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A Desinstitucionalização e as Alternativas Habitacionais ao Dispor de Indivíduos com Perturbações Mentais: Um Novo Modelo Habitacional - A Habitação Apoiada

Susana Maria & Fernando Sousa (2000)  Análise Psicológica, 18(2), 181-189. (ISSN 0870-8231)

Resumo - Abstract  - Introdução - O Continuum Residencial - Situação actual - Conclusões

Imaginons un homme à qui, en même temps que les personnes qu’il aime, on ôterait sa maison, ses habitudes, tout enfin, littéralement tout ce qu’il possède: il deviendra un homme vide, réduit à la souffrance et au besoin, oublieux de toute dignité et discernement, car il arrive facilement à celui qui a tout perdu, de se perdre lui-même.

Primo Levi

RESUMO

Desde o início do processo de desinstitucionalização que este se tem vindo a deparar com dificuldades. Passando pelos poucos recursos ao dispor dos serviços de saúde mental, à tendência para trabalhar com os elementos que apresentam maiores probabilidades de sucesso, à deficiente articulação entre os serviços hospitalares e os serviços da comunidade, até à falta de investimentos em alternativas habitacionais de carácter permanente. Estas têm sido algumas das situações a que os consumidores de serviços de saúde mental se têm sujeitado. Actualmente, assistimos à emergência de um paradigma que assenta na crença de que se deverá prestar apoio a estes consumidores numa casa tipicamente normal, com uma vivência na comunidade, em que o apoio é disponibilizado consoante as necessidades de cada indivíduo sem que exista uma limitação temporal à sua prestação. Torna-se assim necessário criar novos papéis para os técnicos, no sentido de que estes ajudem os consumidores a escolher, a obter, e a manter uma habitação. É pois urgente o desenvolvimento de um conjunto diversificado de alternativas habitacionais que se baseiem nos recursos e capacidades das comunidades locais, no sentido de garantir que o processo de desinstitucionalização se conclua com sucesso.

Palavras-chave: desinstitucionalização, habitação apoiada, satisfação dos consumidores, doença mental.

ABSTRACT

Since its beginning the deinstitutionalization process has faced some difficulties, such as the mental health services lack of resources, the trend to work with the individual who presents bigger possibilities of success, the lack of articulation between hospital and community health services, and the lack of investments on other choices, concerning accommodations for long periods of time. These are some of the situations that consumers of mental health services have been endured. Nowadays we assist to the emerging of a paradigm which lies on the idea that these consumers need to be supported on a ordinary house, living in community, where the support is provided according to each person’s needs, and without a time limit. This paradigm also obliges the professionals to establish new roles for them in a way that they will be able to help the consumers to choose, get, and keep a home. To assure the success of deinstitutionalization it is vital that the establishment of different alternatives of accommodation be based on communities resources and capabilities. 

Key words: deinstitutionalization, supported housing, consumer satisfaction, mental illness.

A desinstitucionalização propôs-se possibilitar aos indivíduos com perturbações mentais cuidados de saúde na comunidade. Associado ao aparecimento desta política esteve, entre outros factores, as condições deploráveis que se faziam sentir na grande maioria dos hospitais psiquiátricos. Coube então aos sistemas de saúde mental a responsabilidade de criarem alternativas habitacionais para a transição dos utentes dos hospital para a vida em comunidade. Desde o início deste processo que este se tem vindo a deparar com dificuldades, desde os poucos recursos ao dispor dos sistemas de saúde mental, à não satisfação dos utentes com as alternativas habitacionais que lhes eram propostas, várias têm sido as dificuldades encontradas. Nas duas últimas décadas houve contudo uma mudança significativa nos sistemas de saúde mental no que concerne ao papel desempenhado pelos indivíduos com perturbações mentais. Estes, de forma progressiva, têm vindo a deixar de ser vistos como meros recipientes passivos de cuidados, começando a ser considerados como tendo uma voz legítima na definição, e avaliação, de serviços. Passaram do papel de pacientes para o papel de consumidores (Davidson, Hoge, Godleski, Rakfeldt, & Griffith, 1996).

