Apresentação
a Ficções
de
Hilda Hilst
por
Leo Gilson Ribeiro
Os
textos em prosa de Hilda Hilst têm todos o ritmo vagaroso de sementes.
Suas palavras, frases, conceitos germinam atemporalmente na retina e na
percepção de quem os lê. Em todos há uma desapiedada
visão do animalesco, do visceral agarrado como um molusco repelente
a um altar incompreensível. Deus? Um sádico imperfeito que
esboçou seres humanos para temê-Lo e adorá-Lo. A velhice
que mineraliza aos poucos o corpo, dando à flacidez e às
rugas o tom acobreado, metálico da lenta necrose orgânica.
A
palavra para ela nada tem de "literário", de bel-letrístico,
nem de um real aparente. A linguagem tem um papel encantatório,
de aplacar a fúria de conhecer, de romper os limites do apreensível
pelo humano para chafurdar no Absoluto. A linguagem é o Tao, o
caminho, um labirinto selvático, a linguagem é um ritual
propiciatório, uma alquimia de instrumentos verbais para chegar
à gnose.
A
literatura, o estilo, a atemporalidade dos textos são um subproduto
quase acidental, inconsciente, de uma Busca mística, panteísta,
de um Indevassável por isso mesmo instigante, ameaçador:
decifra-me ou eu te devoro. Hilda Hilst, como Sheherazade, conta para
sobreviver mais um dia e nesse afã vital não há complacência:
o leitor sente-se desafiado a imergir nesses ritos, recriando quase que
corporeamente os enigmas e imagens que brotam. As suas são portanto
"ficções" como as "ficciones" de Borges ou capítulos
de "More Kicks than Pricks" de Beckett. Formam um círculo, um fluxo
diante dos quais não há meio-termo, - ou o leitor percorre
a mesma indagação metafísica ou se cansa às
primeiras páginas, incapaz de preencher os brancos deixados pela
autora.
Quem
se adentrar por essa magia lúcida, no
entanto, terá uma visão completamente inédita do
relato em prosa. Cronologicamente depois de Guimarães Rosa mas
com igual audácia de empreendimento, Hilda Hilst arma um espelho
polifacetado, prismático, da nossa condição sobre
a Terra. Ela não se detém diante do excremento, do assassínio,
do acoplamento com animais, das amarras do sentimentalismo nem da moral
para pesquisar, freneticamente, a casca que recobre a ferida de se ser.
Não promete ao final conciliações com uma divindade
bárbara, a exigir sacrifícios inumanos para nunca ser compreendida,
apenas esboçada no oco, no vazio, no informe.
O
deslumbramento com estas verdadeiras iluminações Zen ou
rimbaudianas porém é inevitável. De cada ficção,
por menor que seja, eclodem arestas cortantes e cintilantes de um dizer
caudaloso e abissal: "sei muito dessa palha que se chama aparência";
"Que o pensar dos outros e o meu próprio pensar, que também
se via, e sentimentos, atos, e o que me circundava, a mim, e aos outros,
era apenas Esboço, foi a única nitidez que consegui expelir
em toda a vida esboçada." Seria difícil definir qual a suprema
obra-prima desta coletânea: "Teologia natural" em que um filho indigente
leva a mãe para vender no mercado "tudo que possuía, muda,
pequena, delicada, um tico de mãe, e sorria muito enquanto caminhava"?
Ou "Floema" em que um homem, Koyo, dialoga com um Deus inescrutável
e impassível, Haydum?
Os
nomes exóticos - Haydum, Koyo, Kadek, Ruiska, Osmo, Mirtza, Kaysa
- dão um ar ainda mais rarefeito a essas narrações
já de si tão pesadas da gravidade do caos, da alucinação,
como se as palavras fossem o som de um número cabalístico
capaz de abrir a porta da compreensão ou da integração
do ser humano no universo impenetrável.
Não
há nenhum elemento gratuito nem lúdico nesta profunda perscrutação
teológica, neste "aut aut" kierkegaardiano em que a angústia
do eu não postula nem a fé, nem a salvação,
nem a graça mas unicamente um Deus tão sujeito às
paixões humanas do ódio, da crueldade deliberada ou da omissão
quanto as divindades do Olimpo da Grécia antiga. Por isso a sua
é uma prosa de uma densidade que atinge propositalmente o paroxismo
do delírio, da vertigem, revolucionando a formulação
de Dostoievski: se há Deus é porque há a maldade
indiscriminada contra inocentes e culpados. Escrever, mais do que nunca,
é intransitivo como atividade social. Não será através
de todas as palavras de uma língua que se exorcizará a Angústia.
