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Direito alternativo

1. Alternativo com relação a quê?

Talvez possa parecer simplista, para lançar-mo-nos à análise do "Direito alternativo", recorrer a uma interpretação axiológica do adjetivo que, na expressão que caracteriza a doutrina abordada, dá forma à substancia. Vamos, então, ao velho e bom Aurélio à procura da significação de "Alternativo":

Alternativo, adj. Feito com alternação; que vem hora um, hora outro; diz-se das coisas de que se pode escolher a que mais convenha. ¹ (grifo nosso).

A última significação - que destacamos - é a que lançará as bases do tema. Se é dado escolher conforme a conveniência, põe-se a questão dos possíveis objetos de escolha. Em outros termos: com relação a que Direito a doutrina que abordaremos acrescenta - com força ideológica voltada a práxis - o adjetivo "alternativo" ?

Para tentar responser a essa primeira quetão, é indispensável uma preve abordagem do processo de formação dos Estados territoriais europeus, quando o Direito efetiva e definitivamente incorpora a violência legítima - a sanção - da qual o Estado passa a ser o único senhor, enquanto também torna-se único poder legiferante. Em outras palavras, precisamos compreender o processo em que emerge historicamente o Estado moderno, monopolisador da produção jurídica (quando o rei subordina todas as fontes do Dieito à lei, ou seja, tornando o Estado em única fonte desta) e do aparelho coativo (quando o rei institui, apoiado pela burguesia emergente, o exército nacional e transforma os juízes em funcionários da coroa).

Sem tal contextualização, ficaria vazia a abordagem proposta.

1.1 A formação do Estado nacional

Após as invasões bárbaras (séculos III e IV) e o posterior declinio do Império Romano com a consolidação dos reinos bárbaros (séc. V), processo que teve o ápice na derrota do último imperador de Roma, Rômulo Augústulo, frente aos Hérulos, chefiados por Odoacro (476), o poder reorganiza-se na Europa.

Paralelo à requisição pela igreja do papel de herdeira do Império, o sacralização do poder (iniciada com os Francos (Pepino o Breve) e que teva a mais alta expressão na restauração do Império Romano do Ocidente, em favor de Carlos Magno pelo papa Leão III (800), depois da expansão franca que anexou a Saxsônia, a Frisia e a Baviera) foi decisiva para o estabelecimento da relação vassálica e do poder local - também ditado pela necessiade de o imperador fazer-se representar nas diversas regiões do reino - característica da sociedade feudal.

No período medieval os homens não se sentiam ingleses ou espanhóis, russos ou franceses, mas vassalos de um senhor, súditos de um rei, e, em última instância, membros da ordem universal da cristandade. O próprio rei, nos primeiros séculos do feudalismo, era apenas o primus inter pares, governando por escolha e consentimento da nobreza e dela dependendo para fazer a guerra e concluir a paz, assim como para impor ao reino um sistema fiscal e tributário. A formação dos Estados modernos consistiu, fundamentalmente, em que os monarcas da Europa ocidental conseguiram afirmar-se contra o Sacro Império, por um lado, e contra os barões e os grandes senhores do reino, por outro.

A condição essencial para o processo de formação das monarquias nacionais foi a crise do feudalismo, apartir do séc. XI e a consequente emergência do capitalismo, a partir do século seguinte. É no século XII, aliás, que o pretenso universalismo medieval começa a desintegrar-se. Embora o grosso da literatura do período tenha sido escrito em lingua latina, já naquele século apareciam as literaturas nacionais, em vulgar, destruindo a unidade espiritual da Europa e precedendo a destruição política desta unidade pela formação dos Estados nacionais.

De fato, a crise feudal enfraqueceu os senhores, abrindo espaço para a ação política dos reis. O poder do rei se tornou nacional quando se extendeu sobre toda a nação. Esse conjunto nacional formou-se no transcorrer da Idade Média, definindo-se uma unidade lingüistica, religiosa, cultural e com base em um território determinado. Para que o poder real pudesse efetivamente exercer-se sobre toda a nação, era indispensável superar as características da estrutura medieval de poder: o particularismo e o universalismo. O poder particular era o poder local, individual, exercido pelos barões e senhores feudais. O poder universal era representado pelo papado e pelo Sacro Império, baseado em enorme prestígio internacional, isenção de impostos, tribunais próprios e na atribuição do direito de intervir nos assuntos dos reinos.

