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Apresentação a Ficções

de Hilda Hilst

por Leo Gilson Ribeiro

 

      Os textos em prosa de Hilda Hilst têm todos o ritmo vagaroso de sementes. Suas palavras, frases, conceitos germinam atemporalmente na retina e na percepção de quem os lê. Em todos há uma desapiedada visão do animalesco, do visceral agarrado como um molusco repelente a um altar incompreensível. Deus? Um sádico imperfeito que esboçou seres humanos para temê-Lo e adorá-Lo. A velhice que mineraliza aos poucos o corpo, dando à flacidez e às rugas o tom acobreado, metálico da lenta necrose orgânica.

      A palavra para ela nada tem de "literário", de bel-letrístico, nem de um real aparente. A linguagem tem um papel encantatório, de aplacar a fúria de conhecer, de romper os limites do apreensível pelo humano para chafurdar no Absoluto. A linguagem é o Tao, o caminho, um labirinto selvático, a linguagem é um ritual propiciatório, uma alquimia de instrumentos verbais para chegar à gnose.

      A literatura, o estilo, a atemporalidade dos textos são um subproduto quase acidental, inconsciente, de uma Busca mística, panteísta, de um Indevassável por isso mesmo instigante, ameaçador: decifra-me ou eu te devoro. Hilda Hilst, como Sheherazade, conta para sobreviver mais um dia e nesse afã vital não há complacência: o leitor sente-se desafiado a imergir nesses ritos, recriando quase que corporeamente os enigmas e imagens que brotam. As suas são portanto "ficções" como as "ficciones" de Borges ou capítulos de "More Kicks than Pricks" de Beckett. Formam um círculo, um fluxo diante dos quais não há meio-termo, - ou o leitor percorre a mesma indagação metafísica ou se cansa às primeiras páginas, incapaz de preencher os brancos deixados pela autora.

 

     Quem se adentrar por essa magia lúcida, Hilda Hilst, aos 27 anos, em seu apartamento da Alameda Santos, em São Paulo-SP.no entanto, terá uma visão completamente inédita do relato em prosa. Cronologicamente depois de Guimarães Rosa mas com igual audácia de empreendimento, Hilda Hilst arma um espelho polifacetado, prismático, da nossa condição sobre a Terra. Ela não se detém diante do excremento, do assassínio, do acoplamento com animais, das amarras do sentimentalismo nem da moral para pesquisar, freneticamente, a casca que recobre a ferida de se ser. Não promete ao final conciliações com uma divindade bárbara, a exigir sacrifícios inumanos para nunca ser compreendida, apenas esboçada no oco, no vazio, no informe.

      O deslumbramento com estas verdadeiras iluminações Zen ou rimbaudianas porém é inevitável. De cada ficção, por menor que seja, eclodem arestas cortantes e cintilantes de um dizer caudaloso e abissal: "sei muito dessa palha que se chama aparência"; "Que o pensar dos outros e o meu próprio pensar, que também se via, e sentimentos, atos, e o que me circundava, a mim, e aos outros, era apenas Esboço, foi a única nitidez que consegui expelir em toda a vida esboçada." Seria difícil definir qual a suprema obra-prima desta coletânea: "Teologia natural" em que um filho indigente leva a mãe para vender no mercado "tudo que possuía, muda, pequena, delicada, um tico de mãe, e sorria muito enquanto caminhava"? Ou "Floema" em que um homem, Koyo, dialoga com um Deus inescrutável e impassível, Haydum?

      Os nomes exóticos - Haydum, Koyo, Kadek, Ruiska, Osmo, Mirtza, Kaysa - dão um ar ainda mais rarefeito a essas narrações já de si tão pesadas da gravidade do caos, da alucinação, como se as palavras fossem o som de um número cabalístico capaz de abrir a porta da compreensão ou da integração do ser humano no universo impenetrável.

