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A MÚSICA NA VIDA HUMANA

A vida é som. Continuamente estamos cercados de sons e ruídos oriundos da natureza e das várias formas de vida que ela produz. O homem fala e canta há incalculáveis milhares de anos e, graças ao seu ouvido maravilhosamente construído que se parece a uma harpa com infinidade de cordas, percebe sons e ruídos, embora apenas uma parte insignificante da imensidão de tudo quanto soa.

Todas as crianças, sem exceção, nascem com capacidade musical, voz e ouvido: crianças da cidade, do interior, das zonas frias, dos trópicos, das montanhas, das planícies, brancas, pardas, pretas, amarelas, vermelhas. A própria natureza é que nos dá a música; o que dela fazemos varia, conforme o temperamento, a educação, o povo, a raça e a época.

A natureza está cheia de sons, de música: há milhões de anos, antes que houvesse ouvido humano. Para captá-la, borbulhavam as águas, ribombavam os trovões, sussurravam as folhas ao vento. Quem sabe quanto. outros sons se não propagaram. Talvez cantassem os raios do sol nas montanhas que se aqueciam todas as manhãs, como ainda hoje cantam misteriosamente nas colunas egípcias de Memnon; durante tempos sem fim deve Ter ressoado o órgão natural da gruta de Fíngal, muito antes que, os celtas lhe chamassem "llaimh bin", gruta da música, e muito antes, ainda, que um compositor romântico, Mendelssohn, transferisse aqueles sons naturais para a moderna orquestra. E o estranho "ouvido de Dionísio", da Sicília, aumentou, com certeza, todos os sons que o penetravam muito, muito antes que um ser humano lá se achasse para comprovar o milagre. A terra a abrir-se na mocidade, as fontes a jorrar, os vulcões e as montanhas a explidor, as águas do dilúvio a suvbir, tudo deve ter constituído gigantesca sinfonia que ninguém nos descreveu.

O homem nasceu num mundo repleto de sons. O trovão, amedrontando-o, tornou-se símbolo dos poderes celestiais. No ulular dos ventos percebia ele a voz dos demónios. Os habitantes do litoral conheciam o mau ou bom humor dos deuses pelo branir das águas. Os ecos eram oráculos e as vozes dos animais, revelações. Religião e música mantiveram-se inseparavelmente ligadas nos antigos tempos da humanidade.

Grande foi sempre a influencia da música sobre a mente humana. O homem primitivo dispões apenas de poucas palavras. Quase somente o que ele vê é que tem nome, Para exprimir o júbilo, a tristeza, o amor, os instintos belicosos, a crença nos poderes supremos e a vontade de dançar. Para ele é parte da vida, a música, desde a canção do berço até a canção de morte desde a dança ritual até a cura dos doentes pela melodia e pelo ritmo.

O efeito da música sobre o homem diminui no decorrer dos milênios; apesar disso, podem ser encontrados nos tempos histricos e até nos presentes interessantes exemplos do seu poder. Davi toca harpa para agugentar os maus pensamentos do Rei Saul; Farinelli, com o auxílio da música, cura a terrível melancolia de Filipe V. Timóteo provoca, por meio de certa melodia, a fúria de alexandre, o Grande, e acalma-o por meio de outra. Os sacerdotes celtas educam o povo com a música; somente eles coseguem abrandar os costumes selvagens. Diz-se que Terpandro, tocando flauta, abafou a revolta dos lacedemônios. Santo Agiostnho conta que um pastor foi, em virtude das suas melodias eleito imperador. E a história do caçador de ratos de Hameln é um exemplo conhecidíssimo do efeito da úsica sobre o homem e o o animal. Na literatura moderna, deparam-se nas numerosas obras de psicologia profunda em que as mais fortes excitações sentimentais são provocadas pela influência da música. Com exceção de "Werther", nenhuma outra obra de arte originou semelhante onda de melancolia e suicídio como o "Tristão", de Wagner.