Neste trabalho, centrámos as nossas atenções nas alternativas habitacionais ao dispor de indivíduos com perturbações mentais, por este ser um aspecto determinante num processo de reabilitação (Blanch, Carling, & Ridgway, 1988; Davidson, et al., 1996; Massey & Wu, 1993; Moniz, 1999). Começamos por abordar alguns aspectos que levaram ao aparecimento de uma política de desinstitucionalização, bem como os primeiros problemas com que esta se deparou. Caracterizamos depois de forma mais aprofundada o modelo habitacional dominante desde o início do processo de desinstitucionalização. Seguidamente, começamos a explorar o paradigma emergente na área da reabilitação, mais especificamente na sua vertente habitacional. Os problemas com que este se depara são, também, aqui abordados. Para concluir, apresentamos as perspectivas dos consumidores, e sugerimos algumas novas pistas de intervenção.

A Desinstitucionalização no seu Início …

Os anos 50 e 60 marcaram o início de uma nova etapa nas abordagens relacionadas com o tratamento e reabilitação de pessoas com doença mental. Começa, nesta altura, a desenvolver-se a perspectiva de que os doentes mentais deveriam receber os cuidados necessários inseridos nas suas comunidades, evitando que fossem colocados em instituições. Assim, em 1963 é promulgada nos Estados Unidos a Lei dos Centros de Saúde Mental. Segundo esta, estes Centros deveriam proporcionar um conjunto de serviços, que iam desde o internamento, acompanhamento pós-alta, hospital de dia, serviços de apoio na crise, serviços de reabilitação, lares de transição, consultoria, e prevenção através de acções educativas (Altrocchi; Bellak; Caplan; & Fairweather, citados em Ornelas, 1996). Esta política de desinstitucionalização não ficou contudo isenta de críticas, pois os profissionais e o público, que até então dirigiam as suas críticas para as condições pouco humanizadas em que funcionavam as instituições psiquiátricas, reorientaram as suas críticas para os problemas levantados por esta política.

Os primeiros problemas.

Um dos primeiros problemas identificado foi o facto das comunidades não estarem organizadas para o regresso dos seus concidadãos com problemáticas mentais. Quando se iniciaram os primeiros esforços deste processo de desinstitucionalização, muito pouco tinha sido feito no sentido de proporcionar alternativas habitacionais às grandes instituições asilares. Muitos dos doentes mentais internados foram assim “devolvidos” às suas famílias, enquanto outros foram simplesmente “largados” na comunidade com pouco ou nenhum tipo de apoio. Os próprios Centros de Saúde Mental foram alvo de várias críticas (Feldman, Mollica, Jeger, e Slotnick, citados em Ornelas, 1996), nomeadamente pela existência de uma certa prática de trabalhar com os elementos que apresentassem maiores probabilidades de sucesso, pela deficiente articulação com os serviços hospitalares, pela ausência de investimentos em alternativas de apoio habitacional permanente (e não apenas de carácter transitório), pelo insuficiente envolvimento de membros da comunidade nos processos de tomada de decisão, pelas poucas actividades de educação e consultoria comunitária, bem como pela não-resolução de algumas das necessidades “básicas” dos seus utentes (nomeadamente, de uma habitação condigna, de uma fonte de rendimento, de alimentação, de vestuário, de acesso a cuidados de saúde).

O CONTINUUM RESIDENCIAL: UM MODELO HABITACIONAL

O modelo de serviços habitacionais que tem predominado desde o início da desinstitucionalização ficou conhecido sob a designação de Continuum Residencial. Este modelo assenta num paradigma que tem por base os seguintes conceitos e valores:

- enfatiza o ambiente enquanto factor de tratamento;

- utiliza uma série de settings graduais especializados;

- é um programa de transição, portanto com um limite temporal;

- vai-se reduzindo o tipo de serviços, e de suportes, dado ao doente mental, num percurso que visa a independência total.

O ambiente enquanto factor de tratamento.

Este modelo tem por objectivo “tratar”, pelo que a estabilidade e o conforto de uma “casa” eram considerados como menos importantes do que criar um local que os técnicos acreditavam ser útil para o tratamento (Paul, 1984; Budson, 1978).