Por outro lado, o emergência da economia mercantil e o desenvolvimento comercial e urbano também criavam condições favoráveis ao processo de centralização. O surgimento de uma nova classe social, ligada ao comércio internacional - os grandes mercadores das guildas - criava novos interesses econômicos. Sua meta era a unificaçào nacional, ou seja, o uniformização de pedágios, pesos, medidas, moedas, leis e alfândegas, que daria homegeneidade ao mercado nacional - condição indispensável para a conquista do mercado externo. Dessa forma, a centralização do poder na figura do monarca era, para a busguesia ascendente, um meio para atingir a unificação.

Com o apoio inicial da burguesia ligada ao comércio internacional e dos habitantes diretamente submetidos ao rei nos chamados domínios reais, foi possível organizar as forças militares atraves da criação de exércitos mercenários. Com o surgimento da infantaria, que representau a democratização das forças armadas, a incorporação das milícias urbanas completou o quadro da nova realidade militar em oposição ao antigo exército de vassalos.

A força militar permitiu ao rei ampliar sua capacidade tributária, aumentando o número de contribuintes obrigatórios, especialmente camponeses e artesãos, que não tinham os mesmos interesses da burguesia no processo de contralização. O poderio militar possibilitou também a expanção dos domínios reais pela eliminação progressiva do poder de barões e grandes senhores. Nas terras que caíam sob seu domínio, o rei organizava a administração, da qual encarregava funcionários que podiam ser demitidos conforme sua vontade. Estes funcionários cobravam inpostos e distribuíam a justiça com base em códigos escritos, que substituíam as leis costumeiras. Esse procedimento representou um notável avanço na racionalização do Estado, marcando o nascimento da burocracia moderna. No limite deste processo, a corte do rei foi transformada numa corte suprema de justiça da nação.

Necessária fez-se, portanto, esta resumidíssima contextualização para um bom entendimento, nas palavras de Norberto Bobbio, da " (...) conexão entre Direito, entendido como ordenamento normativo coativo e política (...) ".¹ Esta ligação, ilustra o mestre italiano, " (...) torna-se tão estreita, que leva a considerar o Direito como o principal instrumento através do qual as forças políticas, que tem nas mãos o poder dominante em uma determinada sociedade, exercem o próprio domínio (...) ".

Esta conexão, observa Bobbio, foi percebida pelos pensadores políticos que interpretaram e refletiram o nascimento e a afirmação do Estado moderno, de que foram contemporâneos. Desde o secretário florentino, através de Hobbes, Locke, Rousseau, Kant, Hegel, Marx, até Weber e Kelsen, a percepção da filosofia política faz " (...) aparecer a estrutura jurídica e o poder político, o ordenamento e a força coativa, o momento da organização do poder coativo e a importância do poder, que se serve da organização da força para alcançar os próprios fins, enfim, Direito e Estado nas acepções mais comuns dos termos como duas faces da mesma medalha."

Portanto, se vimos que é imprescindível, para entender a que Direito estabelecido a doutrina que abordaremos propõe utilizar e transformar de modo älternativo", recorrer a uma contextulização histórica, esta por sua vez nos remete à indispensável luz da teoria política, que brevemente iremos tanger a seguir.

1.2 Estado e Direito na teoria política moderna

Já no século XVI, percebendo a nova realidade política que florescia na Europa - o Estado burguês, embora ainda em sua forma absolutista -, Nicolau Maquiavel, ao fundar a moderna ciência política e inaugurar a acepção de "estado" para caracterizar a estrutura histórica emergente (Estado Moderno), descreveu, em poucas palavras, o objeto que chegaria até Weber e Kelsen:

"Não podem existir boas eis onde não existem boas armas, e onde existem boas armas é preciso que existam boas leis".¹

Embora teórico do Estado absoluto, Maquiavel, nos "Discursos" (1513-1517) - obra menos relevada pelo alcance que lhe deu a fama mas não menos relevante em ciência política que a celebridade "O Príncipe" (1513-1515) - , enfatiza o bem comum em sentido teleológico, em concordância, não obstante o amoralismo, com Aristóteles e Tomás de Aquino; observa que os reis da França, à sua época, já governavam conforme leis destinadas à segurança de todo o povo. Este, conforme Nicolò, ao perceber que "ninguém rompe tais leis, começará em pouco tempo a viver seguro e contente".

No restro do secretário florentino, Hobbes reproduz a conexão entre o ordenamento normativo coativo (Direito) e o aparelho de coação que lhe dá vida (Estado). A passagem do estado de natureza ao estado civil é a passagem do Estado não-jurídico (ou não-Estado) ao Estado jurídico, onde os direitos subjetivos deixam de ser sustentados pela força dos indivíduos e estes renunciam às próprias forças para atribuí-las a um só soberano (Estado) que, uma vez constituído, torna-se a única fonte do Direito, como o único poder legitimado a executá-lo. Segundo Hobbes, uma das principais prerrogativas do soberano é " (...) estabelecer e promulgar normas, quer dizer, critérios de medida gerais, de tal modo que cada pessoa saiba o que deve entender como próprio e como alheio, como justo e como injusto, como honesto e desonesto, bom e mau (...) ".

