nos fatos presenciados, mas dirigiu-se a Nergal, o único que parecia totalmente não afetado pelas palavras e saída intempestiva de Namtar.
- Nergal, Nergal, como pode você ser tão mal-educado, faltando ao respeito com nossa irmã e rainha das grandes profundezas, comprando para si uma briga da qual com certeza não poderá vencer? Não admira ser você o deus de todas as guerras, aquele que traz todas as doenças! Você acabou de se comportar como um bárbaro, grosseiro e rude para com uma grande deusa, que alem do mais, é minha irmã gêmea! Agora, diga-me, o que você pretende fazer? Como vai-se escapar desta?
Nergal olhou ao redor da mesa do Grande Banquete, reparando nas expressões chocadas de seus irmãos e irmãs. Deveras, os grandes deuses e deusas pareciam transtornados, gelados de surpresa e muito preocupados. Tão profunda parecia a preocupação deles....
" Por que parecem eles, todos de fato, tão transtornados? Será que temem por alguém.... por mim? "Raciocinou finalmente Nergal.
Foi então que Nergal deu-se conta de que talvez tivesse feito um erro fatal ao ignorar e ofender Ereshkigal. Ele voltou-se para Enki.
- Enki, meu irmão mais velho, e o mais sábio de todos os deuses, será Ereshkigal assim tão terrível? Será que estou perdido? Irmão, grande Enki, que tudo sabe e todos os problemas com arte e mágica resolve, posso contar com a sua ajuda para safar-me desta?
- Com certeza a ira de Ereshkigal tem a forca do próprio caos. Você, Nergal, fez a sua cama: agora, deite-se nela! Respondeu Enki com toda franqueza, nada escondendo de Nergal.
- Então Ereshkigal irá atrás de mim? Perguntou Nergal, agora visivelmente preocupado.
- A lei máxima do Mundo Subterrâneo é a Lei do Equilíbrio, da Regeneração e do Crescimento. Cedo ou tarde, Nergal, você terá de pagar o preço pela insolência de seu comportamento para com Ereshkigal. Você é jovem, Nergal, e muito impulsivo. Portanto, vou ajudá-lo. Talvez haja algo que você possa fazer para salvar a sua pele. Deixe-me pensar.
Alguns minutos se passaram, durante os quais Enki pareceu se distanciar de tudo e de todos, para mergulhar no Mundo Interior, de onde toda sabedoria se origina, toda força encontra sustentação e fulgor.
- Em verdade, em verdade eu digo a você, Nergal, que partir você deve, para uma jornada rumo ao Mundo Subterrâneo, para ver Ereshkigal. Mas não antes de se preparar cuidadosamente! Em primeiro lugar, com a espada sagrada na mão, vá até a floresta e peça permissão a Ningishzida, o deus das grandes árvores, para cortar delas madeira sagrada. Desta madeira sagrada, irá você esculpir um trono, pintá-lo com as cores certas e inscrever nele os símbolos apropriados. O trono significa que a matéria do seu corpo que você irá oferecer em seu lugar aos espíritos do mundo Subterrâneo.
- É’ só isto o que devo fazer? Mas é tão fácil como tirar bala de uma criança!
Novamente, Enki balançou a cabeça, não acreditando no que estava ouvindo.
- Não, não é só isto, Namtar! Há muito mais que você deve aprender, saber realmente antes e fazer antes de tentar ver Ereshkigal, face a face! Com este tipo de atitude, eu me pergunto se vale o esforço de lhe ajudar! Talvez eu mesmo devesse deixá-lo à mercê de Ereshkigal e das Grandes Profundezas...
- Ah não, grande e sábio irmão, ajude-me, por favor! Eu preciso que me diga o que devo fazer, se devo na realidade ir até o Mundo Subterrâneo para encontrar nossa irmã velhota.... desculpe-me, nossa irmã mais velha, no reino dela.
- Na realidade, não seria justo deixá-lo partir sem alguns conselhos, disse Enki, conformando-se com o fato de ter de auxiliar um teimoso como Nergal. Mesmo não tendo certeza de que você irá seguir à risca todas as minhas instruções.... Bem, de qualquer modo, ao chegar às Grandes Profundezas, preste bastante atenção: não se sente em outros lugares que não o trono por você mesmo esculpido, não coma ou beba da mesa de Ereshkigal, ou deixe que servos lhe lavem os pés. E sobretudo, não se apaixone pela Rainha do Mundo Subterrâneo, não se deixe levar pelos encantos de Ereshkigal. Eu repito: sob hipótese alguma evite de fazer com ela o que homens e mulheres fazem, com respeito, carinho e muito amor. Estamos entendidos?
- Enki, não posso acreditar no que acabei de ouvir! exclamou Nergal. Como poderia ter vontade de fazer amor com uma deusa muito mais velha do que eu e que quer a minha carcaça?
- Ereshkigal pode muito bem reservar algumas surpresas para você, Nergal, sorriu Enki. Com os olhos da memória, ele lembrou-se da deusa-menina, sua irmã e grande amiga, a quem ele havia amado como a sua própria alma. Jamais diga nunca farei isto ou aquilo, pois Ereshkigal provavelmente achará uma forma de fazê-lo fazer exatamente o contrário! Siga as minhas instruções, Nergal, `a risca e eu desejo muita sorte. Vá e volte com as minhas bênçãos!
Nergal seguiu cuidadosamente as instruções de Enki. Ele foi até a floresta, armado da Espada Sagrada. Lá chegando, procurou por Ningishzida, o guardião das Boas Arvores, para pedir-lhe permissão para cortar madeira sagrada e com ela esculpir o trono necessário para a sua jornada ao Mundo Subterrâneo. Com grande zelo, Nergal esculpiu o trono, pintando-o com as cores certas e os símbolos apropriados.