Settings graduais especializados.

Este tipo de modelo oferecia vários tipos de alternativas habitacionais, alternativas estas que se caracterizavam por uma diminuição na intensidade de apoio prestado à medida que o utente ia "evoluindo" (Ridgway, 1986). Assim um utente passaria primeiro pelas Quarterway Houses, depois pelas Halfway Houses, por Apartamentos Supervisionados até à última “etapa” - a vivência independente.

Programa de transição.

A maioria dos programas que se apoiavam neste modelo tinham critérios de entrada, critérios de saída, e um tempo limite que o utente tinha para atingir determinados objectivos. Esperava-se que os indivíduos, ao entrarem para um programa deste tipo, melhorassem o seu nível de autonomia no sentido de passarem para o setting seguinte. Estes programas, caracterizavam-se assim pela passagem do consumidor por uma série de passos, ou “degraus”, que o levariam à vida independente (Ridgway, 1986).

Redução do tipo de serviço e apoio.

À medida que passavam pelos vários settings, os consumidores supostamente, ganhariam maior controle sobre a sua própria vida, necessitando cada vez menos de suporte. Uma vez, que vivessem sozinhos (de forma independente), deixavam de receber assistência formal do sistema de saúde mental (Ridgway, 1986). 

Embora este modelo tenha dado origem a uma série de programas residenciais, até aí não considerados na reabilitação de pessoas com perturbações mentais, este foi, e é, alvo de várias críticas.

Problemas do Modelo de Continuum Residencial

Este modelo levantou diversos problemas, em vários domínios: problemas a nível conceptual, problemas relacionados com o ambiente terapêutico, problemas sociais, problemas decorrentes dos limites temporais impostos pelo modelo, problemas relacionados com o conceito de independência, e problemas relacionados com o planeamento dos programas.

Problemas a nível conceptual.

Para alguns autores como Carling & Ridgway (no prelo) a ideia de um continuum é demasiado simplista, pois neste tipo de modelo apenas são previstas alterações numa única dimensão, não sendo tida em consideração a complexidade individual de cada pessoa, as suas necessidades, o envolvimento ambiental, e a interacção que resulta da conjugação de todos estes factores.

Problemas com o ambiente terapêutico.

Primeiro, é necessário ter em consideração o número reduzido de comunidades que dispunham destes serviços, e aquelas que os tinham, apenas serviam um pequeno número de consumidores. Para além disso, uma vez que as poucas vagas disponíveis estivessem preenchidas, o sistema deixava de funcionar da forma prevista, pelo que os indivíduos não poderiam avançar para o nível seguinte (Randolph, Ridgway, Sanford, Simoneau & Carling, citados em Ridgway, 1986). Por outro lado, quando esses serviços existiam, os programas disponibilizados eram demasiado standartizados, não tendo em linha de conta as necessidades individuais de cada utente. Tornavam-se assim programas dispendiosos, com settings demasiado artificiais, e dificilmente identificáveis com o ambiente de uma casa. 

Problemas sociais.

Prestar apoio a pessoas com perturbações mentais em settings terapêuticos especiais acarreta algumas dificuldades. Estes settings sugeriam que as pessoas com perturbações mentais necessitam de um ambiente de segurança, ou quase institucional, onde existam pessoas especializadas para “cuidar” delas. Esta ideia, só por si, contribui para reforçar os estigmas já existentes criando grandes barreiras ao trabalho na comunidade (Baron, Rutman & Klaczynska, citados em Ridgway, 1986). Por outro lado, o facto de se viver em grupo, implica um conjunto de dinâmicas de grupo muito intensas. Mas quando pessoas com perturbações mentais vivem juntas e surgem alguns problemas, a pessoa, ou a sua doença, é que são consideradas culpadas, em vez de esses problemas serem vistos como consequências naturais de uma vivência em grupo. Para além disto, estes ambientes terapêuticos tendiam a ser pouco tolerantes, quando alguma (das muitas) regra(s) eram quebrada(s), podendo esse incumprimento conduzir a que essa pessoa pudesse perder o seu local de residência.

