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Apolônio Hilst: O Futurista de Jaú

por Eustáquio Gomes

 

      Em meados de 1920, quando Menotti ensaiava os primeiros lances do combate futurista, pousou-lhe na escrivaninha de redator do Correio Paulistano a curiosa carta de um certo Apolônio Hilst (1896-1966), fazendeiro em Jaú, pequena cidade distante 320 quilômetros da capital. A certa altura, a carta especificava:

 

      Contaram-me uma vez do teu horror pelo mestre (Alberto de Oliveira), esse grande poeta que já morreu por não ter morrido a tempo, como insinuava perfidamente Nietzsche (...) O teu horror é justo. A arte de Oliveira é impossível. Falta-lhe a faísca da curiosidade. Sabemos que a perfeição é o apodrecimento. Mestre Oliveira é perfeito demais. Os seus versos têm eternidade no espaço; como tê-la no tempo?

      Quem seria esse jovem agricultor ilustrado que, pitorescamente interessado em arte, buscava um ponto de contato para comunicar seu descontentamento com a situação da poesia? Outras cartas seriam disparadas mais tarde, antes e depois da Semana, todas datadas da Fazenda Olho da Itapuí, onde Apolônio cultivava 200 mil pés de café. Menotti logo saberia que se tratava de um fino intelectual do mato - filho de um francês de Lilly casado com brasileira -, alguém mais interessado na poesia que no café, particularidade que lhe custaria caro na quebradeira de 1929. [1]

      Pelo lado materno Apolônio era um Almeida Prado, clã que dominava Jaú econômica e politicamente desde o advento da República. A cidade, em 1920, reunia uns 15 mil habitantes ao longo de suas 29 ruas. Já em 1894 todas as casas tinham água encanada e serviço de esgoto; o telefone e a eletrecidade vieram em 1906, em 1908 o calçamento das ruas. Por volta de 1928 circulavam em Jaú mais de dois mil automóveis, proporção altíssima mesmo para os padrões europeus da época. Apesar da precariedade das estradas o correio chegava diariamente. Apolônio foi com certeza um dos primeiros assinantes provincianos de Klaxon, a revista que os modernistas desovaram logo após a Semana, como atesta um rascunho de carta a Oswald de Andrade encontrada entre seus papéis:

 

Oswald. Alegria, saúde, Klaxon, que Deus exista. Klaxon existe. Klaxon vive. Klaxon é. Não precisa mais de paus nem de pedradas para ser. (...) Klaxon tem asa, é Vida, é Hoje - aeroplano, telégrafo, cinema. (...) Veio trazer-me o bom-dia do século XX.

 

      Mais que as cartas (poucas) que escreveu aos arquitetos da Semana, a maioria delas aparentemente sem resposta, melhor dizem da inquietação estética de Apolônio os seus cadernos de apontamentos. Notas soltas de 1920 demonstram que, afora sua birra com a perfeição, achavam-se já também abaladas suas convicções sobre o belo. "A tendência contemporânea é a de não se ver no belo a finalidade artística", anotava. "E há razão. A arte é qualquer coisa de mais profundo." E acrescentava, numa espécie de paradoxo à Antonio Ferro: "Só admiro o brilho pechisbeque das cousas. Só amo o que mostra a fatuidade dos recortes sábios do artifício".

      Chegaria ele mais tarde, cerca da realização da Semana, a pôr em dúvida até mesmo a possibilidade moderna de uma estética:

 

O simples termo já é um contra-senso. A palavra estética entra na categoria melancólica dos vocábulos mortos, desses vocábulos que os dicionários registram e os inveterados amantes de cemitérios e museus empregam, mas que só têm um significado histórico e comemorativo. (...) Porque o traço mais característico da arte moderna é a ausência de estética. Só é possível uma estética da não estética.

 

      E o que ele advoga em troca? A ingenuidade, a inocência e, por seu intermédio, a originalidade. Coisa que não é possível sem, antes, abrir-se fogo contra a lógica e o bom senso: "A lógica", diz ele, "é um contra-senso inútil e maçante. Só no absurdo há verdade e encanto". Daí que "há mais potência criadora na tolice que em todas as manifestações de bom senso". E como estamos ainda em 1920, nada mais natural que invoque em seu favor os exemplos algo heterogêneos de Paul Fort, Francis Jamwes, Samain, Guérin e Anatole France. "A ingenuidade", escreve, "é a única deusa digna do culto de um espírito raffiné". Lamenta que os brasileiros a desprezem e atribui essa falha intelectual ao "nosso espírito ladino". No fundo, o que ele busca é o "primitivismo local" de que fala Roberto Schwarz a propósito do programa pau-brasil - a tônica nacional "que devolverá à cansada cultura européia o sentido moderno, quer dizer, livre da maceração cristã e do utilitarismo capitalista". Apolônio conclui suas reflexões esparsas sobre o tópico apertando contra o peito, como um talismã, o achado estético dos dadaístas:

 

Ingenuidade! Tenho até vontade de cantar seu elogio num poema futurista. Só não o faço por não ter talento à altura do seu merecimento, e pelo pavor de pôr em versos reles a grandeza da comoção que ela me dá à vida. Ingenuidade, única deusa do meu culto! Virgem e mãe do sonho e da emoção! Eu te amo!