Em Locke, a transição da sociedade natural à sociedade civil representa a instituição de um poder "supra partes", capaz de dirimir as controvérsias com base em leis que devem garantir os "direitos naturais". Além de identificar o Direito como o Direito estatal, Locke identifica este com o Direito legislativo. De fato, sobre o poder legislativo funda-se o Estado lockeano, conforme fins estabelecidos:

"(...) a autoridade legislativa ou suprema não pode dar-se o poder de governar com decretos contemporâneos e arbitrários, mas é obrigada a cumprir a justiça e a decidir sobre os direitos dos súditos, com leis promulgadas e fixas e juízes revestidos de autoridade e conhecidos".

Para Rousseau, do mesmo modo, a sociedade política que se origina do contrato social (Estado) exprie sua vontade através da lei, forma mais alta do Direito.

Também Kant, nestas pegadas, segue a tendência a integrar o Direito - o Estado, a considerar o Direito perfeito - aquele protegido pela coação (lei) - como o diferencial entre Estado e não-Estado.

Ainda assim, Hegel - embora sua filosofia jurídica, de maior complexidade, invada com amplitude os domínios da moral - , temos que o DIreito se realiza plenamente apenas no Estado. No pensamento hegeliano, a lei é a expressão maior da racionalidade estatal, no sentido de que o Estado exprime o interesse universal e a consciência do povo organizado.

Marx, conquanto tenha inserido o componente econômico no debate - a infra-estrutura das relações de produção -, segue a trilha da identificação de Estado e Direito. Para ele, pertencem ambos à "superestrutura jurídica e política" que assegura a manutenção do "status quo" no âmbito infra-estrutural das relações materiais.

Para Weber, o Estado Moderno é aquele em que a legitimidade do poder depende de sua legalidade, ou seja, do fato de que o poder se apresenta como derivado de um ordenamento normativo constituído e aceito e se exerce segundo normas preestabelecidas (leis), que têm a execução assegurada pela sanção.

Também assim, para Kelsen, o Estado inexiste fora do ordenamento jurídico. A partir do momento em que o Estado é a organização da força monopolizada e esta organização exprime-se através de um ordenamento normativo coativo- o Direito -, este e aquele são unum et idem.

Weber e Kelsen interpretam em substância o mesmo fenômeno da convergência do Estado e do Direito, embora sob dois prismas diferentes. Conforme esclarece Norberto Bobbio:

"Weber, a partir de um ponto de vista da juridificação do Estado, ou seja, do poder estatal, que se racionaliza através de uma complexa estrutura normativa articulada e hierarquizada; Kelsen, a partir da estatização do Direito, ou seja, de sistema normativo que se realiza através do exercício do máximo poder, que é o poder que se utiliza da força monopolizada. Weber considera o Direito ou estrutura normativa em função do poder; Kelsen considera o poder em função do Direito. A racionalização do poder através do Direito é a outra face da realização do Direito através do poder. O Direito é a política vista através de seu porcesso de racionalização, assim como o poder é o Direito visto em seu processo de realização. Mas como não pode haver poder sem Direito, para que o poder do Estado Moderno seja legal, assim também não pode haver Direito sem poder, na medida em que o Direito é ordenamento que se realiza apenas através da força."

Assim, modestamente cumprida a tarefa de contextualizar o surgimento do Estado Moderno enquanto único detentor da produção do ordenamento normativo coativo e dos meios legítimos de coação - a convergência de Estado e Direito, portanto - e o pensamento político daí decorrente, passaremos, antes de finalmente atermo-nos ao tema proposto - o "Direito alternativo" -, a um breve comentário sobre a importância, para a manutenção do poder pela classe burguesa, de que ela detenha o aparato jurídico-estatal.

Estado e Direito: o instrumental burguês de manutenção das relações materiais e de dominação sobre as classes subalternas.

Como pudemos observar, é graças ao apoio da burguesia ascendente e contemplando os interesses desta que constituiu-se o Estado moderno, monopolizador da violência legítima e da produção jurídica em determinada base territorial e sobre povos mais ou menos homogeneizados quanto ao idioma, aos costumes e à religião - daí também ser freqüênte a utilização das expressões " Estado- nação", "Estado nacional" ou "Estado territorial" como sinônimas àquela forma de organização política que desenha-se na Europa a partir do século XIII.