Problemas decorrentes da limitação temporal.

O modelo, no qual o Continuum Residencial assentava, sugeria que o doente deveria avançar à medida que as suas necessidades iam sendo alteradas, constituindo esses avanços indicadores positivos de progresso. Este processo de movimento para a independência, não se revelou consonante com a realidade da doença mental, na medida em que as pessoas com esta problemática não mudam de uma forma linear, nem evoluem de uma forma pré-determinada. A pressão colocada pela existência destes limites temporais, associada às mudanças sucessivas, e às novas exigências que lhes eram colocadas pelo evoluir no programa conduziam a que estes indivíduos perdessem constantemente as suas redes de suporte social.

Problemas relacionados com o conceito de independência.

Como já anteriormente foi referido, a vivência independente era o objectivo último deste modelo. Entendia-se como uma vivência independente, aquela em que um indivíduo não necessitasse de qualquer ajuda formal. Embora parecendo lógico, constatou-se que esta ideia de independência é um mito, pois os problemas relacionados com a doença mental não permitem que a grande maioria das pessoas com este problemática possam viver sem suporte algum por parte da comunidade (Segal & Baumohl, citados em Ridgway, 1986).

Problemas relacionados com o planeamento dos programas.

Neste modelo, quem efectuava todas as tarefas de planeamento eram os profissionais, eram eles que definiam os vários níveis de um programa, que estipulavam qual o tipo de doentes que dele iriam beneficiar, entre outros aspectos. Infelizmente, a maioria dos programas desenhados só por profissionais não têm frequentemente em consideração as necessidades individuais destes consumidores. O tipo de ambiente existente num modelo de Continuum Residencial não era aquele que muitos escolheriam para si, pois as pessoas com perturbações mentais, tal como a maioria dos indivíduos, querem uma vida estável, numa casa tipicamente normal que não seja uma “congregação” terapêutica (Ridgway, 1986).

A SITUAÇÃO ACTUAL

Actualmente, os consumidores de serviços de saúde mental continuam a deparar-se com várias dificuldades de acesso a um habitação condigna, devido, entre outros aspectos, ao elevado preço das rendas (geralmente fora do seu alcance). Isto, na medida, em que segundo Blanch, et al. (1988) muitas das pessoas que sofrem de perturbações mentais são pobres, e se o não são ao início, muitas acabam por ficar nessa situação quer devido aos custos dos tratamentos psiquiátricos, como frequentemente devido a perda do emprego. Uma das "soluções" encontradas em alguns países para esta problemática tem passado pela disponibilização de verbas para a criação de habitações de grupo - do tipo residência comunitária. No entanto, este tipo de alternativa habitacional tem sido frequentemente criticada por vários autores, nomeadamente por Shoultz (1988), que a consideram dispendiosa e de concretização lenta. Esta autora, crítica ainda este modelo habitacional pelo facto deste raramente possibilitar o que muitos de nós temos geralmente como garantido - a possibilidade de escolha do local onde queremos viver, e com quem o queremos fazer - bem como, pelo facto deste poder induzir em situações de passividade e de dependência acrescidas. Parece pois ainda existir uma certa tendência para que os serviços de saúde mental, e outros serviços sociais, considerem que indivíduos com perturbações mentais não têm capacidade para tomar conta de uma casa (frequentemente uma das suas necessidades mais prementes).

A Emergência de um Novo Paradigma

O modelo de Continuum Residencial falhou em vários aspectos, nomeadamente ao nível da resolução do problema habitacional das pessoas com doença mental. Nos Estados Unidos, a aplicação deste modelo fez inclusive com que o número de hospitalizações psiquiátricas aumentasse dramaticamente. A instabilidade habitacional e a perda de casa eram dois dos factores que se encontravam correlacionados com este aumento de hospitalizações (Appleby & Desai; Chafetz & Goldfinger, citados em Ridgway, 1986). Assim, e na sequência do anteriormente descrito, proporcionar uma habitação condigna para pessoas com perturbações mentais representa actualmente um importante e árduo desafio para qualquer política de saúde mental. Para aumentar a complexidade deste desafio contribuem vários factores, nomeadamente:

- a própria doença mental, que pode dificultar a escolha e a sustentabilidade de uma casa (Bachrach; Budson; Carling; Carpenter & Bourestan; Chatetz & Goldfinger; Coulton, Hollard & Fitch, (citados em Blanch, et al., 1988);

- o sistema de saúde mental, que ainda não foi organizado de forma a poder providenciar os suportes necessários para apoiar os seus utentes numa vivência em comunidade (Carling, citado em Carling & Ridgway, no prelo);

- a discriminação, que limita fortemente as opções habitacionais disponíveis (Aviram & Segal, citados em Carling & Ridgway, no prelo);

- a pobreza, que parece ser a maior barreira para o acesso a uma habitação condigna (Baxter & Hopper; Carling citado em Carling & Ridgway, no prelo).

Contudo, nas últimas décadas, tem havido alguns desenvolvimentos programáticos e conceptuais no campo da saúde mental, no sentido de responder às necessidades habitacionais das pessoas com perturbações mentais. Baseando-se na análise dos problemas levantados pelo modelo do Continuum Residencial, alguns sistemas de saúde mental têm tentado colmatar os erros do passado. Por outro lado, os familiares destes consumidores têm-se nos últimos anos tornado activos defensores dos direitos dos doentes mentais, exigindo que se crie alternativas habitacionais no seio da comunidade. O surgimento deste novo paradigma assenta na crença de que se deverá prestar apoio aos doentes mentais numa casa tipicamente normal (i.e., disponível no mercado, e não necessariamente associada a um programa de saúde mental), com uma vivência na comunidade, em que o apoio é disponibilizado consoante as necessidades, e valores, de cada consumidor sem que exista uma limitação temporal para a prestação desse apoio. Este paradigma, assenta nos seguintes valores:

- cada consumidor tem um conjunto de necessidades individuais;

- essas necessidades vão variando ao longo do tempo;

- cada consumidor deve viver (na medida do possível) numa situação de acordo com as suas preferências habitacionais;

- os serviços, e os suportes disponíveis devem possibilitar ao consumidor uma vivência que promova o seu sucesso dentro da comunidade.

Ao falar-se em (re)integração social é necessário ter sempre presente que, para o sucesso desta, é necessário que as pessoas com perturbações mentais possam participar em todos os aspectos que caracterizam a vida em comunidade. Isto significa, que devem viver em casas idênticas às dos restantes membros da comunidade, conhecer outras pessoas, ter amigos, e trabalhar nos mesmos empregos que os outros. Deverão também poder participar em várias outras actividades, incluindo actividades religiosas, culturais, recreativas, etc. (Reidy, citado em Ornelas, 1999). No campo da saúde mental esta aproximação, baseada nos princípios e valores aqui apresentados, tem sido frequentemente denominada de Habitação Apoiada (Carling, 1990).

As preferências dos consumidores.

As necessidades manifestadas pelos consumidores, bem como a sua satisfação, só agora começam a ser consideradas como um factor crucial para o sucesso dum programa de reabilitação. Contudo, nem sempre as necessidades dos consumidores têm estado em consonância com as perspectivas dos profissionais. Um dos estudos em que esta situação é demonstrada é o de Daniels & Carling (citados por Carling, 1990) em que estes constataram que profissionais e consumidores tinham perspectivas opostas sobre o tipo de habitação e de apoios necessários. Os profissionais indicavam que para a maioria dos consumidores as habitações mais adequadas seriam as do tipo transitório, com grande presença técnica. Os consumidores, por seu lado, manifestaram uma clara preferência por habitações normais com apoios flexíveis. Massey & Wu (1993), num estudo de índole semelhante, analisaram as perspectivas de 122 consumidores de serviços de saúde mental sobre as suas preferências habitacionais. Estas preferências, foram depois comparadas com as perspectivas dos técnicos de apoio (case managers). Note-se, que nesse estudo a maioria dos consumidores encontrava-se a viver independentemente (40%) ou com as suas famílias (44%). Constatou-se assim, que a situação habitacional preferida pelos consumidores seria uma situação em que viveriam de forma independente (47.7%), ou com a família (34.5%). Estes números contrastaram com as perspectivas habitacionais recomendadas pelos técnicos. De facto, segundo estes, a situação mais adequada seria uma situação de vivência num apartamento supervisionado (36.2%), situação esta escolhida por um número reduzido de consumidores (6.9%). As outras escolhas dos técnicos foram: a vivência independente (34.5%), as residências comunitárias (13.8%), e a vivência com familiares (10%). Note-se que, apenas 1.7% dos consumidores manifestaram preferência por viver numa residência comunitária.