A música age sobre o individual e a massa; encontra-se não somente na história das revoluções senão também nas psicoses de guerra. A música é, nas mãos dos homens, um feitiço; o sue efeito se estende desde o despertar dos mais baixos instintos, desde a concentração devotada até a perda da consciência que parece embriaguez, desde a veneração religiosa até a mais brutal sensualidade.

Pelo pouco que dissemos, já se depreende que a música tem inúmeras facetas. Uma canção de dança moderna difere certamente de um coral de monges na solidão de um mosteiro; difere a canção de berço da marcha que deve estimular os soldados ao ataque contra o inimigo; difere a canção de amor, numa noite azul de verão, da toada ritmica que o alto-falante difunde numa fábrica moderna para aumentara produção.

A variedade da m;usica é ilimitada. Que distância entre a melodia tritônica, sempre repetida, do indiano, e a sinfonia de um grande mestre, entre as danças sagradas do longínquo Oriente e a música européia de ópera, entre o coral gregoriano e o jazz! E, não obstante, tudo isso usamos a mesma palavra: música.

Maiores ainda se tornam as diferenças se seguirmos a m;usica no sue percurso de milhares de anos, o que será a razão deste livro: melodias sagradas dos egípcios, teatro grego, coros antigos, canções de guildas e artesãos da Idade Média e o grande despertar artístico entre Palestrina e Haydn, entre Bach e Chopin, entre Beethoven e Stravinsky, entre Mozart e Dubussy...

A vida é som, dissemos. A vida é movimento, e o som se origina do movimento. A Acústica, é verdade, discerne fundamentalmente duas classes de sons: os sons propriamente ditos e os ruídos, conforme forem as vibrações uniformes, ou não . A música, segundo a antiga teoria, deve ocupar-se apenas dos primeiros. Mas não é tão fácil traçar claramente o limite. Muitos são os instrumentos que apenas produzem ruídos, e não sons, e que ocupam lugar importante na moderna orquestra: tambor, triângulo, pratos, tatãs, castanholas, tamborins! E quem já ouviu uma orquestra malaia de gongos, sem dúvida sentirá a fantástica harmonia desses instrumentos como forte impressão musical, apesar de a física afirmar diferentemente. Veremos mais tarde como, no nosso tempo, sofre violentos ataques o sistema de sons que há séculos constitui a base da música ocidental. Muitos desses ataques visam ao verdadeiro onto fraco, o de nossos sistema, desenvolvido da série de tons superiores, Ter-se tornado pelo tempero, mais simples, mas matemática e fisicamente tão impuro, que a ligação entre ciência e música não passa de simples ficção.

Não discutiremos aqui teoria nem ciência. Sejam os números de vibrações puros ou falsos, o dó sustenido igual ou não ao ré bemol, o semitom a menor unidade ou não, subtônica uma imposição, o sistema dodecafônico um capricho, o que nos interessa apenas sào as obras que o sistema produziu, é o desenvolvimento da música durante milhares de anos de história humana, desde as primeiras expressões de vida, desde o elemento instintivo até a obra de arte mais elevada e nobre da humanidade. Será um ciclo? Não, uma série de grandes ciclos misteriosos, um eterno nascer, desaparecer e renascer um caminho misterioso pela vida e pela morte através de países e continentes, culturas e épocas, de tudo quanto soa ao redor de nós, imperscrutavelmente e de milhões de modos, só uma pequena parte é que nos penetra a consciência, pelos ouvidos e pelo cérebro, Uma parte ainda menor nos penetra o inteiro...

Que é a música? Quanto eu era jovem, um meu aluno surpreendeu-me com erra pergunta. Respondi-lhe:

- A Música é um fenômeno acústico para o prosaico; um problema de melodia, harmonia e ritmo para o teórico; e o desdobrar das asas da alma, o despertar e a realização de todos os sonhos e anseios de quem verdadeiramente a ama

Ainda hoje assim penso.


Fonte: Pahlen, Kurt – A História Universal da Música