Mas se por um lado, a associação da burguesia a um rei foi necessária e favorecida pelas condições históricas para a centralização do poder e, através desta, para a unificação nacional - fim último da classe ascendente para que afinal se consolidasse como nova detentora do poder econômico - , por outro lado, a personificação histórica deste poder na figura do monarca acaba mais tarde por se tornar entrave à classe capitalista emergente.

Na Inglaterra, embora desde o século XIII - quando João Sem-Terra foi forçado a chancelar a Magna Carta (1215) e a instituir o Parlamento - , as novas classes já imponham limites ao rei e, através do legislativo, requisitem o poder de direito, o comportamento absolutista dos soberanos, até o século XVII, vai de encontro aos interesses das classes emergentes. Agora, porém, a burguesia e a aristocracia rural buscam tomar do soberano o poder de fato, vez que o absolutismo choca-se com os interesses destas classes. Explica-se. Grande parte dos recursos do Estado eram provenientes da venda de monopólios externos e internos. Esses monopólios sobre o comércio exterior, o sal, o sabão, o alúmen, o arenque e a cerveja beneficiavam um pequeno grupo de capitalistas, a grande burguesia financeira. Prejudicavam, porém, a burguesia comercial, que não tinha liberdade para seu comércio, e os artesãos de modo geral, porque pagavam mais caro por gêneros básicos de alimentação e produtos indispensáveis a sua atividade. Outro problema econômico grave era a questão agrária. A elevação dos preços dos produtos agrícolas, a expansão do consumo de alimentos e matérias primas como a lã valorizaram as terras. Tal fato despertou a cobiça tanto dos grandes quanto dos pequenos produtores rurais, que tentavam ampliar suas posses através dos cercamentos (trnasformação de terras coletivas, devolutas, ou das quais se tinha posse precária, em propriedade privada). Isto significava, evidentemente, expulsar da terra um grande número de posseiros, criando-se grandes propriedades nas quais se faziam investimentos de capital para aumentar a produção. O Estado absolutista, porém, tentendo preservar o equilíbrio social, indispensável a sua existência, impedia o avanço dos cercamentos, colocando contra si grande parcela da população rural. Associavam-se, assim, dois fatores sociais poderosos contra o Estado absolutista inglês: a burguesia mercantil e a nobresa progressista rural, camadas sociais que poderiam arrastar consigo setores intermediários da população urbana e os camponeses não proprietários, que desejavam ampliar suas posses e consolidar a propriedade sobre elas. Foi neste quadro que a oposição entre a monarqia absolutista e o Parlemento na Inglaterra atingiu seu ápice, culminando na Revolução Puritana (1640) - de caráter essencialmente político, não obstante as feições religiosas - e na Revolução Gloriosa (1688). Após esta, o poder real foi bastante limitado com a declaração dos direitos (1689), segundo o qual o rei não poderia cancelar as leis parlamentares e o parlemento poderia até mesmo dar o trono a quem lhe aprovesse, após a morte do soberano; as reuniões parlamentares e as eleições tornaram-se regulares - pelo menos trienais - , inspetores passaram a controlar as contas reais e o orçamento anual a ser votado pelo Parlamento. No limite deste processo, instituiu-se o mecanismo do gabinete (parlamentarismo) - vigente até nossos dias - em que os ministros respondem frente ao legislativo e que representou a extrema apreensão do poder de fato pela classe burguesa naquele país.