Neste meio tempo, tendo sido informada por Namtar da descortesia de Nergal, Ereshkigal pôs-se a esperar. A Rainha do Mundo Subterrâneo, a deusa da Terra do Equilíbrio Restaurado, da Justiça e da Memória Ancestral, sabia que cedo ou tarde Nergal iria ter-se com ela para aprender uma grande lição, não mais se comportar de forma tão rude para com uma grande deusa, dele conhecida ou desconhecida. Até este momento chegar, Ereshkigal iria apenas esperar com perfeita paciência e confiança na Lei Maior das Grandes Profundezas.
Finalmente, Nergal aprontou o trono, considerando-se também preparado para a jornada. Porque ele ia ao Mundo Subterrâneo numa breve visita, para trás Nergal deixou os símbolos do poder e da guerra que o definiam, a cimitarra e o cetro de cabeça de leão. Apenas o trono que havia tão laboriosamente esculpido foi o que Nergal levou consigo como um troféu ao descer na direção das Grandes Profundezas. Pela primeira vez, o ardoroso deus da guerra, o beligerante Nergal encetava uma jornada totalmente desarmado, sem qualquer sinal exterior de posição ou status. Ele partiu também estranhamente silencioso, preocupado apenas em conseguir o seu intento: ver Ereshkigal, enfrentar a ira da grande deusa e voltar às Esferas Superiores no mínimo espaço de tempo.
Entretanto, no limiar do primeiro portal das Grandes Profundezas, Nergal teve de parar, ao encontrar o guardião daquele ponto, neste dia o fiel conselheiro Namtar.
- Quem se atreve a se aproximar dos Portais da Terra De Onde Não Há Retorno antes da sua hora? Namtar perguntou e, como de praxe, examinou cuidadosamente o recém-chegado com olhos penetrantes.
Quando o sábio conselheiro de Ereshkigal viu quem era na realidade aquele que pedia passagem, Namtar empalideceu, sua face ficando tão lívida quanto os campos cobertos de geada no dia mais frio de inverno:
- Oh, é o deus que não tratou com o devido respeito a minha rainha nos Mundos Superiores quando do Grande Banquete! Parai de imediato, meu senhor, pois devo imediatamente avisar a vossa chegada à minha soberana, a grande deusa Ereshkigal.
Não dando tempo para Nergal responder, mas deixando o deus-guerreiro imobilizado à entrada do primeiro portal, Namtar correu ao encontro de Ereshkigal.
- Minha rainha, começou Namtar, ofegante e ansioso, mas não sem antes curvar-se numa perfeita reverência, um dos deuses do Mundo das Alturas veio até as Grandes Profundezas sem ser anunciado. O deus que aqui chegou pode não ser do agrado da minha senhora....
- Como pode ser isto, Namtar? Perguntou Ereshkigal.
- Grande Senhora, quando me mandastes ao banquete de vosso augusto pai, à minha entrada na sala dos festejos, todos os deuses saudaram-me com os cumprimentos mais honrosos. De fato, eles ajoelharam-se na minha presença, pois estavam saudando, na verdade, não a mim, seu servo mais dedicado, mas à minha senhora. Dentre eles, entretanto, houve um jovem deus que não me saudou, não se ajoelhou na minha presença ou mostrou o devido respeito para com a minha adorada soberana. É’ este deus que se encontra neste momento no limiar do primeiro portal das Grandes Profundezas.
O sorriso misterioso de Ereshkigal saudou as palavras de Namtar:
- Traga este deus à minha presença, Namtar. Quero realmente encontrar aquele que se portou com inexplicável grosseria e rudeza para comigo, mesmo sem ter-me conhecido ou ouvido falar de mim. Em verdade, em verdade eu afirmo: quero conhecer este deus e descobrir a razão de alguns porquês!
Namtar voltou ao primeiro portal para permitir a passagem de Nergal. O sábio conselheiro também garantiu ao deus da guerra a passagem pelo segundo, terceiro, quarto, quinto, sexto e sétimo portal do Mundo Subterrâneo.
Nergal viu-se então num amplo pátio ajardinado de um templo de proporções grandiosas, todo do mais puro lápis lázuli e cristal, situado as margens de um rio ou lago, qual dos dois, ele não saberia dizer. Mas Namtar não lhe deu muito tempo, para analisar as redondezas, sempre seguindo com passos largos, rumo à sala de audiências de Ereshkigal. Lá chegando, Nergal colocou o trono que havia esculpido no chão e ergueu os olhos para contemplar Ereshkigal.
Mais uma vez, no entanto, a voz de Namtar fez-se ouvir:
- Meu deus, a ninguém é dado o direito de prosseguir ou levantar os olhos para encontrar os de minha rainha, sem que deixe antes de tudo seus preconceitos e idéias falsas de lado. Portanto, olhe primeiro para dentro de si mesmo com a os olhos de sua mente, corpo, coração e espirito, pois esta é a Visão que dar-lhe-á a Verdade Além das Aparências. Lembre-se de que o Mundo Subterrâneo é a Esfera da Essência de Tudo que foi, é e será. Para aqueles que vem às Grandes Profundezas com medo, medo será o que terão antes de aqui encontrar cura e compleitude. Cura e Compleitude é a meta de todas as jornadas da alma às Grandes Profundezas, a Grande Aventura daqueles que buscam a auto-transcendência, antes, agora e sempre!
A voz de Namtar ressoou profunda e cheia de autoridade na câmara de audiências, na mente, corpo e alma de Nergal. Sem pestanejar, Nergal curvou-se aos desígnios do conselheiro de Ereshkigal, para então erguer os olhos para encontrar Ereshkigal face a face.
Nergal prendeu a respiração ante àquela que estava à sua frente. De fato, a grande deusa e rainha estava sentada, como seria de se esperar, em seu trono, vestida com extrema sobriedade, mas exalando força e magia como nem uma outra deusa ou deus que Nergal tinha conhecido. Onde estava a velhota que ele esperava encontrar? Onde estava a rabugenta soberana das Grandes Profundezas, que permitia aos mortos viverem sem luz, que oferecia poeira como alimento, argila como pão e penas como vestimentas?
" Estes eram os preconceitos", Nergal finalmente entendeu," não a Verdade."