São vários os estudos que indicam uma preferência dos consumidores por habitações normais na comunidade em que estes possam viver de forma independente, sozinhos ou com um companheiro(a) amoroso(a). Um aspecto associado a esta preferência e que é manifestado nas escolhas destes consumidores, é o desejo de privacidade (Massey & Wu, 1993; Tanzman & Yoe, 1989; Yeich, Mowbray, Bybee, & Cohen, 1994). Contudo, para que um programa de reabilitação tenha sucesso não basta só ir ao encontro das necessidades habitacionais dos consumidores. Davidson, et al., (1996), alertam-nos para esta situação através duma revisão crítica que efectuaram a vários estudos sobre as perspectivas dos consumidores (N=415) quanto à desinstitucionalização. Constataram assim, que naqueles estudos em que os consumidores foram directamente questionados quanto às suas preferências, entre viver num hospital versus viver na comunidade, 98% manifestaram uma preferência clara pela segunda opção. Contudo, apesar da quase unanimidade dos participantes preferir viver fora dum ambiente hospitalar, muitos deles referiram que as suas vidas na comunidade se caracterizavam pela solidão, pela ausência de uma qualquer actividade significativa ou de contactos sociais. Outras situações encontradas por esses consumidores na comunidade e que constituem um revés à política de desinstitucionalização, incluíam referências a habitações inadequadas, ou de qualidade inferior, as situações de pobreza, de desemprego, de rejeição social, e à pouca qualidade dos serviços de saúde.

As recomendações dos líderes dos consumidores.

Ridgway (1988), num estudo sobre as necessidades e preferências habitacionais desta população, desenvolvido junto de vários líderes de organizações de consumidores de serviços de saúde mental, sintetizou várias das suas recomendações. Assim, e segundo estes, os serviços sociais deverão desenvolver o tipo de habitação que a maioria dos consumidores prefere; essa deverá ter um carácter permanente; situar-se em bairros seguros; junto de lojas; de serviços e de transportes. Entre outros aspectos, referem que os serviços sociais deverão encetar esforços no sentido de ajudar os consumidores a desenvolver competências para lidar com o stress, com os senhorios, para gerir o dinheiro, e a procurar outros apoios à medida que deles necessitem. Dever-se-á também criar novos papéis para os técnicos, no sentido de que estes ajudem os consumidores a escolher, obter, e manter uma habitação. Ainda neste âmbito, os técnicos deverão valorizar as escolhas dos consumidores e responder às suas necessidades. Estes líderes, apelaram ao desenvolvimento de opções de ajuda-mútua, opções estas que incluam habitações geridas pelos próprios consumidores. Enfatizaram também a importância da opinião dos consumidores, de forma a que esta seja considerada nas várias fases de um processo nomeadamente desde a planificação, implementação até à avaliação. Foi também encorajado o desenvolvimento de esforços de educação do público, e das entidades públicas, de forma a reduzir o estigma, e aumentar o conhecimento sobre as preocupações dos consumidores.