Enquanto a Inglaterra caminhou, desde o século XIII, para a monarquia constitucional, na França, inversamente, a monarquia absolutista teve pleno vigor até fins do século XVIII, quando aquele país ainda era caracterizado por uma economia predominantemente agrária. A introdução de novas técnicas de cultivo e de novos produtos permitiu a melhoria da alimentação e, com isso, o aumento demográfico. A industrialização dos grandes centros urbanos como Paris, embora ainda incipiente, já bastava para reduzir o preço de alguns produtos, estimulando o consumo. O desenvolvimento econômico fortaleceu a burguesia, que passou a aspirar o poder político, assim como a discutir os privilégios da nobreza. Os camponeses possuidores de terra queriam, por sua vez, libertar-se das obrigações feudais que ainda deviam aos senhores. A sociedade de estamentos - resquício medieval - já anunciava a divisão de classes: o clero, ou primeiro estado; a nobreza, ou segundo estado e o terceiro estado, representando cerca de 98% da população, constituído pela alta burguesia (banqueiros, financistas e grandes empresários), pela média burguesia (profissionais liberais), pela pequena burguesia (artesãos e lojistas) e pelo povo, camada heterogênea de artesãos, aprendizes e proletários. As classes populares rurais, destacando-se os servos ainda em condição feudal e os camponeses livres e semi-livres, completavam o terceiro estado, sobreo qual pesava o ônus dos impostos e das contribuições para o rei, para o clero e a nobreza. Estas últimas ordens não pagavam impostos e usufruíam as vantagens concedidas pela monarquia sob a forma de pensões e cargos públicos, privilégios que o terceiro estado pretendia abolir através da instauração da igualdade civil. De resto, o absolutismo monárquico e os abusos dele decorrentes acresciam-se a tal cenário. O rei monopolizava a admnistração, controlava os tribunais e condenava à famigerada Bastilha - depósito de armas e prisão de Estado, ícone do absolutismo - sem julgamento. Assim, não foi difícil à burguesia francesa, já senhora do poder econômico na nova ordem capitalista, aparecer como revolucionária e cooptar todas as demais classes do terceiro estado no objetivo comum de abolir a monarquia absolutista e os resquícios feudais de obrigações e privilégios dela decorrentes.

O fato é que, como vimos, o Estado moderno nasce num contexto em que o incipiente capitalismo e a nova classe social a ele relacionada são condições indispensáveis à sua instituição, como de outro lado o Estado moderno é indispensável à expanção da nova ordem econômica, antes, da classe emergente - e desta forma atende aos interesses burgueses até dado momento histórico da expansão capitalista. Pode-se dizer que o Estado servia à burguesia, mas não era burguês. A partir de 1689, na Inglaterra, e de um século depois na França, a busguesia efetivamente se apropria do Estado.

Precisamente aqui retomamos o fio histórico na formação do Estado moderno enquanto monopolizador da violência legítima e da produção jurídica - ou do ordenamento normativo coativo e do aparelho de coação capaz de garanti-lo, que foi percebido por todos os pensadores políticos que acompanharam o fenômeno jurídico-estatal desde o século XVI. Pois bem. A forma e a finalidade do Estado não muda em essência após as revoluções burguesas. Ocorre apenas a reorientação da estrutura estatal em direção - mais que antes - aos interesses da burguesia que agora a detém. Como bem observa o cientista Pierangelo Schiera:

"A unicidade do comando, o seu caráter de última decisão, a sua possibilidade de atuação através de um sólido aparato profissional de órgãos executivos e coativos: tudo isto não muda, como não muda o objetivo de fundo a que tudo isto era dirigido, a instauração e a manutenção da ordem. (...) a burguesia, em virtude da estrutura não mais vertical, mas horizontal, da nova ordem social, pode exercer, em primeira pessoa, o poder de Estado, o qual achou, por sua vez, a própria encarnação no ordenamento jurídico e a própria justificaçào material na ordem natural da economia. O Estado condinuou a existir em sua dimensão histórica; no plano institucional bem pouco mudou na passagem do antigo para o novo regime; pelo contrário, os traços essenciais do Estado moderno foram ulteriormente aperfeiçoados e reforçados ".¹

E é o binômio força/lei que recebe o maior reforço e aperfeiçoamento no Estado burguês. E não poderia ser diferente, como observa Roberto A. R. de Aguiar:

"O primeiro fator que sobressai como determinante do poder é a força. Quem detém a força detém a possibilidade de represália no caso de desobediência. Quem detém a força pode sancionar, punir, ameaçar e até mesmo matar, individual ou coletivamente".

Em outros termos também o expressa Nicos Poulantzas em brilhante artigo:

"A violência física monopolizada pelo Estado sustenta permanentemente as técnicas do poder e os mecanismos do consentimento, está inscrita na trama dos dispositivos disciplinares e ideológicos, e molda a materialidade do corpo social sobre o qual age o domínio, mesmo quando essa violência não se exerce diretamente. (...) Trata-se de apreender a organização material do poder como relação de classe em que a violência física organizada é a condição de existência e garantia de reprodução. A colocação das técnicas do poder capitalista, a constituição dos dispositivos disciplinares (o grande 'internamento'), a emergência das instituições ideológico-culturais (do Parlamento ao sufrágio universal e à escola) pressupõem a monopolização da violência pelo Estado, recoberta precisamente pelo deslocamento da legitimidade para a legalidade e pelo reino da lei. (...) o exército nacional é cossubstancial ao Parlamento e à escola capitalista. Essa cossubstancialidade repousa na materialidade institucional comum decorrente da divisão social do trabalho que seus aparelhos encarnam e também no fato de que o exército nacional justamente como peça do monopólio pelo Estado da violência física legítima, induz as formas de existência e de funcionamento das instituições - parlamento, escola - nas quais a violência não precisa se atualizar como tal. A existência regular, a própria constituição do Parlamento como editor de leis é impensável sem a instituição do exército nacional moderno".