Pois quem o fitava do trono era uma linda e séria mulher, toda vestida de preto com longas madeixas negras onduladas e uma aura de poder que deixou Nergal sem fala.
Ereshkigal não parecia velha. De fato, ela parecia não ter idade definida, ao mesmo tempo jovem e experiente, com a Sabedoria daqueles que muito viram e tudo aprenderam. A filha de Namu, as Águas do Oceano, e do deus do firmamento Anu, a querida irmã gêmea de Enki era linda, mas sua beleza vinha mais de uma força interior e Poder-Que-Vem-de-Dentro que Nergal não sabia definir. Ele sabia, porém, sem sombra de dúvida, que desde aquele primeiro instante Ereshkigal havia capturado a sua mente, seu corpo, coração e alma.
"A severidade de Ereshkigal não me causa desconforto", ele pensou. " De fato, eu entendo por que ela é e tem de ser tão severa. E’ pura e simplesmente o distanciamento e equilíbrio de uma Grande Juíza de Seres e Atos, imparcial e sábia.".
Ato continuo, com perfeita cortesia, Nergal fez exatamente o que havia negado à Ereshkigal anteriormente: ele se ajoelhou e beijou o chão ante a soberana do Mundo Subterrâneo. Ele o fez com toda naturalidade, pois a visão de Ereshkigal tinha comandado tal ato do fundo de seu bravo coração de guerreiro.
A rainha do Mundo Subterrâneo contemplou com atenção o jovem deus Anunaki das Alturas ajoelhado com perfeita cortesia frente a ela. Nergal era alto, com longos cabelos negros. Os trajes de deus-guerreiro deixavam à mostra pernas musculosas e um físico escultural. Nergal também tinha a arrogância e impulsividade dos jovens, a um tempo uma qualidade e grande defeito. Ereshkigal manteve o silêncio, mas um sorriso misterioso quase brincou nos seus lábios.
" Finalmente encontro o filho de Enlil e Ninlil," ela pensou, "concebido às portas do Mundo Subterrâneo, como parte das jornadas de iniciação de Enlil e Ninlil para crescer como um Casal Divino e formar uma Parceria Indissolúvel e Sagrada. Agora Nergal desceu ele mesmo, tendo deixado qualquer símbolo de autoridade exterior de lado, pois não vejo o cetro de cabeça de leão ou a cimitarra em suas mãos. Fico imaginando que tipo de lição o deus dos Conflitos e Doenças irá aprender desta experiências nas Grandes Profundezas? É’ cedo demais para que se diga alguma coisa. Como todos que aqui vêm, Nergal terá primeiro de mostrar o seu valor e provar em atos e pensamentos o que realmente aqui aprendeu."
Após alguns minutos de avaliações reciprocas, Ereshkigal quebrou o silêncio, sua voz grave ressoando profundamente no coração de Nergal.
- Posso lhe perguntar quem é você e por que veio até mim?
Onde estavam a ira, a raiva que Nergal havia esperado de Ereshkigal? Pela segunda vez ela pegava-o totalmente de surpresa. A pergunta era previsível, exceto que Nergal não havia pensado nela! O que responder, agora?
Nergal olhou para o trono que havia trazido, e resolveu seguir um palpite maluco.
- Grande senhora, sou Nergal, o deus da Guerra e de todas as Doenças....
- E por que você veio até mim? Continuou ela, sem abrandar um milímetro.
Nergal engoliu em seco:
- De fato, foi Anu, o deus do firmamento, seu pai, minha senhora, que me mandou até as Grandes Profundezas. Ele, o Todo-Poderoso senhor dos céus, disse "sente-se naquele trono, Nergal, desça até a Grande Rainha do Mundo Subterrâneio e julgue os atos e casos de todos os seres vivos com ela." Portanto, para fazer a vontade do grande deus Anu, eu desci até aqui. Também fiz este trono, o qual ofereço em honra da grande deusa do Mundo Subterrâneo.
A desculpa apresentada por Nergal era tão inusitada que Ereshkigal resolver levá-la adiante.
- Então Anu, meu pai, decidiu que depois de tanto tempo eu devo ter um companheiro para julgar os casos dos grandes deuses e os atos de todos os seres vivos? Depois de todo este tempo? Perguntou Ereshkigal, fingindo grande surpresa. Muito gentil da parte do meu pai, mas não posso permitir que você se sente ao meu lado para julgar todos os casos antes de você ter passado algum tempo comigo nesta esfera. Sentar-se ao meu lado, você poderá, mas não o trono trazido por você. Sim, com toda certeza, não aceitá-lo-ei antes de você ter-se alimentado da minha mesa e bebido da minha adega. Somente então vou poder dizer com certeza se você pode ficar e julgar almas e espíritos no Mundo Subterrâneo. Mas enquanto estiver-se provando apto para mim, sinta-se à vontade para apreciar tudo o que as Grandes Profundezas tiverem a lhe oferecer, Nergal.
Ereshkigal retirou-se então para seus aposentos e Nergal foi deixado sozinha na câmara de audiências. Mas não por muito tempo. Outro trono, iguarias, vinho e cerveja foram-lhe apresentados por servos prestativos comandados pela costumeira eficiência de Namtar. Nergal lembrou-se dos conselhos de Enki para não comer, não beber e não permitir que lhe lavassem os pés nas Grandes Profundezas, e a tudo recusou.
Ereshkigal retornou, e apenas sorriu, ao ver o trono, os alimentos e a bebida, a bacia cheia intocados. A grande rainha não perdeu sua compostura:
- Vejo que você não quis compartilhar da minha mesa, sentar-se no trono que lhe foi indicado ou permitir alguns pequenos bons tratos. Eu repito, Nergal, sinta-se à vontade para apreciar o que o Mundo Subterrâneo tiver a lhe oferecer. Por ora, vou deixá-lo, para ir-me banhar.
Ereshkigal foi à casa de banhos. Nergal não pôde resistir e seguiu-a discretamente. O deus da guerra, o bravo e ardoroso guerreiro Nergal sentia-se curiosamente atraído por Ereshkigal.