Novas Pistas para a Intervenção

O desenvolvimento de um conjunto diversificado de alternativas habitacionais tem na opinião de Moniz (1999) vindo a tornar-se num aspecto progressivamente incontornável em qualquer processo de reabilitação e integração comunitária de pessoas com perturbações mentais. Esta autora aponta três tipos de estratégias a que se poderá recorrer como forma de desenvolver alternativas habitacionais para estes consumidores, nomeadamente: (1) melhorar o acesso à habitação existente; (2) preservar a habitação existente, e o (3) desenvolvimento de habitação. A primeira das estratégias apela para a necessidade de localizar espaços que se revelem os mais adequados em termos de custo/qualidade. A segunda estratégia, ou seja, a preservação da habitação existente refere-se à identificação dos espaços que com algumas obras de recuperação possam vir a ser utilizadas como opção habitacional para esta população. Através do desenvolvimento de parcerias entre serviços de saúde mental e outros organismos, poder-se-ão encontrar soluções habitacionais acessíveis e dignas. Dever-se-á, contudo, evitar que estas soluções habitacionais se possam vir a transformar em guetos. Por último, a terceira estratégia envolve a compra ou a construção de habitação. Esta é a estratégia mais complexa e aquela que envolve maiores riscos para os programas que optem pela sua promoção. Contudo, se alcançados os apoios financeiros para o seu desenvolvimento, esta responderá mais facilmente às necessidades desta população.

CONCLUSÕES

O recurso a um modelo de habitação normal (apoiada) apresenta segundo Blanch, et al., (1988), várias vantagens para um sistema de saúde mental. Uma das vantagens mais imediatas é que evita desde logo vários problemas com questões de licenciamento e de localização. Outra das vantagens é que este se baseia nos recursos e capacidades das comunidades locais. Permite assim a experimentação ao nível da estrutura do programa e do staff, possibilitando que se proceda mais rapidamente às alterações que se venham a revelar necessárias. Apesar destas vantagens, subsistem várias resistências a este conceito habitacional, continuando-se a privilegiar situações habitacionais de transição. Um dos grandes obstáculos, a disponibilização de apoios a pessoas com perturbações mentais num contexto de habitação normal, continua ainda a ser o facto de muitos serviços de saúde mental continuarem a acreditar que a maioria dos seus utentes são incapazes de viver fora dum contexto fortemente supervisionado (Blanch, et al., 1988).

Ao equacionar-se o desenvolvimento de alternativas habitacionais para pessoas com perturbações mentais Carling, Randolph, Blanch, & Ridgway (1987) consideram que dever-se-á ter presente 3 questões base, nomeadamente:

- Onde é que as pessoas com este tipo de problemáticas mentais vivem?

- Onde é que elas querem viver?

- Como é que aí as poderemos ajudar a ser bem sucedidas?

Para responder convenientemente a estas questões estes autores consideram ainda que terá que haver, entre outros factores, uma mudança fundamental na orientação que a investigação tradicionalmente toma. Ter-se-á assim que passar de uma prática na investigação em que os investigadores definem, e orientam, todo o processo para um processo de co-investigação entre profissionais e consumidores. Será também necessário que os consumidores tenham não só uma voz na definição dos sistemas que visam satisfazer as suas necessidades, como também sejam consultados em todos os assuntos relacionados com a política de saúde mental (Davidson, et al., 1996). Existem várias estratégias em que os investigadores, os responsáveis por serviços sociais, os técnicos, e os grupos de defesa dos interesses dos consumidores se poderão apoiar como instrumento de pressão para documentar a falta de habitações acessíveis, e as situações de pobreza em que muitos desses consumidores se encontram. Uma dessas estratégias poderá passar pelo recurso a estudos que incidam sobre relação entre a satisfação das necessidades dos consumidores e a influência no seu processo de reabilitação, nomeadamente ao nível do custo/benefício. Se for possível demonstrar a poupança nos custos, pela redução do tempo de duração dos internamentos psiquiátricos, de uma diminuição da utilização dos serviços de urgências psiquiátricas, e de um melhoria dos resultados ao nível da reabilitação (decorrente de um emprego ou da participação em outras actividades produtivas), poder-se-á fazer uma apelo mais forte e fundamentado para as preferências dos consumidores (Yeich, et al., 1994). Num mercado, onde a habitação é dispendiosa e onde os recursos ao dispor da saúde mental são limitados, não fará mais sentido optar por alternativas habitacionais que só poderão servir um número limitado de consumidores ou que sejam impopulares junto dos mesmos.

REFERÊNCIAS

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© Fernando Sousa 2002 - última actualização em: 17 Novembro 2010