a
vida:uma aventura obscena
de
tão lúcida.[1]
por
Clara Silveira Machado e Edson Costa Duarte
Eu
é um outro.
Arthur Rimbaud
Finas
farpas vastas redes...
Luis Bruma
Após
quase meio século de intenso trabalho, Hilda Hilst reafirma, neste
texto, sua condição de requintada artífice da linguagem.
Seus leitores reencontrarão, em Estar sendo, Ter sido, todo
o universo ficcional da autora.
Vittorio,
personagem-máscara de Hilda, faz parte de uma cadeia de duplos
de narrativas anteriores. Como Hillé (de A obscena senhora D),
ele poderia ter dito: "Ai, Senhor, tu tens igual a nós o fétido
buraco? Escondido atrás, mas quantas vezes pensado, todo esprimido,
humilde, mas demolidor de vaidades." Vittorio recorda (traz para seu coração)
momentos de sua vida com um olhar que é o caleidoscópio
de sua alma. Desintegra-se e se reintegra em tantos outros possíveis
eus: ele é, ao mesmo tempo, múltiplo e uno. É a consciência
da infância (Vittorio-bambino), Matias, Júnior, Alessandro
e Hermínia, Pedro Cyr (um poeta bossa "o escroto"), Luis Bruma-Apolonio-Hillé.
[2]
As
faces de Hilda formam "umasómúltiplamatéria", para
usar uma expressão da própria autora. Seus personagens são
um só, assim como podemos interpretar toda a sua ficção
como um único livro. Hilst descasca os conceitos, é obcecada
pelas mesmas questões metafísicas, amalgamando os estilos
alto e baixo do discurso num só diapasão da voz. Os personagens
que cria são apartados da realidade, estão afastados do
centro-oco dos conceitos. São buscas, perdas, dilaceramento, incompreensão
e agonia de se saberem "poeira-nada". Querem ultrapassar a fronteira da
carne, do corpo-porco nosso de cada dia. "Deus? Uma superfície
de gelo ancorada no riso."
Vittorio,
65, escritor e bebedor contumaz, reencontra nas alcóolicas letras
a cara espelhada de seus próprios fantasmas: "É sempre uma
névoa que vem vindo como se fosse o perfil esquálido de
uma aranha." Mora na praia com seu filho Júnior, grande nadador
e fodedor ("jumento como o pai", diz Vittorio a certa altura do texto)
e com Matias, seu irmão-colosso. E com cães, gansos e livros,
naturalmente, pois toda a ficção de Hilda é povoada
por uma fantástica coleção de bichos e letras.
O
que mais choca no livro é a crueldade do narrador, que não
poupa nem a si mesmo das situações ridículas. Veja-se
a cena em que ele se pensa numa cadeira de rodas com uma bengala de prata
e madrepérola. É o requinte do riso que destrói o
próprio lugar do discurso-sujeito de onde o riso emana.
Ao
questionar a ilusão bergsoniana de que o riso só existe
quando não há empatia do leitor, Hilst transforma a gargalhada
em baço sorriso, numa derivação que faz lembrar as
formulações de Pirandello sobre o humorismo. "Enquanto o
cômico é a percepção do oposto, o humorismo
é o sentimento do oposto (...) Nesse movimento eu já não
me sinto superior e distante em relação à personagem
animalesca que age contra as boas regras, mas começo a identificar-me
com ela, sofro seu drama e minha risada se transforma em sorriso."
[3]
A
escritora, através desse recurso, cria uma "catarse anticatártica",
pois prende o leitor numa teia narrativa que gera repulsa e identificação
ao mesmo tempo. O personagem nos mostra um mundo às avessas, instável
e contraditório. Perigoso e fundo como o Lago Averno, a entrada
do inferno.