A soberana do Mundo Subterrâneo sabia que tinha sido seguida. Na casa de banhos, ela manteve então as cortinas levemente abertas, despiu-se, banhou-se e ungiu seu corpo perfeito com óleos caros. A seguir, como na antecipação de um encontro mais do que especial, Ereshkigal vestiu-se com trajes de rainha, adornou-se com as jóias da divindade. Tudo isto ela deixou o deus-guerreiro de seu esconderijo escolhido presenciar.
Ao contemplar a beleza de Ereshkigal, Nergal não pôde resistir, rendendo-se aos encantos da deusa, ao desejo crescente do seu corpo, delicia da sua mente e alma. O deus da guerra declarou-se derrotado, ao admitir que o que mais almejava com força e paixão era fazer com ela o que um homem e uma mulher fazem.
Confiante, mas tomado de profunda emoção, Nergal foi até Ereshkigal:
- Ah, Ereshkigal, eu me rendo! Rendo-me ao desejo do meu coração e delicia da minha alma para fazer contigo o que um homem faz com uma mulher! Senhora das Grandes Profundezas, do Mundo Subterrâneo a rainha, tenho-te procurado sem saber durante toda minha vida. A tua solidão é a minha, pois minha também foi outra escolha árdua assumida com profundo conhecimento e plena liberdade. Pois fiz minha a escolha e a pesada carga de trazer a guerra e todas as doenças como a Solução Final para a humanidade aprender a respeito da paz, saúde, fertilidade e riqueza. Ah, Ereshkigal, agora que te encontrei, sei com certeza de que tua é a voz que chama pelo meu coração, a verdade maravilhosa que sempre soube um dia iria encontrar!
Os dois se abraçaram com e paixão.
- Por ti, que desceste ao Mundo Subterrâneo por mim, eu me banhei e me perfumei com os óleos mais finos e delicados, admitiu Ereshkigal. Por ti, que desceste ao Mundo Subterrâneo não sabendo que desafios irias enfrentar, se minha raiva ou mágoa, eu me trajei com roupas de grande rainha. Por ti, guerreiro ardoroso, que não teve medo de te mostrar vulnerável e me revelar o desejo do teu coração, o anseio da tua alma, eu me adornei com as jóias da divindade. Por ti, que desceste às Maiores Profundezas para encontrar a minha justiça, eu dou a Paz do Meu Abraço, A Vitalidade do Meu Desejo, a Alegria, Paixão e Ousadia do meu Amor. Portanto, por meu poder, pelas leis do meu reino, eu te convido: vem para mim, Nergal, meu deus-guerreiro, sonho tornado verdade, que sempre soube um dia iria achar!
Nergal rendeu-se ao desejo do seu coração, ao anseio da sua alma para fazer com Ereshkigal o um homem faz com uma mulher. Com amor, paixão, carinho, ousadia, respeito e muita alegria, eles se beijaram e se abraçaram por longo tempo.
Aos beijos e abraços apertados, a rainha do Mundo Subterrâneo e o deus da Guerra foram até os aposentos reais, ao sagrado leito. No leito real Ereshkigal e Nergal se deitaram, no leito sagrado eles apaixonadamente se amaram. A soberana das Grandes Profundezas e o ardente deus-guerreiro deitaram-se juntos para se amar por um dia e uma noite, por dois dias e duas noites, por três dias e três noites. E assim também se passaram o quarto dia e a quarta noite, o quinto dia e a quinta noite, o sexto dia e a sexta noite.
Quando a aurora do sétimo dia estava para raiar, Nergal, com Ereshkigal adormecida em seus braços, sentiu então pela primeira vez o impacto total de ter-se rendido aos encantos de Ereshkigal. Dúvidas encheram seu coração: tanto amor, responsabilidade e paixão ele estava sendo chamado a compartilhar. Será que ele estava realmente pronto para assumir tal compromisso?
" Minha irmã mais velha, minha amada," Nergal pensou, beijando a orelha bem feita, os cabelos longos e sedosos. "Estamos juntos há seis dias e seis noites apaixonadas. Agora que a sétima aurora se aproxima, um ciclo completo está chegando ao fim. Ereshkigal, grande rainha que capturou meu coração, serás realmente a resposta para todos os meus desejos, o melhor abraço para o meu beijo, amiga, amante, companheira, de todas, a melhor? Pode ser eu não o sejas! Até descobrir a resposta para esta pergunta, deixar-te-ei para subir mais uma vez aos Mundos das Alturas, para depois, e somente depois, retornar. Pois com certeza retornarei para ti, mas por agora me devo ir! Quem sabe, quando minha resposta encontrar, voltarei então para sempre ficar!’
Nergal não se atreveu a acordar Ereshkigal. Beijou-a pela ultima vez e com imensa gentileza, ajeitou-a no leito, desvencilhando-se dos braços que se teimavam em se enroscar no seu pescoço, com cuidado, para não despertá-la. Com presteza, mas sem olhar para o leito sagrado, onde dormia ainda a amada (pois talvez não tivesse coragem de partir), Nergal vestiu-se, deixando os aposentos de Ereshkigal.
Como um ladrão em fuga, silencioso e veloz, antes da aurora, quando as Grandes Profundezas estavam ainda mais mergulhadas na mais completa calma, Nergal percorreu os corredores do templo, como um fantasma ele se esgueirou por entre os sete grandes portais, como um espirito Nergal não foi visto, exceto durante um breve momento por Namtar. Mas já era tarde para o fiel conselheiro ir atrás do deus da guerra, que subiu sem ser perturbado a grande Escadaria dos Céus, o ponto de entrada para os Mundos Superiores.
Quando Nergal finalmente chegou, ofegante, na Assembléia dos Deuses das Alturas, encontrou de imediato An, Enlil e Enki. Num só olhar, Enki tudo viu, tudo compreendeu. :
- Então você voltou! Disse Enki. Mas há em você agora uma grande diferença. Corrija-me também, se estiver enganado: o deus da guerra parece estar sob pressão, definitivamente sitiado! Vejamos se penso certo, se tenho razão: creio que você, Nergal, partiu do Mundo das Profundezas, sem se despedir ou dar à Ereshkigal uma razão para querer partir.