 

      Note-se que o canto de amor à "deusa única" relaciona-a, inesperadamente, a algo que até então não havia comparecido nos apontamentos de Apolônio: o futurismo. Portanto, a ingenuidade e a inocência são artigos futuristas. Ele desejaria expressar sua comoção num poema que, segundo suas novas convicções, não precisaria ser necessariamente perfeito, nem belo, nem lógico, mas sim destituído de intencionalidade. Nesse sentido, ele teria se antecipado mesmo a Oswald de Andrade, que tentou mais tarde uma interpretação triunfalista da inocência e da cultura do atraso. Apesar disso, sente-se travado pelo vezo clássico, que ele pratica desde a adolescência. E desse período um poema bem torneado em que ele compara a poesia parnasiana, a romântica e a futurista, com restrições às duas primeiras e clara preferência pela última. No entanto é significativo que o poema nada contenha da liberdade que reivindicava.

 

É alta e loira. E nem ouro e altura

estilizada.

Orgulhosa e soberana,

tem pose, gestos, figura

e formas de escultura

parnasiana.

Mais nada.

 

De olhos cor da cinza, tristonhos,

olheiras, spleen ou sono,

não sei se filha dos meus sonhos

ou figura de abandono.

Dizem que tem uma paixão atlântica

por certo moço louro e nunca

lhe diz nada.

É uma balada

romântica.

 

Não sei da cor, não sei da altura,

não sei do gesto.

Há nela tal mistura

de traços, cor, formas, posturas,

chipre e sândalo

que a estes meus olhos de burguês honesto

é um escândalo

de formosura!

É a mais mulher por ser a mais artista:

um poema futurista...

 

      Estava contudo preparado para a mensagem que Menotti, em doses cada vez mais poderosas, destilava em sua seção no Correio. Era talvez o único na agrária Jaú a compreender o que se passava no cenário cosmopolita. A vida literária local era acanhadíssima, como reconhecia em 1921 o Comércio de Jaú, órgão do Partido Republicano local, nos seguintes termos: "Não lhe faltam individualidades. Falta-lhe, porém, ambiente. Apesar de certos louváveis esforços pessoais e de iniciativas como a do Jaú Clube, trazendo-nos Martins Fontes e Amadeu Amaral, circulam por aqui quase que exclusivamente as letras... de câmbio". Uma dessas individualidades era um certo Francisco Bertino, poeta municipal de sabor camoniano, em quem Apolônio afortunadamente encontrou uma muralha de resistência contra as idéias de renovação estética. Pôde assim concentrar nele a sua fúria iconoclasta. É a Bertino que Apolônio dedica, em julho de 1921, um revelador artigo publicado no Comércio e que não passará despercebido a Menotti em São Paulo. O artigo, intitulado "São Paulo Futurista", se não tem o tom de um manifesto, traduz muito objetivamente uma tomada de posição pública a favor do movimento. Visa a hipotecar-lhe o aplauso da província e explicar aos provincianos (leia-se Bertino) a nova concepção de arte livre.

      "Se a máxima qualidade do artista é a personalidade", escreve, "antes de condenarmos uma obra que nos põe a idéia de arte em molambos e que dá ao que há de burguês em nossos nervos arrepios desnorteantes, cumpre indagar se o desafio não é mais nosso do que do artista".

 

O futurismo é um rótulo. Como romantismo. Como classicismo. Não se lhe pode dar outra importância. Tanto beleza pode haver num poema futurista como numa página de Homero ou de Camões. Desprezar-se Paul Fort, por exemplo, por futurista, é o mesmo que não querer enxergar as qualidades de Camões, por clássico. Fora disso, o melhor, a meu ver, será o que melhor falar ao nosso sentimento.

 

      Conciliador, busca aproximar os contrários, passando por alto as picuinhas paulistanas: "Futurista é Lobato, o estilo mais forte e original do Brasil". Mas, "tirante Lobato e a lira oceânica de Santos, Martins Fontes", não havia em São Paulo quem pudesse "rivalizar com os chefes futuristas". Ambas as exceções demarcam bem as hesitações que ainda subsistiam nele, e que desaparecerão por completo quando a figura paralisante de Lobato for mais tarde substituída, no altar de sua devoção, pelo tótem avassalador de Mário de Andrade. Por enquanto é Oswald quem mais o impressiona: "Do que sei é que é dos chefes futuristas o mais convicto e o que mais trabalha. Como escritor, Menotti o garante, será a maior revelação deste tempo... Tem prontos para isso três romances".