Sob
a máscara de Vittorio, Hilda está livre para exagerar propositalmente
na cor das palavras. Se em Beckett tudo é cinza-monótono,
em Hilda tudo é rubro-vagotonia. Seus personagens não
chegam a lugar algum porque procuram "La Obscura Cara" de si mesmos e
do "Sem-Nome". Por isso seu riso é exterminador, "um certo tipo
de cômico, uma certa maneira de rir que pertence propriamente à
perspectiva trágica (...) Riso que pode então parecer, ao
mesmo tempo, paradoxal e destituído de qualquer eficácia
verdadeiramente cômica, uma vez que dissolve sem afetar o que dissolve
com um coeficiente de risível ou de ridículo que viria justificar
a dissolução." [4]
Fôlego para o leitor
hipócrita
No
limiar da velhice, Vittorio busca nos cantos, nas frestas da mente, o
sem-tempo do corpo e do espírito. Aquele "Ter sido" lúbrico
e voluptuoso. Entre receitas de drinques e suicídios, o personagem
procura Deus, deus e suas outras tantas máscaras. No intervalo
entre uma busca e outra, mais ou menos desesperado, conta-nos "short stories"
ora patéticas, ora escabrosas, enquanto espera a Dama Escura:
"a sépia desgrenhada, a foiçuda deve estar a rondar".
As
histórias picantes são um oásis necessário
entre os textos de enorme intensidade lírico-trágica. Das
histórias do fornicar, de dar pelos cantos, muito se sabe de Vittorio,
são "exercícios de lubricidade", ele diz. Mesmo no grotesco
e no pornográfico, HH não fala apenas do despudor do desejo
pervertido, mas também extrai do contar uma perspectiva metalinguística.
Muitas vezes, é nesse nível que os leitores fazem um desvio:
ao se chocarem com imagens do desejo interdito, não percebem as
sutilezas e a manipulação dos signos.
O
textohilstiano é construído em vários níveis,
ignorar essa dimensão é permanecer na superfície.
Precisamos pensar no papel do simulacro em sua "pornografia". Aqui, as
mesmas questões feitas no campo metafísico são retomadas
pelo avesso.
Uma
pluralidade de gêneros e linguagens se instaura entre os duplos
focos: sublime/grotesco, sério/cômico. Sempre irreverente,
polifônico, o texto de Hilst é múltiplo: teatro, poesia,
prosa poética. Nele aparecem as diversas tonalidades do cômico,
desde o burlesco, bufólico, grotesco, até a ironia, o sarcasmo
e a sátira.
No
fluxo narrativo, a escritora estabelece um diálogo circular com
outros textos, numa relação inter e intratextual, revelando-nos
inusitadas percepções do signo e das coisas. Quanto às
referências intertextuais, HH mistura em sua prosa uma multifacetada
biblioteca, como se nos fosse impossível desencarnar seu texto
dessas lembranças ficcionais. Neste livro, encontramos, lado a
lado, Ovídio, Petrarca, Shakespeare, Mishima, Joyce, Jorge de Lima,
Oscar Wilde, Vieira, Goya, Francis Bacon, Kurosawa, Lupasco e, por fim,
o pai-poeta Apolonio Hilst e o sempre-amigo Mora Fuentes. No campo intratextual
- tanta coisa resplende - há também vários exemplos:
eu-menino-cavalo-luz-tremente inteiro lembra Agda menina-planta;
o tigre-menino faz ressoar o menino-porco de Hillé.
O Cara mínima, o Sem-Forma, lembra a busca do Pai-Deus
em Qadós. Espaços de O Oco se confundem
na sintaxe: "estou na cama ou nos juncos? estou molhado de esperma ou
urina?" atualizam "Queres (que eu frite) o peixe na manteiga ou no mijo?"
A verticalidade se instaura: o poço e a clarabóia de
Ruiska, o banco de cimento onde se sentava o pai de Agda, sou
um novo nada ninguém, de Amós Keres...