- Sim, esta é a verdade, respondeu Nergal, não negando a evidência.
- Mas não é tudo, não é mesmo? Continuou Enki. Não me diga nada, deixe-me adivinhar. Você também comeu e bebeu da mesa de Ereshkigal, sentou-se a seu lado no trono que ela indicou e fez amor com ela, deixando-a depois sem nada dizer! Nergal, foi criado um laço muito forte entre você e Ereshkigal, como tudo o que partilharam, a qualidade dos momentos que juntos passaram. Você não poderá nunca mais esconder-se dela, pois Ereshkigal com certeza segui-lo-á, onde quer que for! Desta vez, você não poderá escapar.
- Mas eu mesmo não sei se na realidade quero me escapar de Ereshkigal, respondeu Nergal cripticamente. Só estou pedindo algum tempo para pensar, antes de decidir trocar definitivamente o Mundo das Alturas pelas Grandes Profundezas.
Enki sorriu, entendendo muito bem o dilema de Nergal. Uma vez, há muito tempo, também ele tinha sido tentado para fazer a mesma escolha, também por amor a Ereshkigal. A sinceridade do teimoso e ardente deus da guerra venceu as graças de Enki, afinal:
- Eu entendo, bem mais do que possas imaginar, Nergal. Mais uma vez, vou ajuda-lo. Espalhe estas águas sagradas, com mágica abençoadas, pelo corpo. Elas irão disfarçar sua face e aspecto geral, de forma que Ereshkigal ou um dos seus não possa reconhecê-lo.
Nas Grandes Profundezas, antes do raiar da aurora, do seu posto de guardião, Namtar viu a fuga de Nergal. O fiel conselheiro imediatamente tentou seguir o deus guerreiro, mas a agilidade e rapidez de Nergal eram incomparáveis. Atônito e desapontado, Namtar foi até a sua rainha para relatar o ocorrido. Ele encontrou Ereshkigal ainda dormindo:
- Minha senhora, acorde! O deus que veio às Grandes Profundezas , de visita, antes da aurora, como um ladrão, um criminoso e bandido, partiu, sem a ninguém avisar. Como um fantasma ele se esgueirou pelos portais do Mundo Subterrâneo, como um espirito ele desapareceu, sem ser visto! Tentei segui-lo, mas ele foi mais rápido do que eu, e aqui estou, trazendo-lhe novas tão tristes, de alguém que mais uma vez minha senhora e rainha ofendeu!
Ereshkigal despertou, viu a face transtornada pelo pesar do sábio conselheiro, ouviu o que ele tinha para lhe dizer, e tocou o leito vazio, prova maior de todos os acontecimentos. Dor, tristeza, desapontamento sentiu a deusa neste momento.
- Nergal, Erra, como pudeste antes da aurora desaparecer? Ainda não me cansei de tuas caricias, o que te fiz para tanta desconsideração merecer? Onde está o meu amante fogoso e escolhido do meu coração? Por que me declaraste guerra, se desta vez, bem sabes, derrotada por ti não vou ser?
Lágrimas quentes escorreram pela face da deusa. Elas tocaram profundamente o coração de Namtar.
- Minha rainha, mandai-me de volta ao Mundo das Alturas, deixai-me trazer para minha deusa aquele que antes da aurora fugiu!
Com um movimento altivo e zangado, Ereshkigal secou as lágrimas que teimavam escorrer de seus olhos:
- Você tem razão, Namtar. Eu não vou mais perder tempo com lágrimas por quem não as merece, ou mesmo esperar para que Nergal volte para mim desta vez! Suba, imediatamente, meu fiel conselheiro! Você deve falar com Anu, Enlil e Enki, e dizer-lhes que desde que era menina, desde que escolhi o Mundo Subterrâneo como meu reino, não tive mais a oportunidade de brincar como as outros deuses e deuses brincaram, ou os prazeres de crescer e ver o mundo das alturas também amadurecer. Minha foi a escolha de manter o equilíbrio entre as trevas e a luz, minha foi também a escolha pela solidão, que aceitei de livre e espontânea vontade, tornando-me deste mundo a guardiã. Mas um dia, um deus veio até mim, primeiro cheio de ansiedade e medo, mas logo depois entre ele e eu nasceu um grande desejo, uma paixão, um amor. Agora, eu carrego dentro de mim a semente deste fogoso amor. Nergal é o nome deste deus! Que ele, que partilhou da minha mesa e do meu leito, volte para viver comigo como meu amado! E se os deuses das Alturas Superiores não mandarem este deus até mim, de acordo com os ritos deste mundo do qual sou soberana e rainha, irei levantar os mortos e estes subirão ao Mundo das Alturas para superar o número dos vivos! E que seja feito segundo a minha vontade, agora e para sempre!
Namtar apressou-se a cumprir o mandato de Ereshkigal. Ele subiu a longa Escadaria dos Céus, seguindo com segurança e presteza rumo aos aposentos da Grande Assembléia dos Deuses das Esferas Superiores, onde encontrou Anu, Enlil e Enki. Os grandes deuses perguntaram a Namtar o que o trazia novamente ao Mundo das Alturas.
