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Rawi Hage

 

Um chamado soou sobre todo o mundo; o esplendor partiu de cada cidade. Manda d'Hayye se revelou para todas as crianças e homens e resgatou-os das trevas para a luz.

-- O Livro Mandeísta

Prezado K,

Saí repentinamente ontem a noite para não ser mais motivo de constrangimento para você. Parece-me que você prefere que referências a minha terra natal, o tópico da religião e outras comparações sociais sejam confinadas a certos grupos e não outros. Minhas observações sobre a sociedade não eram de crítica, mas vieram de meu sentimento de pertencer a um lugar. Sou canadense agora, apesar de tudo, e pensei que tinha o direito de expressar minha opinião.

Com relação ao seu comentário, "Porque afinal, você veio para cá?", este realmente me fez voltar no tempo. De qualquer forma, é uma questão na qual eu penso com frequência e que certamente me deixou doente e pensando ontem a noite. Mas agora eu sei a razão de minha jornada, e remeto-a ao chamado que levou a vida de minha amada e me conferiu o destino de um peregrino, que, quando convidado a um banquete deve ser grato e permanecer em silêncio.

Agora, prezado K, deixe-me lhe contar a história do chamado que foi a causa de minha partida e a razão pela qual vim para cá.

Na minha vizinhança ficavam as ruínas de uma igreja Bizantina que havia sido construída nas fundações de um templo romano, que havia conquistado um deus grego anterior que certa vez aboliu os Fenícios e seus altares.

A igreja era cercada por uma extensa cerca, uma cidade guerreira, céu azul, o Mar Mediterrâneo, e uma terra coberta por montanhas, rios vermelhos e rastros de guerreiros passados. No lado sul das ruínas da igreja, além da cerca, era possível ver homens do Oriente Médio cobrindo cadeiras amarelas com seus corpos a descansar, feições antigas escondidas atrás de jornais repletos de esperanças, promessas e ilusões. Sobre suas cabeças havia um teto. Ao longo de seus lados ficava um série de paredes verticais, reunidas em uma linha reta e contornos simples a criar uma cafeteria chamada de Abu-Pierre Café.

Dentro e fora do café homens sentavam e esperavam. Enquanto alguns jogavam cartas, outros checavam suas apostas e os cavalos, fumando argyles , que eram colocados no chão a seus pés e mantinham-se eternamente acendidos pelo menino da chama, Adel o copto. Como um zoroastrista ansioso por manter o fogo dançando, Adel, rápido e ágil, pairava entre os homens, um espírito inquieto ansioso por conforto. Lá e cá, um homem vigoroso, em pequenos e repetidos esforços, sugava e inalava os fumos perfumados, saboreando tabaco e vendo o tempo passar, a luz mudar, crianças crescerem, jovens partirem, velhos morrerem, e memória desaparecer.

Em frente ao café de Abu-Pierre ficava uma loja de doces que pertencia a Vertex, o Armeno, cujo pai havia certa vez ido ao sul para nossa terra em desespero pela fome, massacres, facas longas, pranto, corpos mortos.

Acima da loja de doces, no primeiro andar, uma família de dez vivia pobremente. Todos tinham nomes estrangeiros como Lisa, Albert, Tony. Até mesmo a mãe, uma simples fazendeira que havia deixado frescas terras nas montanhas para se instalar na cidade se chamava Violette. Ela falava alto, era espontânea e frequentemente se vestia de preto. Ela protegia suas crianças, acasionalmete batia nelas e constantemente ficava dando-lhes coisas para fazer.

Agora as filhas de Viollete estão casadas e seus filhos levaram suas sementes para terras mais altas, para terras ocidentais de onde nunca retornarão. Em uma viajem ocasional de volta pra casa, Violette me perguntaria se eu os teria visto. Seriam aquelas terras que uma vez haviam chamado seus filhos como uma sirene uma terra acolhedora? Será que confortariam Tony da mesma forma que seus braços? Veriam Albert através de seus olhos?

Havia quatro edifícios na minha rua, dois de cada lado de uma rua asfaltada que deitava-se sob os pés de pedestres e carregava seus pesos em silêncio. Da minha janela eu ouvia comerciantes e pedintes naquela estrada clamando as mais encantadoras melodias do oriente. "Dedo de bebê, seu pepino!" "Peixe fresco dançando ainda!" "Suleiman, o doce afiador de facas está aqui. Senhoras, tragam para cá, não joguem fora!" "que Alá lhe retribua com ouro e longevidade! Almas piedosas, generosas, ternas.. tenham pena de mim, o pobre carente.."