O dicionário inteiro não abolirá o Tempo, a Morte,
o apodrecimento da carne. Hilda Hilst não está engajada
no sentido político do termo porque a sua escritura é uma
subversão dentro do Infinito atemporal, que não se prende
às contingências das mudanças de poder. Não
que ela esteja alheia à miséria, à fome, à
bota na cara dos totalitarismos de todos os matizes, mas a privação
da liberdade está encaixada numa realidade plural e maior: a do
homem e sua solidão nos siderais espaços mudos.
Talvez
sem o saber ela escreve textos impregnados de uma visão budista
ou hindu da existência humana como o produto de uma Ilusão,
Maya, que as palavras talvez possam desmascarar. É uma constante
a equiparação do prosaico e do banal com as mais transcendentes
preocupações filosóficas do ser humano. Ela reúne
as duas escatologias: a do Eskhatoslogos, a doutrina final dos
tempos e a do Skatoslogos, a doutrina que disserta sobre as fezes,
Deus imanente no nojo, no expelido, na humilhação da arrogância
fátua de meros mortais, Deus palpitando na boca escancarada de
vermes ou no deserto de afetividade em que os homens se trucidam, se traem,
se negam e terminam com sua altissonante pantomima do Nada: a vida. "Queres
(que eu frite) o peixe na manteiga ou no mijo?" ou "perguntei por que
as mulheres inventam sempre esse negócio de dançar e o convite
vem invariavelmente quando você está cansado e resolve pegar
a sua metafísica e de repente ela telefona, angustiada, absurda:
faz um favor pra mim, tá? O quê? Vamos dançar. De
início dá aquele mal estar medonho, lógico, porque
eu estou deitado na minha cama, estou tomando nota das coisas mais importantes
e as coisas mais imortantes são aquelas que falam de Deus, eu tenho
mania de Deus, enfim, eu quero dizer que eu estou acomodado e muito bem
acomodado".
Se
a escritora se mantém num plano especulativo, não deixa
porém de abordar freqüentemente as injustiças sociais,
a exploração que os poderosos exercem sobre os fracos, as
prisões, as torturas sádicas, o estupro da liberdade ("Vicioso
Kadeck" documenta isso nitidamente), mas não se limita a essa constatação
sociológica. Nem a psicologia pode esgotar seu arsenal de palavras,
fornecer a quadratura do círculo que Hilda Hilst encarniçadamente
quer construir nesse consciente delírio verbal que visa a explodir
todas as fronteiras do dizer. A dramaticidade se mistura ao cotidiano,
a especulação pura à prática mais chã
e utilitarista, a erudição científica, teológica,
literária se mescla com o falar popular mais inculto e espontâneo.
Hilda
Hilst carrega involuntariamente um estigma: o de nunca talvez vir a ser
popular, agradável, acessível. Ela que ambiciona tanto ser
discutida, focalizada, continuará por uma espécie de condenação
intrínseca incompreensível para a maioria. Porque ela em
português retratou um Malone agonizante no atoleiro da dúvida
e das dimensões diminutas de quem não tem antenas para captar
o que há ou não há depois da Morte. E porque ela
escreveu, em português, o equivalente a um Finnegan's Wake
de Joyce ou seja: escreveu um absurdo palimpsesto mesopotâmico.
E poucos terão a imaginação recriadora, a profundeza
de propósitos e o mesmo afã místico que ela para
embrenhar-se nessa "selva oscura" da alma e do humano estar no mundo.
Mas
quem se aventurar, pacientemente, a percorrer com ela essas paisagens
de uma desolação povoada de pequenas vitórias, cacos
de vidro brilhantes através dos quais se contempla o sol, terá
submergido num mundo intrépido, de terror e tremor, de beleza indescritível
e de uma fascinante prospecção filosófica sobre o
Tempo, a Morte, o Amor, o Medo, o Horror, a Busca. O espanto diante da
criação de Hilda Hilst crescerá à medida que
as gerações futuras consigam apreender a grandeza imune
ao efêmero desta vivência escrita, deste arame esticado sobre
o abismo da prosa resplandecente deste maior escritor vivo em língua
portuguesa.
(Ficções
- SP: Quíron, 1977.)