Graças à força do aparelho coativo, portanto, o Estado burguês torna-se o Estado da lei burguesa. É nessa dimensão que Roberto A. R. de Aguiar observa com precisão:

"Falar de direito e ideologia é tautológico. O direito é a ideologia que sanciona, é a linguagem normativa que instrumentaliza a ideologia do legislador ou a amolda às pressões contrárias, a fim de que sobreviva. (...) O direito é a expressão mais alta da tradução ideológica do poder. Ele estabelece os princípios, delimita as condutas, defende atitudes e 'ofende' a outras por meio da sanção. O direito é fruto de um 'regime' político, de um 'governo', que não são formados por seres abstratos e separados do mundo, mas seres que pertencem a grupos e classes sociais e que pensam em conformidade com esses grupos, em virtude deles terem se instituído a partir de posições que ocupam na produtividade material. Esse 'regime' nada mais é que o poder localizado, cuja forma mais requintada, como já vimos, se mostra por intermédio do Estado. Assim o grupo ou grupos dirigem um dado 'regime político', e este regime nada mais é do que uma explicitação situada do poder; este poder, modernamente, se apresenta por intermédio do Estado e o Estado para se manter enquanto aparelho de controle de um povo ou povos, detido pelos citados grupos, edita normas que traduzem a ideologia do poder tornando-as ativas e seletivas, por meio de um dever-ser sancionador que regula, controla e promove condutas".

Outra vez as letras nacionais encontram-se com Poulantzas:

"A lei é parte integrante da ordem repressiva e da organização da violência exercida por todo Estado. O Estado edita a regra, pronuncia a lei, e por aí instaura um primeiro campo de injunções, de interditos, de censura, assim criando o terreno para a aplicação e o objeto da violência. E mais, a lei organiza as leis de funcionamento da repressão física, designa e graua as modalidades, enquadra os dispositivos que a exercem. A lei é, nesse sentido, o código da violência pública organizada. (...) A monopolização pelo Estado da violência legítima permanece o elemento determinate do poder, mesmo quando essa violência não é exercida direta e abertamente. Essa monopolização está na base das novas formas de luta sob o capitalsmo, às quais corresponde o papel dos dispositivos de organização do consentimento, pois, poder e lutas se atraem e se condicionam mutuamente. A concentração da força armada pelo Estado, o desarmamento e a desmilitarização dos setores privados - condição para estabelecimento da exploração capitalista - contribuem para deslocar a luta das classes de uma guerra civil permanente de conflitos armados periódicos e regulares, para as novas formas de organização política e sindical das massas populares, contra as quais a violência física aberta é, sabe-se, de eficiência relativa. (...) A lei e o sistema jurídico capitalista apresentam igualmente, porém, paricularidades no seu aspecto de materialização da ideologia dominante. A legitimidade desloca-se em direção à legalidade, o que a distingue da legalidade organizada com base no sagrado. A lei, já encarnação do povo-nação, torna-se a categoria fundamental da soberania do Estado: a ideologia jurídico-política instala-se em região dominante da ideologia e suplanta a ideologia religiosa. Se essas modificações englobam a monopolização da força legíima por parte do Estado, tem contudo raízes bem mais profundas. A função de legitimidade desloca-se em direção à lei, instância impessoal e abstrata, ao mesmo tempo em que, no seio das relações de produção, os agentes 'desatam' e se liberam de seus elos territoriais-pessoais. Tudo se passa como se essa lei, graças a sua abstração, formalidade e generalidade, se tornasse aqui o dispositivo mais apto a preencher a função mor de toda ideologia dominante: a de cimentar a unidade de formação social (sob a égide da classe dominante). "

Na mesma perspectiva podemos voltar sem choque ao doutor paulista:

"O poder não teria nenhuma eficácia se o seu 'dever-ser' social traduzido pela norma jurídica não fosse garantido pelas sanções que, desse modo, também garantem a própria continuidade político-econômica dos grupos dominantes. Essa é a razão por que o direito é essencialmente conservador. O direito significa ordem, ou seja, organização de uma sociedade segundo valores ou, melhor dizendo, segundo a ideologia dominante. O direito significa também resolução de problemas. O corolário da ordem é o estabelecimento de critérios para solver os conflitos que aparecem no dia-a-dia. O direito há de encontrar soluções viáveis, possíveis e aceitas e, ao mesmo tempo, preservar os interesses e a posição dos grupos no comando. Por isso, o direito é complexo, pois complexa é sua missão de até ser equânime no particular, sem ser isonômico no geral, de perseguir um ideal de justiça que não é o da maioria de seus destinatários e fazê-lo aceito, de anestesiar os conflitos, ritualizando-os por via do jogo judiciário, um complexo quebra-cabeças cheio de armadilhas formais, onde a argúcia e o conhecimento das regras são os fatores determinantes. Toda essa complexidade para ser eficaz em sua aplicabilidade e para garantir o poder legiferante, lastreia-se na sanção que, para Kelsen, se configuraria como a norma primária do direito. (...) Assim, podemos dizer que a norma jurídica sanciona o agir por meio da sanção, o ser por meio do teor, e a sanção explícita garante a eficácia da aplicabilidade normativa, garantindo também a sobrevivência do poder legiferante. (...) O direito é a linguagem sancionadora do poder, daí a importância de se observar a dimensão explícita da sanção, que, controla o agir e o fazer humanos que interessam à ordem estabelecida e a dimensão implícita da sanção que privilegia ou estigmatiza os seres das pessoas".

Ambos os autores, na perspectiva do materialismo histórico, observam também as pequenas concessões que a classe dominante faz à classe subalterna, sempre à custa de conflitos no âmbito do antagonismo capital/trabalho, e que incorpora ao Direito, embora tal não signifique necessariamente sua imediata aplicabilidade.

Em Poulantzas temos que:

"Muitas das ações do Estado que ultrapassam o seu papel repressivo e ideológico, suas intervenções economicas e sobretudo os compromissos materiais impostos pelas classes dominadas às classes dominantes, uma das razões do consentimento, vêm inscrever-se no corpo da lei, fazendo parte de sua estrutura interna. A lei apenas engana ou encobre, reprime, obrigando a fazer ou proibindo. Também organiza e sanciona direitos reais das classes dominadas (claro que investidos na ideologia dominante e que estão longe de corrersponder em sua aplicação à sua forma jurídica) e comporta os compromissos materiais impostos pelas lutas populares às classes dominantes ".

Aguiar é uníssono:

"A inutabilidade ou permanência jurídica não pode ser encarada estaticamente, pois ela germina na fluidez das relações sociais, das contradições e dos conflitos. Dentro deste quadro móvel e instável, é preciso que os fundamentos normativos permaneçam e que o revestimento superficial se modifique a fim de que o poder legiferante não seja derrubado. Assim, como já foi dito, pode-se perder os anéis mas nunca os dedos ".

Essas conceções, sob a forma de direitos sociais principalmente, conduziram desde a Alemanha de Bismark - entre 1883 e 1889 a concretização dos primeiros programas de seguro obrigatório contra a doença, a velhice e a invalidez - até o estabelecimento do Estado como Estado social nas economias centrais - o Welfare State - , que instituiu-se principalmente como reação burguesa no sentido de contrastar o avanço da ideologia revolucionária socialista. Abstraindo o mérito, é interessante observar que, tal como o modelo "socialista" implantado a partir de 1917 e recentemente desintegrado, o Estado do bem estar social também perde fôlego no modelo economico neo-liberal que parece hegemônico após a queda do muro de Berlin. Para desespero das classes trabalhadores e acirramento do embate entre estas e o capital.

Tornando ao tema, vale observar que é em grande parte sobre a efetivação concreta das conquistas incorporadas ao Direito positivo, através de lutas das classes oprimidas, que se debruçam os doutrinadores italianos fundadores da escola que preconiza o uso alternativo do Direito, como veremos posteriormente.

E se pretendemos analizar a doutrina do "Direito alternativo" e estando esta inscrita na esfera da praxis jurídica quotidiana importa-nos ainda observar - já a partir das premissas demosntradas do Estado e do Direito como instrumental de dominação de classe - a parcialidade de fato , em sentido classista , do aparelho de distribuição da "justiça", inobstante sua aparente e instituída 'imparcialidade e independência'. Neste ponto, focalizando o mais importante funcionário na estrutura estatal destinada a administrar o Direito, Roberto de Aguiar ilustra:

"É aí que aparece o juiz enquanto figura neutra e distante, que desinteressadamente resolverá o conflito. Efetivamente o juiz é parte desinteressada se o encararmos sob o ponto de vista estritamente pessoal. Mas os parâmetros de sua função obrigam-no a se deter em aplicar o ordenamento posto, a norma eficaz, o que delimita e circunscreve sua função, a de aplicar a ideologia vigente, no máximo, reinterpretando-a e atualizando-a".