- Grandes deuses, senhores e protetores de todas as alturas! Saudou-os Namtar. Novamente venho a vossas augustas presenças em nome de minha soberana e rainha, a grande deusa do Mundo Subterrâneo, para entregar-vos uma mensagem de grande importância. Minha rainha diz que desde que era que era menina, desde que escolheu o Mundo Subterrâneo como seu reino, ela não teve mais a oportunidade de brincar como as outras deuses e deuses brincaram, ou os prazeres de crescer e ver o mundo das alturas também amadurecer. Dela foi a escolha de manter o equilíbrio entre a escuridão e a luz, dela foi também a escolha pela solidão, que aceitou livre e espontaneamente, tornando-se a fiel guardiã do Mundo Subterrâneo para todos os deuses e deusas, seus iramos. Mas um dia, um deus veio até ela, primeiro cheio de ansiedade e medo, mas logo depois entre ele e minha rainha nasceu um grande desejo, uma paixão, um profundo amor. Agora, minha Senhora carrega dentro dela a semente deste fogoso amor. Nergal é o nome deste deus! Que ele, que partilhou da mesa e do leito da Grande Deusa Ereshkigal, volte ao Mundo Subterrâneo, para reinar ao seu lado! E se os deuses das Alturas Superiores não mandarem este deus até minha senhora, de acordo com os ritos das Grandes Profundezas da qual ela é soberana e toda-poderosa, aos mortos será dada vida para que subam ao Mundo das Alturas para superar o número dos vivos! Esta é a vontade da minha senhora: que todos dela estejam cem por cento cientes!
No silêncio que se seguiu, Enki foi o primeiro a recuperar a voz e dirigir-se a Namtar:
- Entre, Namtar, e cumpra as ordens de sua senhora. Encontre o que veio procurar... se puder achar!
Namtar entrou novamente na companhia dos deuses e deusas dos Mundos das Alturas. Como da vez anterior, à sua entrada, todos os deuses e deusas saudaram-no com o maior respeito.
- Mais uma vez venho a vossa presença, para levar aquele que dentre vós chama-se Nergal e conduzi-lo à presença de minha rainha.
Ato continuo, Namtar passou a examinar todos os deuses e deusas presentes, para Nergal e somente Nergal identificar.
- Não sois vós, nem vós também! Eu não reconheço em vós a face de Nergal, o deus a quem venho buscar, disse Namtar, à medida em que com cuidado e atenção fitava os rostos voltados silenciosamente para ele.
Chegou o momento em Namtar postou-se respeitosamente frente a Nergal. Um silêncio eletrizante tomou conta da Assembléia, mas a mágica de Enki, o poder da Ilusão, manteve-se firme e imperturbável.
Entretanto, os olhos do ministro de Ereshkigal não conseguiram encontrar os do deus em disfarce, que tudo fez para fugir, evitar o escrutínio silencioso, calmo e cuidadoso de Namtar.
‘ Estranho este jovem deus fugir do meu olhar, nervoso o seu comportamento, como se algo tivesse a esconder, pensou Namtar. Mas dele também não é a face a qual devo reconhecer e `a minha senhora nas Grandes Profundezas levar. ‘
- Não, eu não reconheço dentre todos aqui reunidos a face de Nergal, o deus que saiu do Mundo Subterrâneo na calada da noite, tal qual um ladrão, escondido, concluiu finalmente Namtar, extremamente desapontado.
O conselheiro de Ereshkigal dirigiu-se então a toda assembléia:
- Meus sinceros agradecimentos aos grandes deuses dos Mundos das Alturas, despediu-se Namtar. Não pude, porém, o deus que vim procurar aqui encontrar. Mas mesmo não tendo cumprido minha missão, devo à minha rainha imediatamente retornar.
Namtar retirou-se em grande estilo para retornar `as Grandes Profundezas, seguindo de imediato até Ereshkigal para relatar o seu insucesso.
- Minha Senhora, tudo fiz conforme me foi pedido: retornei aos céus de vosso pai, o Grande Deus do Firmamento, à Assembléia dos Anunaki para procurar Nergal. Mas por mais que procurasse em todos os locais sagrados e profanos, não pude encontrá-lo, apesar de ter olhado com atenção as faces de todos os deuses, os Anunaki das Alturas. Entretanto, devo dizer que dentre eles, havia um jovem deus que fez todo possível para me evitar, não me olhando nos olhos, parecendo nervoso e agitado. Mas a face que meus olhos cuidadosamente fitaram com certeza não era a do deus a quem nas alturas procurei.
- Estavam mesmo todos os deuses presentes, Namtar? Inquiriu Ereshkigal.
- Com toda a certeza, minha rainha.
- Mas só um dentre eles estava nervoso e agitado... Este provavelmente era Nergal, com certeza em disfarce ou protegido por alguma ilusão para não ser reconhecido por você, meu fiel vizir e companheiro, raciocinou Ereshkigal. Mas não nos deixaremos dar por vencidos, pois minha forca agora Nergal vai ter de conhecer! Volte, Namtar e faca o possível e o impossível para trazer de volta Nergal até mim, sob qualquer disfarce, feição ou arte! Com certeza foi Enki, meu astuto irmão, que fez alguma mágica para a proteção de Nergal. Desta vez, caro conselheiro, seja todo olhos e ouvidos, para não ser enganado por magica, ilusão, ou qualquer outra arte! Parta já, neste momento, com o dom que lhe concedo de ver além das aparências, enxergar alem do invólucro de tudo e todos a essência!
- Eu ouço e obedeço, minha senhora.
Namtar fez uma profunda reverência e imediatamente desapareceu, retornando `as Esferas Superiores. De volta `a Assembléia, na presença de todos os Anunaki das Autoras, Namtar ergueu a voz para dizer::
- Grandes deuses e deusas, Anunaki das Alturas, eu vos saúdo mais uma vez em nome de minha rainha, a toda-poderosa Ereshkigal das Grandes Profundezas! Eu subo até os grandes deuses e deusas com a missão de levar de volta ao Mundo Subterrâneo o deus que partiu sem se despedir de minha rainha, que abandonou o Mundo Subterrâneo da forma mais covarde e desgraciosa, tal qual um ladrão e criminoso, esgueirando-se na calada da noite, fugindo para não ser apreendido. Em nome de minha senhora, eu conclamo a Nergal, o deus da Guerra e de todas as doenças, para com coragem dirigir-se à presença de minha grande rainha! De onde estiver Nergal, o deus que amou e abandonou Ereshkigal, eu conclamo que a todos agora, de imediato apareça! Será que o deus que à minha senhora se apresentou já dela e do que compartilharam juntos se esqueceu? Sete dias e seis noites de amor, carinho e paixão nas Grandes Profundezas para ele nada significaram? Eu exijo em nome de minha senhora as devidas reparações! Nergal, deus da Guerra que um dia ao Mundo Subterrâneo por sua livre e espontânea vontade desceu, vossa presença é de novo exigida nas Grandes Profundezas, para todo e qualquer mal-entendido esclarecer. Ao comer e beber da mesa de minha senhora, sentar-vos ao lado dela, compartilhar do leito sagrado e impregná-la com sua semente, um elo entre o deus da guerra e a rainha do Mundo Subterrâneo foi de forma indelével criado. Em nome de minha rainha, da Grande Ereshkigal, eu conclamo Nergal, o deus da guerra, para tudo com minha deusa esclarecer!
