O
coração posto a nu
por Antonio Olinto
A
tradição romântica da poesia brasileira fixou-se,
em muitos momentos, mais no simbolismo do que no parnasianismo. Fosse
nos versos de seu representante máximo, Cruz e Sousa, fosse na
floração posterior de Cecília Meirelles, manteve
a corrente simbolista, com maior evidência, um desejado tom sentimental
que evitou, de um lado, a senda fácil do pieguismo e, de outro,
o às vezes difícil construtivismo da poesia tecnicamente
impecável de um Bilac de ontem ou de um João Cabral de hoje.
Ao longo do processo, um Jorge de Lima se exercitava nas várias
modalidades do verso brasileiro e erguia uma obra que foi de tudo um pouco,
inclusive simbolista.
No
movimento ligado à tendência concretista, as experiências
de um Wladimir Dias Pino ainda não esgotaram de todo as suas possibilidades,
mas ficaram um tanto marginalizadas pelo desenvolvimento recente de uma
linguagem, visivelmente mecânica, da era da informática.
Estamos ingressando num período de pós-modernidade na poesia
brasileira? Ou ele já veio, disse ao que veio, e sumiu, sem que
o notássemos? Se a palavra "modernidade" não pode, segundo
inúmeros tratadistas, ser definida com precisão, a "pós-modernidade"
o seria ainda menos. Vejo, contudo, no riquíssimo panorama da poesia
brasileira deste momento, uma representante da mais desabrida e forte
pós-modernidade. Falo de Hilda Hilst, cujo livro "Do Amor", agora
publicado, é de uma perfeita adequação ao desejo,
normal numa poesia liberta, de ir além do que foi feito antes e
chegar à conquista de um verso inconfundivelmente original.
Os
poemas desse volume, selecionados de uma obra mais vasta, aparecem numerados,
sem título. Leia-se o primeiro:
Como
se te perdesse, assim te quero
Como
se não te visse (favas douradas
Sob
um amarelo) assim te apreendo brusco
Inamovível,
e te respiro inteiro
Um
arco-íris de ar em águas profundas.
Como
se tudo o mais me permitisses,
A
mim me fotografo nuns portões de ferro
Ocres,
altos, e eu mesma diluída e mínima
No
dissoluto de toda despedida.
Como
se te perdesse nos trens, nas estações
Ou
contornando um círculo de águas
Removente
ave, assim te somo a mim:
De
redes e de anseios inundada.
O
uso das palavras - simples, mas desusadamente ligadas -, a sintaxe até
certo ponto esdrúxula, o ritmo que se dissolve logo, mas deixa
um rastro melódico perfeitamente perceptível - tudo revela
mais uma vez que a poesia de Hilda Hilst está firmemente plantada
neste ponto de transição de nossa caminhada poética.
Se
é verdade que T. S. Eliot, no dizer do ensaísta D. E. S.
Maxwell, contemplava o mundo com um "olhar moralista", misturado a "uma
observação irônica" (e, por causa ou apesar disso,
mudou a poesia deste século), pode-se afirmar que, seja qual for
o método adotado, a "visão" singular de um poeta poderá
libertá-lo de si mesmo e de sua técnica e, com isso, ajudá-lo
a decifrar o "claro enigma" de cada avanço.
No
caso de Hilda Hilst, sua visão é de angústia e, ao
mesmo tempo, de êxtase. O assunto é "Do Amor", contudo também
de afastamento e conturbada ausência, no desespero quase kierkegaardiano
de ser uma coisa e seu contrário - e de transformar esse duplo
reconhecimento em verso e reverso de um cântico. Veja-se o soneto
que vem a ser o poema nº40 do volume:
Aflição
de ser eu e não ser outra.
Aflição
de não ser, amor, aquela
Que
muitas filhas te deu, casou donzela
E
à noite se prepara e se adivinha
Objeto
de amor, atenta e bela.
Aflição
de não ser a grande ilha
Que
te retém e não te desespera.
(A
noite como fera se avizinha).
Aflição
de ser água em meio à terra
E
ter a face conturbada e móvel.
E
a um só tempo múltipla e imóvel.
Não
saber se se ausenta ou se te espera.
Aflição
de te amar, se te comove.
E
sendo água, amor, querer ser terra.
Além
de uma leitura normal, página por página, de um livro de
poemas, que possamos fazer naturalmente, em busca dos versos que nos revelem
a visão do autor, no caso de Hilda Hilst isso acontece em qualquer
página, que seus versos, numa seleção como este,
promovem sempre uma invenção da verdade. E êxtase
de existir está no modo como se apossa dessa(s) verdade(s), transformando
a palavra em detonador de uma descoberta que ficará na memória,
devido principalmente a imagens dissimilares de que a autora lança
mão a fim de surpreender aquilo que Edmund Wilson chamava de "ocultas
semelhanças entre coisas aparentemente diversas". No poema nº68,
por exemplo, essa diversidade se acentua:
Hoje
te canto e depois no pó que hei de ser
Te
cantarei de novo. E tantas vidas terei
Quantas
me darás para o meu rosto outra vez amanhecer?
Tentando
te buscar. Porque vives de mim, Sem Nome,
Sutilíssimo
amado, relincho do infinito, e vivo
Porque
sei de ti a tua fome, tua noite de ferrugem
Teu
pasto que é o meu verso orvalhado de tintas
E
de um verde negro teu casco e os areais
Onde
me pisas fundo. Hoje te canto
E
depois emudeço se te alcanço. E juntos
Vamos
tingir o espaço. De luzes. De sangue.
De
escarlate.
Numa
aventura de pós-modernidade talvez simbolista, o que Hilda Hilst
faz na sua poesia pode estar próximo do Baudelaire de "Mon coeur
mis a nu". Numa poesia que se proclama "de amor" - que o é, embora
não só - esse "coração desnudado" integra
toda a sabedoria imagística da poeta, que se ergue acima de si
mesma e se abre por dentro para conseguir dizer o às vezes indizível
que cerca todo poema de amor.
No
posfácio ao livro, feito por Edson Costa Duarte, reproduzem-se
estes quatro versos de Hilda Hilst que sintetizam toda a sua entrega ao
ato de desnudar o coração em poesia:
Essa
lua enlutada, esse desassossego
A
convulsão de dentro, ilharga
Dentro
da solidão, corpo morrendo
Tudo
isso te devo.
"Do
Amor", de Hilda Hilst, é uma edição Massao Ohno.
Capa de Arcangelo Ianelli (Composição em vermelho,
1998). Foto de Marjorie Rose Sonnenschein. Coordenação,
revisão e posfácio de Edson Costa Duarte.
(Antonio Olinto
é escritor e membro da Academia Brasileira de Letras.)