O
Caderno Rosa de Hilda Hilst
por
J. L. Mora Fuentes
Num
Universo que sonha em se expandir infinitamente, ameaçando terminar,
quiçá num hediondo buraco negro, é surpreendente
que um dos nossos maiores desconfortos ainda seja nossa própria
Sexualidade. Pouco estamos distantes do mundo vitoriano que, em 1905,
estremeceu diante das revelações de Freud, entre elas
a perturbadora existência da sexualidade infantil.
Com
O Caderno Rosa de Lori Lamby, a poeta, dramaturga e ficcionista
Hilda Hilst não apenas nos confronta com a evidência embaraçosa
da realidade sexual, mas nos faz transitar por esse desconhecido espaço
com a naturalidade e humor que caracterizam os grandes autores.
Na
montagem teatral (que inaugurou o novo espaço cenográfico
de São Paulo, N.Ex.T. - Núcleo Experimental de Teatro),
a feliz junção da tríade Bete Coelho, Daniela Thomas
e Iara Jamra transforma O Caderno Rosa de Lori Lamby num dos mais
deliciosos, divertidos e importantes eventos cênicos da temporada
paulista. O texto, cuja autora já descreveu como "uma divertida
bandalheira", é o volume inicial da sua Trilogia Erótica
(os outros são Contos D'Escárnio/Textos Grotescos e
Cartas de um Sedutor) e marca momento singular na sua ficção,
que a partir daí abrangerá pungência maior, unindo
o coloquial mais chulo com a poesia mais plena, para retratar com enorme
fidelidade os descalabros e desassossegos da nossa condição
humana.
Aos
desatentos ou afoitos, ávidos por leituras superficiais, convém
avisar possíveis sobressaltos no espetáculo. Afinal, Lori
é uma menina de apenas oito anos (encarnada brilhantemente por
Iara Jamra) dissertando fartamente, e muito à vontade, sobre aventuras
sexuais. Que pese, a seu favor, tratarem-se apenas de fantasias, histórias
que redige no seu caderninho rosa, na tentativa secreta de auxiliar o
pai, escritor apicaçado pelas exigências editoriais, famintas
dos textos fáceis e com apelo erótico evidente.
Mas,
semelhante à criança da fábula que grita "O Rei
está
Nu", Lori investe principalmente contra o engodo. Da sua ingenuidade
nasce o poder de desmascarar a hipocrisia que insiste em afastar da
consciência nossa intrínseca realidade animal (leia-se
pureza), o que inclui sexo.
Querendo-nos
à imagem e semelhança D'Aquele, jamais poderíamos
ter tanta lascívia. E o mais escabroso, embora não tão
evidente: sexo implica, biologicamente, na existência de uma organização
celular. E células se desgastam, envelhecem e morrem. O desconforto
sexual, sem dúvida, está arraigado à consciência
de finitude. Isso talvez explique a tentativa inclemente de banalizar
nossa sexualidade com danças da garrafa e afins. É uma idéia
mais aterradora que tentamos ocultar.
Levar
Lori Lamby ao palco exigiu, sem dúvida, grande disciplina
de direção. Não era pouco o risco de invadir o grotesco
ou o chocante. Bete Coelho consegue, muy dignamente e com maestria, conduzir
o espetáculo, sabendo preservar o humor e a singeleza.
Da
mesma forma, o despojamento criado por Daniela Thomas para o cenário
(uma cama de grandes proporções, que algumas vezes sugere
uma cela) permite a Iara Jamra o espaço e a desenvoltura necessários
para a elaboração da personagem, distanciando-a léguas-luz
dos fáceis estereótipos.
Se,
na nossa espécie, sexo carrega também a estranha função
de Identidade (Revelação) e, portanto, de Diferenciação,
Lori Lamby simboliza um início. Sem medo de nós mesmos,
das realidades naturais e características que carregamos também
no nosso próprio corpo, talvez possamos iniciar um caminho de benéfico
auto-conhecimento.
Resta-nos
desejar vida longa ao espetáculo. E é claro, aos moralistas
de plantão, deixar como lembre-te o comentário de Multatuli,
escritor holandês contemporâneo de Freud: "É bom manter
pura a fantasia das crianças. Mas a pureza delas não será
preservada pela ignorância."
Entenda-se
por criança o futuro adulto. E estamos conversados.
(J. L. Mora
Fuentes é escritor e jornalista.)