      Ao fim de duas colunas compactas, termina perguntando-se: "O que resultará, afinal, de todo esse movimento? Não passará de uma blague prodigiosa desses rapazes com cócegas de talento e brilho?" Mas considera: "Seja como for, eles têm o meu aplauso provinciano".

      Da sua mesa no Correio, Menotti recolhe a aclamação do "galhardo crítico jauense" no exato instante em que se prepara ele próprio para renovar sua profissão de fé no futurismo e fazer mais uma de suas freqüentes correções de curso. "Sou futurista", esclarece, "não no sentido idiota e dogmático que a liturgia artística dos alucinados reformistas italianos inventou. (...) Sou futurista no sentido que tão bem apreendeu o sr. Apolônio Hilst num magistral artigo publicado no Comércio de Jaú a 5 de julho corrente". O trecho citado por Menotti, e que segundo ele traduziria a sua concepção de futurismo, é o seguinte:

 

Futurismo é em gíria sinônimo de absurdo. Eu dou-lhe um significado mais amplo e mais nobre. Para mim, futurista é todo aquele que destrilha da arte acadêmica, tão chocha, tão chinesa em sua correção panúrgica de arte de funcionários públicos, e segue desassombradamente seu caminho próprio, prezando acima de tudo a independência.

 

      Essa troca de amabilidades funcionaou para Apolônio como uma sagração, e a partir daí seus cadernos se tornam mais carregados de futurismo - esboços de artigos, comentários, resenhas, paradoxos, aforismos, cartas e até alguns poemas de fatura moderna. Tinha a si mesmo em alta conta, por essa época. Mais jovem que Mário, que Oswald e Menotti, não se imaginava potencialmente abaixo de nenhum deles. Na já citada carta a Oswald a propósito de Klaxon, faz uma confissão: "Quando Monteiro Lobato começou a vender livros", estabelecendo uma pausa provisória em sua atividade de escritor, aí por volta de 1920, "eu quase queimei minha sitioca para pegar a bandeira que ele jogara fora". Mas isso implicava abandonar a fazenda, o negócio cafeeiro e ir para São Paulo. Por que não o fez? Porque, segundo explicou a Oswald, o eclipse de Lobato como chefe intelectual foi logo compensado pelo aparecimento de Mário de Andrade. "Mas eis que surge o Mário", confabula. "Para que mais? Escreve tão bem como eu... Fará as minhas vezes. Continuei aqui".

      Nessa condição, restalhe ser chefe intelectual em Jaú, coisa tampouco muito garantida, já que nào há futuristas na cidade e aos camonianos e lobatianos lhes é incômodo reconhecer chefe que nào Lobato e Camões. Além de Bertino, contam-se uns poucos letrados: Helvídio Gouvêa, guarda-livros e sonetista mediano que mais tarde escreverá alguns versos livres em Campinas sob a influ6encia de Aristides Monteiro; um certo Oliveira e Souza, autor dos Piraquaras, contos muito lobateanos; e, desde meados do ano, Luís de Lacerda, colaborador em Campinas da revista A Onda, e o próprio Aristides Monteiro, também campineiro, por ora tradutor de telegramas da Agência Havas no Correio Paulistano. Eram uma boa família de jovens intelectuais aí entre os 18 e 25 anos, todos mandando colaboração regular para o Comércio de Jaú, embora nem todos se conhecessem pessoalmente; nenhum, de resto, francamente versilibrista. Mesmo assim Apolônio entregava-se por vezes à fantasia de imaginar uma província futurista. Recenseando a escassa vida cultural da cidade, mistifica: "Diversos livros estão no prelo, outros se preparam, fazem-se conferências, discute-se a arte, e há mesmo entre nós quem se interesse pelas mais avançadas teorias da arte moderna, as propague e ensaie..." Refere-se naturalmente a si mesmo, como certamente também pratica auto-exortação quando se dá ares de conselheiro ao dirigir-se paternalmente "a um jovem futurista" para advertir: "Tens na tua beleza a revolta contra todas as coisas torpes; no movimento do teu sangue a revolta contra todas as coisas mortas, anquilosadas, pétreas; no teu coração livre a revolta de todos os Prometeus contra todos os Destinos".

 

[1] Segundo o depoimento de José Sampaio César Jr. e Henrique Pacheco de Almeida Prado, contemporâneos de Apolônio Hilst em jaú, este fizera alto investimento imobiliário à véspera do crack da bolsa de valores de Nova York em 1929, sofrendo enorme revés financeiro. O fato, aliado a problemas de caráter familiar, teria contribuído para o seu gradativo enlouquecimento a partir de 1933.

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(in Os rapazes d'A Onda e outros rapazes / Eustáquio Gomes - Campinas, SP: Pontes: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1992.)

 
 
 
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