Nergal não pôde ficar indiferente às palavras de Namtar, ao discurso apaixonado do fiel ministro e conselheiro de Ereshkigal. Com alegre surpresa, o corajoso deus da guerra percebeu que estava disposto a se render incondicionalmente, corpo, mente, coração e espirito, à Ereshkigal, não apenas por um momento, mas por toda a eternidade e além! Com esta grande certeza, em passos longos e resolutos, Nergal foi até Namtar:
- Não, Namtar, eu não me esqueci de Ereshkigal! Eu posso tê-la deixado, mas certamente sempre pretendi voltar ... quando tivesse certeza dos desígnios do meu coração, sem outros encorajamentos ou coação! Bem, irei provar uma coisa a Ereshkigal: ela ter-me-á como companheiro e consorte, mas não como um fantoche na palma da sua mão! Em verdade, em verdade eu afirmo que Ereshkigal pode ser a Soberana do Mundo Subterrâneo, mas eu exijo ser tratado como seu igual, deus e companheiro. Agora sou eu que vou até ela, abrindo todos os portais mais cerrados e tudo fazendo para ensinar uma lição à minha grande rainha e senhora do meu ardente coração!
De imediato, Nergal cumpriu a sua palavra, pois começou a longa e árdua descida para o Mundo Subterrâneo. Desta vez, a cada portal, Nergal não mais pediu, mas exigiu passagem, em voz calma mas cheia de autoridade. Como quem chegou para ficar Nergal desceu, como um soberano, ciente de seus direitos e deveres, ele prosseguiu sem pestanejar, não ouvindo as provocações dos guardiões dos portais, os quais não cessaram de testar as reais intenções de Nergal. Pela primeira vez, o Deus da Guerra, o Beligerante Nergal ignorou provocações, não perdeu a paciência, manteve seu temperamento bravio sob controle para mais depressa chegar até Ereshkigal, onde quer que ela estivesse.
No limiar de cada um dos Sete Portais, clamou Nergal:
- Guardião do Portal! Que me seja concedida passagem! Aqui quem lhes fala é Nergal, o Deus da Guerra, que, entretanto, neste momento com ninguém quer brigar, somente exigir passagem, para no Mundo das Profundezas poder entrar. Eu desço por minha livre e espontânea vontade, eu escolho pelo desejo do meu coração e anseio da minha alma para Ereshkigal voltar. E agora, sem parar para discutir ou problemas causar, eu sigo em frente! Repito: quero o direito de passagem, sem confusões ou demoras, desde já.
Tanta confiança valeu, realmente, a Nergal o direito de passagem. E à medida em que Nergal avançava, alegria e confiança entraram o coração do deus guerreiro. Seus pés passaram a correr pela antecâmara de Ereshkigal, correndo ele subiu as escadarias que levavam ao trono mais alto do Mundo Subterrâneo.
Como de sempre, silenciosa, magnífica, lá estava sentada Ereshkigal. Ao vê-la novamente, o mundo parou e tudo fez sentido derepente. Surpreso e feliz, Nergal parou, e as palavras como torrente saíram de seus lábios, do seu coração, corpo e mente:
- Eu voltei, adorada, agora para ficar, pois descobri que aqui, contigo é o meu lugar.
Para Ereshkigal, o mundo também parou ao ver Nergal entrar, tudo voltando alegremente ao seu lugar ao ouvir o que ele tinha a lhe dizer ao chegar. Bom humor porém venceu a batalha de emoções que rugia dentro de Ereshkigal: antes de Nergal ter a paz dos braços dela, algo de rendição ele teria com certeza de mostrar!
- Então voltaste para mim, meu deus.... de tua livre e espancada vontade?
Ele já devia saber que Ereshkigal não iria recebê-lo imediatamente de braços abertos. Não sem alguma luta, algum esforço da parte dele. Mas ela realmente valia todas as batalhas. De fato, Ereshkigal era todos os troféus.
- Eu por acaso te disse que não voltaria?
- Não, como também não me disseste que irias partir.... retrucou Ereshkigal.
O tom levemente irritado de Ereshkigal, sem dúvida uma de suas mais deliciosas características, era traído pelo sorriso que ela não tentava mais esconder. Nergal riu também, e não pôde mais resistir. Venceu os passos que faltavam para chegar até ela, mergulhou as mãos nas longas madeixas de ébano e selou-lhe os lábios com um beijo apaixonado.
- Mesmo sabendo o quão impossível, autoritária e inflexível tu és, adorada, sim, eu voltei para ti, desta vez para não mais te deixar. Tens estado por tempo demais sozinha nas Grandes Profundezas, minha querida. Portanto, eu por aqui irei ficando. Contigo no Mundo Subterrâneo, não como espirito cativo, mas como teu consorte, para julgar os casos dos deuses e dos vivos ao teu lado. Mas antes de me aceitares, deixa-me fazer algo que deveria ter feito ao chegar. Não agora, mas da primeira vez que desci até ti.
Nergal foi até os aposentos que havia compartilhado com Ereshkigal, em busca do trono que com suas mãos havia esculpido, o trono de madeira sagrada, e colocou-o ao lado do trono da Grande Rainha do Mundo Subterrâneo. Com a mais perfeita cortesia, ele sorriu para ela, e com um joelho ao solo, pediu-lhe formalmente a mão::
- Tu me aceitas como teu consorte, minha amada e rainha? Para reinar a teu lado, ser teu companheiro, amante e dos amigos, o melhor e mais querido?
