Delicatessen
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Crônica de Hilda Hilst para o Correio Popular de Campinas-SP
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Você
nunca conhece realmente as pessoas. O ser humano é mesmo o mais
imprevisível dos animais. Das criaturas. Vá lá. Gosto
de voltar a este tema. Outro dia apareceu uma moça aqui. Esguia,
graciosa, pedindo que eu autografasse meu livro de poesia, "tá
quentinho, comprei agora". Conversamos uns quinze minutos, era a hora
do almoço, parecia tão meiga, convidei-a para almoçar,
agradeceu muito, disse-me que eu era sua "ídala", mas ia almoçar
com alguém e não podia perder esse almoço. Alguém
especial?, perguntei. Respondeu nítida: "pé-de-porco". Não
entendi. Como? "Adoro pé-de-porco, pé-de-boi também".
Ahn... interessante, respondi. E ela se foi apressada no seu Fusquinha.
Não sei por que não perguntei se ela gostava também
de cu de leão. Enfim, fiquei pasma. Surpresas logo de manhã.
Olga,
uma querida amiga passando alguns dias aqui conosco, me diz: pois você
sabe que me trouxeram uma noite um pé-perna de porco, todo recheado
de inverossímeis, como uma delicadeza para o jantar? Parecia uma
bota. Do demo, naturalmente. E lendo uma entrevista com W. H. Auden, um
inglês muito sofisticado, o entrevistador pergunta-lhe: "O que aconteceu
com seus gatos?" Resposta: "Tivemos que matá-los, pois nossa governanta
faleceu". Auden também gostava de miolo, língua, dobradinha,
chouriços e achava que "bife" era uma coisa para as classes mais
baixas, "de um mau gosto terrível", ele enfatiza. E um outro cara
que eu conheci, todo tímido, parecia sempre um urso triste, também
gostava de poesia... Uma tarde veio se despedir, ia morar em Minas...
Perguntei: "E todos aqueles gatos de que você gostava tanto?" Resposta:
"Tive de matá-los". "Mas por quê?!" Resposta: "Porque gatos
gostam da casa e a dona que comprou minha casa não queria os gatos".
"Você não podia soltá-los em algum lugar, tentar dar
alguns?" Olhou-me aparvalhado: "Mas onde? Pra quem?" "E como você
os matou?" "A pauladas", respondeu tranqüilo, como se tivesse dado
uma morte feliz a todos eles. E por aí a gente pode ir, ao infinito.
Aqueles alemães não ouviam Bach, Wagner, Beethoven, não
liam Goethe, Rilke, Hölderlin(?????) à noite, e de dia não
trabalhavam em Auschwitz? A gente nunca sabe nada sobre o outro. E aquele
lá de cima, o Incognoscível, em que centésima carreira
de pó cintilante sua bela narina se encontrava quando teve a idéia
de criar criaturas e juntá-las? Oscar, traga os meus sais.
(Segunda-feira,
1 de março de 1993)