Mas dentre todos, nenhum cantava como Hassan, filho de Mustafa. Alguns diziam que ele era a reencarnação de Billal, o escravo que foi libertado pelo profeta e cantava o chamado aos crentes. Outros o descreviam como um novo Om-Kalthum, o famoso cantor - pois ninguém cantava o nome de frutas e legumes como Hassan, o filho de Mustafa. Era jovem e tinha os cabelos negros e crespos, olhos verdes, um rosto sujo e corpo curto, todo enrolado em roupas ocidentais dadas a ele pelas mães que haviam visto seus filhos crescer e partir.

Beirute estava submergida em guerra e chamas como se a maldição dos deuses tivesse caído sobre seu solo; ainda assim, Mustafa havia vindo do lado ocidental pela cidade dividida. Ninguém sabia como Hassan e seu pai passaram pelas fronteiras da guerra. A lenda dizia que Hassan cantou para os guerrilheiros para amaciar suas almas cegas e perdidas e passou em paz.

Todos conheciam Hassan. Todos amavam seus cantos sublimes. Todos conheciam o carrinho de mão de madeira de seu pai, todo decorado com pedaços de espelhos quebrados, ornamentos cintilantes e versos de sabedoria e louvor caligrafados: "Este foi me dado pelo Piedoso, que o olho da inveja seja atacado pela cegueira" "Eu sou seu humilde servo, que o todo poderoso seja louvado..." "Hassan, meu filho."

Pelas montanhas, entre os prédios destruídos, Mustafa e Hassan empurravam seu carrinho carregado através da cidade segregada, em desafio a tudo. Como persistentes formigas, como graciosas borboletas cheias da coragem de um leão, pai e filho chegaram ao lado proibido para vender suas frutas e legumes. Pararam na esquina da minha rua, em frente a Kaaie, o açougueiro. Hassan chamava os fregueses e cantava: "Pérolas, ó tomate! Presente de Deus, alface, fresca dos jardins do Éden! Olhando, as pálpebras desabrocham. Saboreando, o coração floresce."

A cada chamado, Mustafa levantava, orgulhoso dos talentos de seu filho, e libertava um sorriso que desvelava seus dentes de ouro e escondia seus preciosos olhos. Logo mães, irmãs, esposas, eram atraídas pelo chamado como convertidas para seu mestre. Hassan cantava e Mustafa enchia cada bolsa das mulheres com comida e oferendas.

Pela minha janela o céu mudava com cada estação. Sob o céu e à vista de minha janela ficava um prédio de quatro andares que havia sido verde antes da chuva lavar seu brilho e levar suas cores para riachos distantantes e oceanos imortais. No quarto andar havia uma mulher que morava sozinha, pintava o cabelo, fazia as unhas e lia o futuro em xícaras de café seguradas por dedos de mães e tocadas por lábios de virgens ansiosos por amor. Esta mulher falava com santos e acendia velas. Molhava suas plantas e acenava para os passantes. Amava a chuva e odiava guerras. Bebia vinho e dançava com as chamas. Até que um dia ela veio à nossa casa e anunciou sua partida. "Tive uma visão de cavalos nadando em pântanos vermelhos, cercados por homens sem esposas.", ela disse. Então se foi aos prantos, e nunca mais voltou.

No terceiro andar morava uma família de quatro pessoas que era conhecida por seus espíritos elevados e modos excêntricos. Durante toda a guerra, quando bombas trovejavam caíam como chuva, eles davam banquetes, dançavam e faziam círculos e cantavam, "Bebam! Bebam! É melhor que se encontre o criador em bons espíritos do que com feições sombrias."

Abaixo deles vivia um príncipe em objeção e glórias passadas. Era quieto e calmo e vivia com sua filha, que freqüentemente sentava-se do lado de fora, lendo livros que sussurravam sobre lordes rebeldes e mulheres de cabelos longos. Abaixo do príncipe e de sua filha, no primeiro andar, ficava uma velha que ganhava a vida costurando coisas rasgadas e meias usadas. Ela possuía uma luz fraca, óculos grossos, um ovo de madeira, uma mesa plana, um sofá e uma cama.