À
singularidade do olhar de Vittorio-Apolonio-Hillé-HH corresponde
a complexidade sintático-semântica da narrativa. O fluxo
de consciência é pulsionado pela memória da língua
materna, traçado pelas marcas do corpo erógeno que se deslocam
para o corpo da linguagem. Daí o cambalear de lúcidos delírios:
"Funâmbulo loquaz, burlantim do nojo indo e vindo no arame; se eu
fosse ou tivesse sido ia ter mágoas, escoceios, corredeiras da
alma, ia despencar num frenético bamboleio dentro de canoas estreitas,
e logo ali a cachoeira BUUUUMMM!, despenquei, morri, mas não, continuo
aqui, velho e bêbado, vendo de novo o 'Cara mínima', o deus,
dentro da folha do alecrim de jardim."
Esses
"mosaicos pontilhados de Loucura" lembram partículas de matéria
da memória, são quanta de névoas, tremeluzindo
em barrocas sonoridades.
Vittorio
tem alma eloqüente, gosta de grandes acordes, adora os russos, aqueles
tons sinistros de piano, aquela pausa. Harmoniza os sons da língua
materna com as línguas estrangeiras, num hibridismo do qual extrai
sonoridades díspares. A sonoridade da língua mater
é reelaborada através do espanhol, do italiano, do alemão,
do latim e do grego no viés cômico do texto. Como não
sentir o frisson de uma cena, o arrepio erótico
dos timbres das vogais, o /i/ combinado com as nasais gementes,
revelando o fundo através da forma: havia luz na tessitura
daquela saia, uns fiozinhos mínimos
dourados, e puseste a saia, rodopiaste,
e eu te abracei e imediatamente
te levantei a saia. eu fui jovem e
amante um dia, Hermínia, imagina,
eu fui fervoroso e cheio de fé... já
fui alegre, Hermínia, imagina!
A
exploração erógena do corpo da língua se amplia
na confluência entre sons e imagens singulares. Percebemos, nesse
nível do texto, a intimidade de HH com as palavrasraras,
com os radicais; a busca da origem, do "morphe" da língua, da composição
que extrai, dos sufixos, inesperados efeitos: chamegosa, nojoso,
podadura, parrusca, vermelhusca, foiçuda;
eras tão dulçurosa; o vazioso assim à
minha volta. Ô cara esfanicado aquele lá," (...) torço-lhe
o gasganete gárrulo (...) e o outro todo inchadura
(...) Expressões de atmosfera sabendo a catedral barroca, a
coloridos vitrais, ou a um filme de Visconti: fosco brilhoso, frincha
de luz, rutilante estrela, corpos novinhos orvalhados, verdolengo verme,
um medo lesmoso; carpas crispadas; esbraseado; langor; lassitude; devassa;
excesso; algidez; algures; planura; calêndulas; anêmonas;
rododendros; espumas; iracúndia; entropia... Ou ainda: um
espirro de framboesa no semblante, na alma..., nãoterentendidonada
inssoossolaranjaaguado...
Se
por um lado, esse livro encanta pela matéria verbal e sonora, por
outro, causa profunda inquietação no leitor, ao buscar entendimento
de matérias fundamentais para o ser humano: o sentido da Vida-Morte,
as faces de Deus. Em poesia-prosa, no grotesco-sublime, em seu percurso
pasmado de agonia, Vittorio continua perguntando, sinistro ou sarcástico.
Poeira que é, nudez intensa que se difrata agônica:
"O
sol dissolve a dualidade cara e cu, alma e corpo, numa única imagem,
deslumbrante e total. Recobramos a antiga unidade e essa unidade não
é nem animal nem humana..." [5]
ROTA
CRIVADA DE LUZ
EU
ERA...
[1] Fala
de Hillé em A Obscena Senhora D.
[2] Ou
seja: o pseudônimo usado pelo pai da escritora (Luis Bruma), o próprio
pai-ficção (Apolonio) e a máscara porco-corpo de
Hilst (Hillé).
[3] apud
ECO, Umberto - O cômico e a regra in Viagem pela
irrealidade cotidiana - RJ: Nova Fronteira, 1984, p.350.
[4] ROSSET,
Clement - Lógica do pior - RJ:
Espaço e Tempo, 1989, pp. 190-191.
[5] PAZ,
Octavio - Conjunções e Disjunções
- SP: Perspectiva, 1979, p.11.