- Sabes o que estás pedindo? Perguntou Ereshkigal, com a franqueza e seriedade que a caracterizavam. De todo coração, Nergal, com toda franqueza, podes me dizer que compreendes realmente o que significa o grande passo, a grande escolha que estás ora fazendo?
Nergal prendeu a respiração, pois sabia que Ereshkigal, em sua grande generosidade, estava-lhe oferecendo a liberdade, caso ele assim o quisesse. Mas ele, o invencível deus da guerra, havia-se rendido à deusa das Grandes Profundezas. Em rendição total e absoluta.
- Tu queres a verdade, e somente a verdade mais pura terás de mim. Tu, o teu mundo é a Escolha que eu faço pelo exercício da minha mais alta vontade, do desejo mais profundo da minha alma. Sinto-me pronto para ser o teu parceiro, consorte, amigo e companheiro, pelas regras do teu mundo e de quantos outros julgares necessário. E’ meu desejo ajudar-te a julgar os casos trazidos a ti, para que o equilíbrio e a justiça possam ser restabelecidos em todos os mundos. Esta é a escolha que com toda liberdade faço, seguindo a Mais Elevada Vontade do meu coração, o Desejo da minha alma. Oh, minha rainha, Senhora da Justiça dos Ancestrais, por ti eu desisto do meu lugar entre os deuses das Esferas Superiores. Desisto sem tristezas, desobrigado de laços ou qualquer outro peso, pois desde o Inicio dos Tempos, minha foi a mais severa de todas as obrigações, a mais pesada de todas as cargas, pois a mim coube ensinar à humanidade o amor, a saúde, a riqueza e a paz através dos horrores da perda, dor, pobreza e guerras causadas pela estupidez da própria humanidade. Longa e solitária foi a minha jornada até agora, até te encontrar. Por tudo isto, eu te peço humildemente, minha amada e grande senhora, pelo privilégio de dividir contigo a imensa carga que é julgar os vivos e os mortos para efetuar todas as curas, fechar todas as feridas e restabelecer todos os equilibrios perdidos em todos os mundos!
Em seguida, Nergal, apresentou a Ereshkigal os símbolos que definiam o seu poder nas Esferas Superiores, o cetro com a cabeça de leão e a cimitarra.
- Como prova da sinceridade de minhas palavras, do peso de verdade dos votos que faço a ti, coloco os símbolos do meu poder a teu serviço. Quero agora erguer bandeiras sem matar, ser o vento da mudança que provoca crescimento e desperta em todos a confiança de ousar e agir para somente construir.
A face de Ereshkigal irradiava imensa felicidade ao receber o cetro e a cimitarra de Ningal. Com graça, reverência e gentileza, ela colocou tanto um quanto o outro nos braços do trono de Nergal, antes de voltar-se para ele:
- Os símbolos que colocaste a meu serviço a ti são devolvidos para que os possa usar com equilíbrio quando ao meu lado os casos dos vivos e dos mortos julgar. Nergal, amor do meu coração, companheiro da minha alma solitária, eu te dou as boas-vindas ao meu reino e te recebo com a alegria de mãos se encontrando, com a ternura de amantes se beijando. Por isso, agora eu te pergunto: o que estás esperando? Quero já’ o meu abraço e teu melhor beijo! Agora!
Nergal não precisou de maiores encorajamentos, e com beijo longo e molhado, os votos do deus da Guerra e da rainha das Grandes Profundezas com muito amor foram selados.
Momentos depois, Namtar chegou, e vendo os deuses abraçados, parou, contente, mas também um pouco embaraçado:
- Minha senhora, meu senhor, as minhas mais sinceras desculpas!
Nergal, ainda abraçando Ereshkigal, responder a Namtar:
- Chegaste em boa hora, fiel Namtar. Mais do que depressa, suba até as Alturas Superiores e diga a Anu, o grande deus do Firmamento, que doravante não deixarei mais o Mundo Subterrâneo, não viverei mais nas Esferas Superiores, para ficar para sempre com minha amada Ereshkigal. E que faço esta escolha de minha livre e espontânea vontade, e muito mais. Pois tendo descoberto nela a verdade maravilhosa que sempre soube um dia ter de encontrar, com a grande Ereshkigal e no Mundo Subterrâneo para sempre quero ficar.
- E que todos saibam que o Mundo Subterrâneo também é o Mundo da Redenção, Paixão, Equilíbrio e Paz que Restauram todos os mundos, devolvendo o Brilho Exterior a tudo que foi, é e virá! Completou Ereshkigal.
Namtar retornou às Esferas Superiores para mais uma vez levar uma mensagem para os Deuses dos Mundos de Cima. A voz do fiel vizir e conselheiro de Ereshkigal ecoou alta, clara e alegre em todos os quadrantes dos Mundos das Alturas:
- Grandes Deuses e Senhores das Esferas das Alturas! Mais uma vez venho até vós, a mando de minha rainha, Ereshkigal, e de seu amado consorte, o Deus Nergal. Ele, o Deus da Guerra, agora também meu senhor, escolheu ficar no Mundo Subterrâneo e tornar-se Juiz dos seres que lá chegarem. Como verdadeiro Parceiro e Companheiro da grande deusa Ereshkigal, com ela ele irá compartilhar das responsabilidades de reinar sobre o Mundo Subterrâneo. Neste momento, com grande alegria, eu vos convido para dar saudar a Ereshkigal e Nergal, Soberana e Soberano do Mundo Subterrâneo! Que em todos os mundos e esferas seja sabido que Um Amor Profundo existe e vigora no Mundo das Grandes Profundezas, e que a Justiça Divina prevalece em todas as esferas para fazer brilhar a luz do Espirito, Realidade Sutil que tudo de amor inflama e enche de fulgor!