E.G.E.
(Esquadrão
Geriátrico de Extermínio)
Crônica
de Hilda Hilst para o "Correio Popular" de Campinas-SP
O
poeta pode ser violento. A maior parte das vezes contra si mesmo. Um tiro
no peito, gás, veneno, um tiro na boca, como fez Hemingway, que
também foi poeta em O Velho e o Mar; Maiakóvski,
um tiro no peito; Sylvia Plath, gás de cozinha; Ana Cristina César,
um salto pelos ares; etc etc etc. "Os delicados preferem morrer", dizia
Drummond. Mas esta modesta articulista, sobretudo poeta, diante das denúncias
feitas pela revista Veja, todos aqueles poços perfurados
em prol de uma única pessoa ou em prol de amiguelhos de sua excelência,
presidente da Câmara, senhor Inocêncio (a indústria
da seca), e o outro com seu lindo carro às custas de gaze e esparadrapo...
Credo, gente, quando você vê televisão ou in loco
o povão famélico, desdentado, mirrado... Um amigo meu foi
para o Ceará e passou os dias chorando! As crianças todas
tortas, todos pedindo comida sem parar... e 500 toneladas de farinha apodrecendo...
e montes de feijão desviados para uma só pessoa... (um parênteses,
porque meu coração de poeta pede a forca, o fuzilamento,
cadeia, cadeia para aqueles que se locupletam à custa da miséria
absoluta, da dor, da doença). Gente, eu já estou uma fúria
e para ficar mais calma proponho algumas coisas mais sutis, por exemplo:
o Esquadrão Geriátrico de Extermínio, a sigla óbvia
seria EGE. Arregimentaríamos várias senhoras da terceira
idade, eu inclusive, lógico, e com nossas bengalinhas em ponta,
uma ponta-estilete besuntada de curare (alguns jovens recrutas amigos
viajariam até os Txucarramãe ou os Kranhacarore para consegui-lo)
nos comícios, nos palanques, nas Câmaras, no Senado, espetaríamos
as perniciosas nádegas ou o distinto buraco malcheiroso desses
vilões, nós, velhinhas misturadas às massas, e assim
ninguém nos notaria, como ninguém nunca nota a velhice.
Nossas vidas ficariam dilatadas de significado, ó que beleza espetar
bundões assassinos, nós faceiras matadoras de monstros!
O
curare é altamente eficiente, provoca rapidinho a paralisia completa
de todos os músculos transversais (bunda é transversal?)
e em seguidinha sobrevém a morte por parada respiratória.
Ficaríamos todas ao redor do coitadinho, abanando: óóóó,
morreu é? Um pedido ao presidente Itamar: severidade, excelência,
é ignominioso, indigno, insultante para todos nós, deste
pobre Brasil tão saqueado, que essas terríveis denúncias
terminem no vazio, no nada, na impunidade. É sobretudo perigoso
porque:
de
cima do palanque
de
cima da alta poltrona estofada
de
cima da rampa
olhar
de cima
LÍDERES,
o povo
Não
é paisagem
Nem
mansa geografia
Para
a voragem
Do
vosso olho.
POVO,
POLVO
UM
DIA.
O
povo não é o rio
De
mínimas águas
Sempre
iguais.
Mais
fundo, mais além
E
por onde navegais
Uma
nova canção
De
um novo mundo.
E
sem sorrir
Vos
digo:
O
povo não é
Esse
pretenso ovo
Que
fingis alisar,
Essa
superfície
Que
jamais castiga
Vossos
dedos furtivos.
POVO.
POLVO.
LÚCIDA
VIGÍLIA.
UM
DIA.
(Segunda-feira,
3 de maio de 1993)