Poulantzas, aqui, vai mais longe na análise:

"A lei e o regulamento estão na base do recrutamento dos agentes do Estado (concursos e exames impessoais), do funcionamento do texto escrito e da dogmática do discurso interno ao Estado. (...) A lei moderna, realiza a relação capitlista do poder e do saber, condensada no trabalho intelectual capitalista: nenhum saber nem verdade nos indivíduos-sujeitos fora da lei. A lei torna-se a encarnação da Razão: é nas formas do Direito e da ideologia jurídica que se conduz a luta contra a Religião, e nas categorias jurídicas é que se pensam as ciências físicas da Idade da Luz. A lei abstrata, formal, universal, é a verdade dos sujeitos, é o saber (a serviço do capital) que constitui os sujeitos jurídico-políticos e que instaura a diferença entre o privado e o público. A lei capitalista traduz assim o despojamento total dos agentes da produção de seu 'poder intelectual' em proveito das classes dominantes e de seu Estado. Aliás, que tal aconteça, se pode igualmente ver na relação da lei e da sistematização jurídica com a especialização dos aparelhos de Estado, relação que se manifesta na emergência do corpo de juristas especializados. Quando se trata de entender esse corpo em amplo sentido, vê-se que provavelmente é ele que melhor representa, como rede 'separada' da sociedade, o trabalho intelectual incorporado no Estado. Todo agente do Estado em amplo sentido, parlamentar, político, policial, oficial, juiz, advogado, funcionário, assistente social, etc., é um intelectual na medida em que é um homem da lei, que legisla, que conhece a lei e o regulamento, que concretiza-os, que aplica-os. Ninguém é considerado ignorante da lei, máxima fundamental de um sistema jurídico moderno onde ninguém, salvo os representantes do Estado, pode conhecê-la. Este conhecimento requisitado a todo cidadão não é objeto de uma disciplina particular na escola, como se, ao se pretender exigir que ele conheça a lei, tudo se fizesse para que ele a ignore. Esta máxima expressa assim a dependência-subordnação frente aos funcionários do Estado, ou seja, os fazedores, os guardiães e os aplicadores da lei, das massas populares cuja ignorância (o segredo) da lei é uma característica desta lei e da própria linguagem jurídica. A lei moderna é um segredo de Estado, fundadora de um saber açambarcado pela razão de Estado".

No mesmo sentido, e indo às últimas consequências, também teorizou Miliband (l969):

"(...) os juízes das cortes supremas (e, neste sentido também os das cortes inferiores) absolutamente não são, nem podem ser, independentes em relaçào a inúneras influências, principalmente da origem de classe, educação, situação de classe e tendência profissional, que contribuem tanta para a formação de sua concepção do mundo como no caso dos outros indivíduos. A esse respeito, já observamos que as elites judiciárias, como as outras elites do sistema estatal, são recrutadas principalmente dos escalões médios e altos da sociedade (...) os juízes dos países capitalistas avançados são homens de mentalidade conservadora em relação a todos os grandes problemas economicos, sociais e políticos de sua sociedade. Mas ainda, os governos a quem compete geralmente nomear e promover os juízes, provavelmente favorecerão aqueles homens que possuam justamente tais mentalidades conservadoras. (...) A razão pela qual tais posições ideológicas são importante é óbvio - elas afetam enormemente a maneira pela qual a funçãp judicial é desempenhada. Os juízes, e isso geralmente é aceito, não são 'máquinas de vender a lei', ou prisioneiros indefesos de uma estrutura legal ou os meros expoentes da lei, como eles consideram. Dentro do sistema legal de todos aqueles países há lugar, inevitavelmente, para o arbítrio judicial na aplicação da lei e para a criatividade judicial no exercício efetivo da lei. (...) Ao interpretar e executar a lei, os juízes não podem deixar de ser profundamente afetados por sua concepção do mundo, a qual, por sua vez, determina a sua atitude em face dos conflitos que ocorrem dentro dele. (...) Em suma, o judiciário não tem estado 'acima' dos conflitos da sociedade capitalista mais do que qualquer outra parte do sistema estatal. Os juízes tem-se envolvido profundamente em tais conflitos e de todas as classes; é certamente a classe dominante aquela que tem menos a reclamar da natureza e da direção de tal envolvimento."

Assim, para agora passar ao tema propriamente dito - o "Direito alternativo" - esperamos bem ter demonstrado que o Direito, como está posto, é a outra face do Estado - ambos convergindo em instrumental de manutenção das relações materiais e de dominação da classe exploradora sobre a classe explorada.

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