No nível do chão, abaixo de todos, havia duas lojas. A que ficava à esquerda, uma sala cheia com mesas de metal cinzas e com os telefones pretos de disco usados para fazer apostas e conferir os resultados das apostas das corridas de cavalos, ficava cheia aos sábados de corpos fatigados e vozes altas dos jogadores. Faziam suas apostas em cavalos de nomes como Jarbouaa, Chat-Algharam ("Praia da Amada"), Antar, Al Zahabi ("O rabo de ouro", Hib Al-Rih ("Vento Veloz"), Abou Alhol ("A Esfinge"), Cleopatra, Dalida, Georgina, Hiba ("Presente"), Rim Al Fallah ("A Esfera da Orbita"), Ramshit Aein ("Piscada de Olho"), Fairuz ("Pedra Preciosa"), Um-Kalthoum, Sufi, Ummi ("Mãe"), Sayadd Al Zehab ("Pescador de Ouro"), Romeo, Diwan Al-Sultan ("O Palácio do Sultão"), Malek Al Moulouk ("Rei dos Reis"), Habib Al-Sahra ("Amado do Deserto"), Aein Al-Ghazal ("Olho do Veado"), Nar Al-Oueiuon ("Chama dos Olhos"), Andalous, Rim El-Allah ("Flecha de Deus"), Saout Al-Raad ("Trovão"), Dallas, J.R., Zorro.. Lembro-me agora, em um dia árido, Zeina, a esposa do jogador Youssef, correu para a rua, arrastando suas duas crianças pela mão. Parou no meio dela, em frente ao antro dos jogadores, gritou com seu marido e pediu-lhe dinheiro. "Imundo, olhe para seus filhos famintos," ela chamou por ele. Ela amaldiçoou seu próprio destino, amaldiçoou os cavalos, amaldiçoou os jogadores e o ventre de suas mulheres por te-los carregado em vão. Ameaçou ir e atirar em todos aqueles animais sujos e seu rico dono. Então ela amarrou seus cabelos, bateu suas coxas, rasgou seu avental e começou a chicotear os homens com ele e a dizer-lhes para ir para casa para suas mulheres miseráveis. Por fim ela voltou-se para suas crianças que estavam em prantos e histericamente começou a bater nelas.

A loja térrea do lado direito, perto do lugar dos jogadores era uma loja de molduras. Seu dono era George, o moldureiro. Ele estava por volta dos seus trinta anos e já ficando calvo. Ele ouvia alto músicas ocidentais, se vestia com jeans apertados, e constantemente olhava para as jovens passando pela rua.

George era o único moldureiro da vizinhança, e durante a guerra seu negócio prosperava. Era costume das pessoas emoldurar imagens de entes perdidos, e certamente naquele tempo muitos foram perdidos. Também era costume segurar imagens de mortos em desfiles ao cemitério. Os parentes traziam imagens de seus mortos e George os cercava com boa madeira e prata e tinta preta. "Olhe," ele me disse certa vez,

"Olhe. Em nome da Virgem, olhe. Eles não parecem que sabem que vão morrer? Veja seus olhares; veja como eles te olham. Este era tão jovem... Olhe, olhe," ele dizia, balançando a cabeça e segurando a fotografia. George sempre recusava dinheiro que vinha de parentes dos mortos, mas eles insistiam em pagar-lhe como sua última oferta.

George, obrigado, aceitava o dinheiro e então corria para a porta ao lado para apostar nos cavalos. "Dinheiro de Judas," ele costumava dizer. "Essas pessoas foram crucificadas. Conspiração, América, é tudo a América.," ele dizia.

Minha amada tinha cabelos que pousavam em seus largos ombros, cílios compridos que tocavam meus olhos e mãos que me guiavam, uma boca que sorria através da confusão de meu espírito. Quando a vizinhança dormia e a lua estava desperta, minha querida e eu nos encontrávamos no altar em meio às ruínas Bizantinas. Escondíamos nossos corpos em pilastras destruídas, enfraquecíamos nossas vozes com muros quebrados. Quando eu olhava para sua carne ela abaixava os olhos e dizia "é só uma vestimenta que terei que abandonar um dia." Então ela corria para o altar e deitava a seus pés. "Sou o seu sacrifício," ela me dizia brincando, e ria.

Deixe-me lhe contar sobre o dia do chamado. A lua estava ausente. Brilhante, lançava gotas de luz que cortavam a escuridão e iluminavam nossa rua como uma pérola reluzente. Naquele dia o rosto de minha amada ofuscava o colar de ouro que ela usava. Os mercadores vieram e Hassan cantava. Os raios brilhantes tocavam as almas das mulheres e carregavam seu chamado. Todas iam encher suas bolsas no carrinho de mão.

Então veio uma forte explosão. Então silêncio. Então gemidos. Eu corri pela rua para apenas ficar perdido em meio a fumaça e os vidros estilhaçados que cobriam o asfalto. Vi carne espalhada nos muros como feridas abertas. Visões de espíritos ascendendo pelos sete portões mantinham minha alma em terror.

Nossa rua estava em prantos. Canções dos gnósticos e hinos aos espíritos eram cantados na noite. As lágrimas das mulheres de preto me levaram embora. Desde então tenho corrido e vagado por terras distantes.

Agora, prezado K, se você vir a visitar minha vizinhança, verá na esquina um santuário inscrito com nomes - o nome de Mustafa, o nome de Hassan, o nome de Zeina, o nome da filha do príncipe, o nome de minha amada, o nome de muitos outros. Ao seu lado está uma imagem emoldurada em cedro que foi pintada em negro e prata. Abaixo da imagem há palavras talhadas em ouro: "Em memória de minha amada mãe."

Assinado, "George, o moldureiro."

 

Publicado em Mizna, volume 2, edição 1.

 

 

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