      Não há nenhum elemento gratuito nem lúdico nesta profunda perscrutação teológica, neste "aut aut" kierkegaardiano em que a angústia do eu não postula nem a fé, nem a salvação, nem a graça mas unicamente um Deus tão sujeito às paixões humanas do ódio, da crueldade deliberada ou da omissão quanto as divindades do Olimpo da Grécia antiga. Por isso a sua é uma prosa de uma densidade que atinge propositalmente o paroxismo do delírio, da vertigem, revolucionando a formulação de Dostoievski: se há Deus é porque há a maldade indiscriminada contra inocentes e culpados. Escrever, mais do que nunca, é intransitivo como atividade social. Não será através de todas as palavras de uma língua que se exorcizará a Angústia. O dicionário inteiro não abolirá o Tempo, a Morte, o apodrecimento da carne. Hilda Hilst não está engajada no sentido político do termo porque a sua escritura é uma subversão dentro do Infinito atemporal, que não se prende às contingências das mudanças de poder. Não que ela esteja alheia à miséria, à fome, à bota na cara dos totalitarismos de todos os matizes, mas a privação da liberdade está encaixada numa realidade plural e maior: a do homem e sua solidão nos siderais espaços mudos.

      Talvez sem o saber ela escreve textos impregnados de uma visão budista ou hindu da existência humana como o produto de uma Ilusão, Maya, que as palavras talvez possam desmascarar. É uma constante a equiparação do prosaico e do banal com as mais transcendentes preocupações filosóficas do ser humano. Ela reúne as duas escatologias: a do Eskhatoslogos, a doutrina final dos tempos e a do Skatoslogos, a doutrina que disserta sobre as fezes, Deus imanente no nojo, no expelido, na humilhação da arrogância fátua de meros mortais, Deus palpitando na boca escancarada de vermes ou no deserto de afetividade em que os homens se trucidam, se traem, se negam e terminam com sua altissonante pantomima do Nada: a vida. "Queres (que eu frite) o peixe na manteiga ou no mijo?" ou "perguntei por que as mulheres inventam sempre esse negócio de dançar e o convite vem invariavelmente quando você está cansado e resolve pegar a sua metafísica e de repente ela telefona, angustiada, absurda: faz um favor pra mim, tá? O quê? Vamos dançar. De início dá aquele mal estar medonho, lógico, porque eu estou deitado na minha cama, estou tomando nota das coisas mais importantes e as coisas mais imortantes são aquelas que falam de Deus, eu tenho mania de Deus, enfim, eu quero dizer que eu estou acomodado e muito bem acomodado".

      Se a escritora se mantém num plano especulativo, não deixa porém de abordar freqüentemente as injustiças sociais, a exploração que os poderosos exercem sobre os fracos, as prisões, as torturas sádicas, o estupro da liberdade ("Vicioso Kadeck" documenta isso nitidamente), mas não se limita a essa constatação sociológica. Nem a psicologia pode esgotar seu arsenal de palavras, fornecer a quadratura do círculo que Hilda Hilst encarniçadamente quer construir nesse consciente delírio verbal que visa a explodir todas as fronteiras do dizer. A dramaticidade se mistura ao cotidiano, a especulação pura à prática mais chã e utilitarista, a erudição científica, teológica, literária se mescla com o falar popular mais inculto e espontâneo.

      Hilda Hilst carrega involuntariamente um estigma: o de nunca talvez vir a ser popular, agradável, acessível. Ela que ambiciona tanto ser discutida, focalizada, continuará por uma espécie de condenação intrínseca incompreensível para a maioria. Porque ela em português retratou um Malone agonizante no atoleiro da dúvida e das dimensões diminutas de quem não tem antenas para captar o que há ou não há depois da Morte. E porque ela escreveu, em português, o equivalente a um Finnegan's Wake de Joyce ou seja: escreveu um absurdo palimpsesto mesopotâmico. E poucos terão a imaginação recriadora, a profundeza de propósitos e o mesmo afã místico que ela para embrenhar-se nessa "selva oscura" da alma e do humano estar no mundo.

      Mas quem se aventurar, pacientemente, a percorrer com ela essas paisagens de uma desolação povoada de pequenas vitórias, cacos de vidro brilhantes através dos quais se contempla o sol, terá submergido num mundo intrépido, de terror e tremor, de beleza indescritível e de uma fascinante prospecção filosófica sobre o Tempo, a Morte, o Amor, o Medo, o Horror, a Busca. O espanto diante da criação de Hilda Hilst crescerá à medida que as gerações futuras consigam apreender a grandeza imune ao efêmero desta vivência escrita, deste arame esticado sobre o abismo da prosa resplandecente deste maior escritor vivo em língua portuguesa.

 

(Ficções - SP: Quíron, 1977.)

 

 
 
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